Armênio Guedes

Valor: Eros Grau, ex-ministro do Supremo, lança livro sobre o militante Armênio Guedes

Para ex-ministro do STF Eros Grau, que organiza livro sobre o militante Armênio Guedes, há risco de retorno aos tempos da ditadura

Por Roldão Arruda – Eu & Fim de Semana

Desde que deixou o Supremo Tribunal Federal (STF) em 2010, o jurista Eros Grau divide o tempo entre seus escritórios em São Paulo e Paris e sua residência em Tiradentes, interior de Minas. Aos 79 anos, dedica-se sobretudo a produzir pareceres jurídicos. Também escreve para jornais - mantém uma coluna quinzenal no “Diário de Santa Maria”, a cidade gaúcha onde nasceu - e produz obras de ficção. É um duplo, como gosta de se definir: “Um cara que faz literatura e também faz direito”. Entre um escrito e outro, ele acaba de organizar o livro de artigos “Nosso Armênio” (Globo), sobre o jornalista e militante político Armênio Guedes (1918-2015).

O volume reúne 33 artigos escritos por amigos e admiradores de Armênio. Entre eles estão os jornalistas Elio Gaspari, Juca Kfouri e Ricardo Lessa, o cientista político Marco Aurélio Nogueira, os políticos Aloysio Nunes, Almino Afonso e Milton Temer e o cineasta Zelito Viana. Trata-se sobretudo de uma homenagem a Armênio, que militou no Partido Comunista Brasileira, o “Partidão”, durante 48 anos e que mesmo antes de se desligar da legenda, em 1983, já se destacava de seus pares no debate político e empolgava militantes mais jovens por sua defesa intransigente da liberdade e da democracia.

Armênio tinha quase a mesma idade do pai de Eros Grau, mas era visto pelo jurista como uma espécie de irmão mais velho. Na entrevista a seguir, concedida em seu escritório em São Paulo, onde mantém à direita de sua mesa uma foto do pai e da mãe e, à esquerda, uma foto de um jovem e elegante Karl Marx (1818-1883), o ex-ministro fala dessa amizade e também da conjuntura política.

Valor: Como o senhor conheceu Armênio Guedes? Foi no tempo em que o senhor também militava no “Partidão”, nos anos 60 e 70?
Eros Grau: Não. Na época em que eu tinha ligação com o partido, ouvi falar do Armênio, sabia quem era, mas nunca tive contato com ele. Nosso primeiro encontro aconteceu em 1980, após a Lei da Anistia, quando ele retornou do exílio em Paris e o Roberto Miller, então diretor da “Gazeta Mercantil”, chamou-o para trabalhar com ele. Na época eu era colaborador daquele jornal, e foi lá que nos aproximamos, o que foi uma grande vantagem para mim.

Valor: Por quê?
Grau: O Armênio me orientava, dava dicas de como escrever, que assuntos abordar, que formas de abordar. Posso dizer que fui iluminado por ele. Na biblioteca da minha casa em Tiradentes, tenho na parede uma bela foto dele, que tirei num de nossos vários encontros naquela casa. Eu a mantenho lá porque me faz pensar que, embora não esteja mais por aqui, ele ainda me ilumina. Isso faz bem para a alma.

Valor: Foi por causa de sua ligação com o “Partidão” que o senhor foi preso em 1972?
Grau: Sim. Na época eu trabalhava no gabinete do Dilson Funaro [1933-1989], que era secretário do Planejamento do Estado de São Paulo. Certo dia, precisando de alguma coisa minha, ele perguntou: “Cadê o Eros? Por que ele não está aparecendo por aqui? Mande chamá-lo”. Nessa hora, um de seus assessores mais próximos criou coragem e contou que eu havia sido preso uma semana antes e estava detido no Doi-Codi de São Paulo. Depois de ouvir aquilo, o Dilson foi até o gabinete do governador, que era o Roberto Abreu Sodré [1917-1999], e disse: “Olha aqui, eu tenho um assessor, meu amigo, que foi preso. Se ele não for solto hoje, até a meia-noite, amanhã cedo eu me demito e chamo a imprensa para dizer que não posso seguir em frente com uma situação dessas”. Não sei o que o governador fez, mas sei que fui liberado naquele dia. Se eu não tivesse saído, poderia ter morrido ou ido para o exílio.

Valor: Sua prisão foi relembrada quando, em 2008, o Conselho Federal da OAB ingressou com uma ação no Supremo solicitando a revisão da aplicação da Lei da Anistia, com a anulação do perdão dado aos agentes do Estado que torturaram presos políticos. Sua indicação como relator do caso levou muita gente a pensar que, como havia sido torturado, seria favorável à revisão. Mas o senhor negou o pedido, e a ação foi rejeitada. O que o levou a essa atitude?
Grau: Desde quando cheguei ao STF em 2004, conduzido pelas mãos do Márcio Thomaz Bastos [1935-2014], todo mundo imaginou que um comunista estava chegando àquela corte e que eu seria capaz de descumprir a Constituição. Mas depois todo mundo se surpreendeu porque fui, graças a Deus, um fiel cumpridor da Constituição. Fiz o que um juiz deve fazer: aplicar a Constituição e as leis, mesmo quando não gosta. O que diz a Lei da Anistia? Diz que foi ampla, geral e irrestrita, o que significa que atingiu os dois lados. Perdi amigos e ganhei uma coleção de inimigos por causa daquele voto, mas não me importo com isso. O que importa e me dá orgulho até hoje é ter sido fiel à Constituição e às leis. Eu cumpri a lei.

Valor: Armênio Guedes, que sofreu na ditadura e teve um irmão morto sob tortura, foi ouvido pelo senhor? Ele o ajudou a tomar a decisão?
Grau: Muito. O pensamento dele está retratado no meu voto. Ele era um homem muito culto, sereno e prudente, e nós dois sempre nos colocamos um diante do outro como irmãos. Acho isso engraçado porque, embora fosse apenas um ano mais novo que meu pai, nós dois conversávamos sempre como se tivéssemos a mesma idade. Ele era meu irmão.

Valor: O que o senhor acha que Armênio diria da atual conjuntura política do país?
Grau: Eu acho que diria: raciocine com prudência, cada coisa a seu tempo. O tempo que estamos vivendo exige certa serenidade. Tenho conversado muito sobre isso com meus amigos nos encontros em minha casa em Tiradentes.

Valor: Como viu o debate sobre prisão em segunda instância? Na semana passada, o Supremo Tribunal Federal decidiu que réus condenados só poderão ser presos após o trânsito em julgado, isto é, depois de esgotados todos os recursos.
Grau: A questão está definida na Constituição, no artigo 5º, inciso 57, que diz que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença condenatória”. O STF decidiu com prudência, nos limites do quanto estabelece o artigo 2º da nossa Constituição, nos termos do qual o Legislativo faz as leis e a Constituição, o Executivo governa dentro da lei e da Constituição e o Judiciário examina se tudo está de acordo com a Constituição e as leis. Um poder não pode usurpar atividades do outro. Pode ser até que, pessoalmente, eu acredite que a prisão deveria ocorrer após a decisão de primeira instância, mas como juiz tenho que cumprir a lei e a Constituição. Sempre me orientei por isso em tudo que decidi. Fico imensamente feliz pelo fato de o STF ter confirmado o quanto afirmei em 2009, como relator do habeas corpus 84.078-7.

(Neste ponto da entrevista, Eros Grau pede ao repórter para pegar um livro na estante e ler o título. Trata-se de “Por Que Tenho Medo dos Juízes”, obra em que fala de magistrados que, alegando questões de princípios, acabam julgando de acordo com leis próprias. Conta que o assunto o interessa há muito tempo e que o livro já foi traduzido para o francês e o alemão e que brevemente será publicado em inglês.)

Valor: O senhor deu esse título para o livro em 2009. Acha que ele continua atual?
Grau: Mais do que atual.

Valor: Uma das características de Armênio Guedes mais destacadas nos artigos do livro é o apreço pela democracia. Neste momento da vida política, no qual se fala até em retomada do AI-5, o senhor acha que a democracia corre algum risco?
Grau: Sim. Observo uma tensão muito grande, com o risco de retorno aos tempos da ditadura.

Valor: Um livro sobre o Armênio pode ser útil nesta conjuntura?
Grau: Ele foi sempre um exemplo de prudência e serenidade. Foi um homem que, embora nunca tenha deixado de lado essas duas virtudes, jamais aceitou as injustiças. É um exemplo.

Valor: Quais seriam suas sugestões para se atravessar este período de tensões ao qual se referiu?
Grau: Há um grande poeta gaúcho, já um pouco esquecido, chamado Alvaro Moreyra [1888-1964], que tem um poema de dois versos que é uma maravilha. Ele diz: “A vida está toda errada/ vamos passá-la a limpo?”. É isso. Tem que passar a limpo tudo isso, o Poder Executivo tem que ser um fiel cumpridor das leis e da Constituição, o Judiciário tem que ser o controlador dos atos que se praticam e o Legislativo pode eventualmente pensar em reformular as leis.


Eros Grau escreve sobre Armênio Guedes à Política Democrática online

Em artigo exclusivo e de sua autoria, ministro aposentado do STF conta um pouco do homem que teria mais de 100 anos

Ministro aposentado do STF (Supremo Tribunal Federal), o advogado Eros Grau publicou artigo exclusivo de sua autoria na 12 edição da revista Política Democrática online. Com linguagem em primeira pessoa e narrativa que denota leveza, ele conta um pouco sobre Armênio. Saiba quem é essa pessoa que, em 30 de maio do ano passado, teria completado 100 anos. O artigo está publicado na revista produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira) e que disponibiliza todo o conteúdo, de forma gratuita, em seu site.

» Acesse aqui a 12ª edição da revista Política Democrática online

A seguir, leia trechos do artigo de Eros Grau:

Há uns dois anos – após uma conversa fraterna com a Cecília Comegno, Marcello Cerqueira, Élio Gaspari e outros camaradas –, a mim foi atribuída a organização de um livro lembrando nosso Armênio. Uma tarefa que encantou minha vida. Lá pela segunda quinzena de novembro será lançado, em São Paulo, pela Globolivros.

Armênio Guedes se foi para o Céu no dia 12 de março de 2015. No ano passado, 30 de maio, teria completado cem anos. Lá em cima será, no entanto, eterno.

Nascido em Mucugê, a capital baiana dos diamantes, Armênio era um deles. Sereno, aristotelicamente prudente. A serenidade ao alinhar-se à esquerda democrática europeia, ao opor-se à luta armada durante o regime militar cá entre nós e ao defender a aliança com o Movimento Democrático Brasileiro (MDB) - o único partido de oposição autorizado pela ditadura --- evidenciam ter sido ele, para sempre, um diamante de humanismo. A noite de 30 de março de 2012, quando recebeu o título de Cidadão Paulistano oferecido pela Câmara Municipal de São Paulo, é inesquecível.

Durante seu exílio no Chile e na França cultivou a fraternidade, ensinando-a a todos nós. Tento colher trechos que tudo dizem nos mais de trinta textos que compõem este livro, mas me perco, incapaz de escolher este ou aqueles no multiverso da amizade. Só me resta, portanto, a opção de transcrever, nas linhas que seguem, o que brotou do meu coração.

 

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Revista Política Democrática || Eros Roberto Grau: Nosso Armênio

Há uns dois anos --- após uma conversa fraterna com a Cecília Comegno, Marcello Cerqueira, Élio Gaspari e outros camaradas ---, a mim foi atribuída a organização de um livro lembrando nosso Armênio. Uma tarefa que encantou minha vida. Lá pela segunda quinzena de novembro será lançado, em São Paulo, pela Globolivros.

Armênio Guedes se foi para o Céu no dia 12 de março de 2015. No ano passado, 30 de maio, teria completado cem anos. Lá em cima será, no entanto, eterno.

Nascido em Mucugê, a capital baiana dos diamantes, Armênio era um deles. Sereno, aristotelicamente prudente. A serenidade ao alinhar-se à esquerda democrática europeia, ao opor-se à luta armada durante o regime militar cá entre nós e ao defender a aliança com o Movimento Democrático Brasileiro (MDB) --- o único partido de oposição autorizado pela ditadura --- evidenciam ter sido ele, para sempre, um diamante de humanismo. A noite de 30 de março de 2012, quando recebeu o título de Cidadão Paulistano oferecido pela Câmara Municipal de São Paulo, é inesquecível.

Durante seu exílio no Chile e na França cultivou a fraternidade, ensinando-a a todos nós. Tento colher trechos que tudo dizem nos mais de trinta textos que compõem este livro, mas me perco, incapaz de escolher este ou aqueles no multiverso da amizade. Só me resta, portanto, a opção de transcrever, nas linhas que seguem, o que brotou do meu coração.

Lá se foi o tio!

Não sei por onde começar, de verdade.

Karin e Werner, meus filhos, passaram a conviver com Armênio, pelas mãos da Rosa, antes de nós. Com ele aprenderam, como nós, Tania e eu, que a vida não pode ser, a vida é maravilhosa!

Nossos jantares em Paris, em São Paulo, em Tiradentes e nos restaurantes da Ida Maria eram formidáveis. Armênio está/estará conosco sempre que nos reunirmos, Cecília, Ida Maria, frei Oswaldo, Tania e eu.

Não sei por onde começar, de verdade.

Ele nasceu em 1918, dois anos após meu pai, mas era como se fôssemos da mesma idade, como se fôssemos irmãos.

Todo o tempo durante o qual exerci a magistratura, o olhar de Armênio, iluminado pela phrónesis de Aristóteles, me inspirou. Nada de ciência, prudência. Armênio iluminou o voto que proferi, como relator, no processo no qual se discutia amplitude da anistia, a ADPF 153. Conversamos muito, longamente, e o Tio inspirou caminhos que me levaram ao correto.

Tenho inúmeras histórias a contar de meu irmão mais velho, mas vou me conter, relatando uma apenas.

No dia 14 de dezembro de 2011, arrematei em um leilão na Rua Oscar Freire, por uma ninharia [trinta reais], um bilhete manuscrito atribuído ao Prestes, assinado “CP[1]. Sabia que o bilhete não era dele, mas comprei. No dia seguinte, à tarde, fui visitar o Armênio, levando o bilhete comigo. Era dezembro, Tania e eu iríamos à França, eu desejava abraçá-lo.

Armênio confirmou imediatamente que não era de Prestes. Em seguida, abriu uma gaveta de sua escrivaninha e me deu, dobrado, acondicionado em um pequeno envelope de plástico --- destes para guardar CPF --- outro bilhete, este realmente a ele enviado pelo Prestes.

16 de fevereiro de 1974. Um bilhete enviado a André, codinome do Armênio. Fiquei encantado. E tanto que o Tio --- em gesto largo e demorado, moscovita --- disse-me que ficasse com ele.  Senti-me imensamente feliz e o guardei dentro de uma pasta de elástico, na qual trazia o papel arrematado no dia anterior.

Desci do apartamento do Armênio, na Rua Aracaju, caminhei até a Praça Vilaboim e tomei um táxi. Vinha comigo um segurança que, por conta de ter sido ministro do STF, ainda então me acompanhava.

Cheguei em casa um pouco antes de Tania, que saíra por outra razão. Assim que ela entrou no escritório, entusiasmado abri a pasta de elástico e o bilhete de Prestes desaparecera... Eu o havia perdido. Sentia-me perdido, tudo estava perdido. Desci até o lugar em que o taxi me deixara, procurei, na rua, no elevador, mas nada.

Iríamos a uma pizzaria, jantar com colegas da Faculdade. Tania insistiu em que fôssemos. Eu queria desaparecer do mundo. Estava desolado, como se para sempre desolado. De repente meu telefone celular tocou! Era o segurança, contando que voltara à Rua Aracaju (ele sentira que eu estava desolado) e, ao passar pela frente do prédio do Armênio, o zelador fez um psiu e disse “olha aqui, vocês deixaram cair quando saíram”.

O bilhete do Prestes recuperado, reencontrado, como se eu novamente o ganhasse de presente!

Conservo esta preciosidade em uma caixinha vermelha --- é óbvio! --- feita especialmente para que eu o conservasse!

Sinto um nó na garganta pensando nele e, como as palavras não dizem quase nada, permito-me em seguida reproduzir um pequeno texto meu publicado n'O Globo, no dia 17 de março de 2015, cinco dias depois da partida do Armênio:

Lá se foi Júlio, o “tio”.

Está lá, no céu --- “uma cidade de férias, férias boas que não acabam mais”, como diz, em um lindo poema, Álvaro Moreyra.

Armênio Guedes --- Júlio, o “tio” --- certa vez me contou de sua proximidade a Álvaro, que se foi há cinquenta anos. Armênio partiu na quinta-feira passada.

Agora é como se eu corresse os olhos, dominando o tempo, por inúmeros momentos do passado. Em Paris --- um jantar espetacular que Ida Maria, Cecília e Tania, minha mulher, prepararam para nós. Em nossa casa, em Tiradentes. Em São Paulo. Armênio ensinando o futuro a minha filha. A mim recomendando prudência, mais de uma vez.

Lá se foi o amigo mais sereno. Seu olhar desdobrava esperança, paz. Revolucionar o mundo, construir a fraternidade, mas em paz, harmonia e paz.

Um dos mais belos momentos que vivi aconteceu na quinta-feira que passou. Alguns amigos em volta do seu corpo, de repente o chão se abrindo para que a matéria fosse levada para sempre.

Antes, durante breves instantes, confraternizamo-nos. Estivemos mais próximos do que nunca, entre nós e a ele. Uns foram capazes de dizer algumas palavras. Faltaram-me forças para mencionar o quanto meu velho camarada me ensinou, para ao menos sussurrar a palavra amizade.

Alguém trouxera, para ser reproduzida, a gravação de uma canção que, naquele verso --- nesta luta final ---, ressoa em nossos corações.

Lá se foi o corpo de Armênio. A esperança refletida no fundo de seus olhos serenos resta entre nós. Iluminando os caminhos a serem experimentados pelos amigos que ainda cá estão. Um dia por certo nos reencontraremos na cidade de férias, férias boas que não acabam mais.

 

[1]  Posteriormente Ana Maria Martins afirmou-me que se trata do pintor Carlos Prado.


Sergio Augusto de Moraes: Armênio Guedes - completaria 100 anos neste 30 de maio

Estávamos exilados no Chile. Corria o Governo de Salvador Allende, meses depois derrubado pelo golpe militar de 1973. Numa noite, tomando um bom vinho chileno Armênio me revelou, emocionado, que acabava de saber que seu irmão Célio Guedes, que trabalhava na seção de organização do Comitê Central do PCB, havia sido torturado e morto nos porões da ditadura brasileira.

A dor que aquela revelação causava em meu amigo era visível nos seus olhos e quase possível de se tocar com as mãos. Emocionei-me junto com ele e constatamos que a política da ditadura e de seus órgãos de repressão estava mudando para com o PCB: o assassinato se somava às mais bárbaras torturas.

Mesmo assim, naquele momento, Armênio fez questão de reafirmar que tal fato não mudava sua avaliação de que a política de amplas alianças, o aproveitamento de qualquer espaço legal para organizar o povo na luta pela democracia, adotada por nosso Partido, era a única que poderia derrotar a ditadura, sem permitir que a dor, a revolta e a indignação toldasse sua lucidez.


Armênio Guedes (30/5/1918-12/3/2015), um comunista singular

O livro "Armênio Guedes, um comunista singular", autoria do jornalista Mauro Malin, Ponteio Edições, terá  lançamento no Rio nesta segunda-feira, 7 de maio, na Livraria Travessa do Shopping Leblon, a partir das 19h. Estão todos convidados.

O maior de todos os desafios no Brasil, hoje, é manter, aprofundar ou estabelecer regras democráticas de convivência política e social. Não por acaso trata-se em essência do mesmo repto posto diante das forças que se reuniram na ampla frente que derrotou a ditadura de 1964. Uma narrativa desse processo está nesse livro.

Luiz Sérgio Henriques: O legado de Armênio, agora

O título remete à serenidade e, indiretamente, à ideia de revolução e luta pelas liberdades, e o livro em si fala de um personagem que, nascido em 1918, nos dá a honra de ser seu contemporâneo, depois de ter acompanhado parte conspícua das batalhas pela democracia segundo a ótica de um pequeno, mas importante, partido da esquerda contemporânea. Refiro-me ao relato de Sandro Vaia sobre a vida de um comunista singular (Armênio Guedes - sereno guerreiro da liberdade, Barcarolla, 2013), cuja leitura convida simultaneamente a uma reavaliação do passado e a uma posição no presente - esta última sempre tão difícil de tomar, se é que, como diz o filósofo, a ave da sabedoria só levanta voo ao escurecer e, por isso, estamos humanamente condenados a travar os combates do dia com uma consciência tão só parcial e muitas vezes enganosa.

O partido, naturalmente, é o PCB, criado no significativo ano de 1922, prenhe de acontecimentos que assinalariam a modernidade brasileira. Entre seus quixotescos fundadores, Astrojildo Pereira, intelectual fora dos padrões convencionais, admirador e estudioso arguto de Machado de Assis - paixão que o acompanharia pela vida afora e muitas vezes o salvaria da aridez sectária tanto na política quanto na literatura. Armênio chegaria ao "partido" - assim entre aspas, como se fosse "o" partido por antonomásia e todos os demais não passassem de ficção ou figuras casuais - em circunstância diversa e posterior, por ocasião da mobilização antifascista que também iria abalar internamente o Estado Novo e propiciar, logo em seguida à redemocratização de 1945, o curto período de legalidade do PCB.

Astrojildo e Armênio se cruzariam na história partidária, já então profundamente marcada por um traço específico do nosso país - a admissão da ala esquerda do tenentismo, simbolizada na figura de Luís Carlos Prestes -, bem como por uma característica generalizada dos velhos partidos comunistas - a adesão à União Soviética e ao corpo doutrinário que daí se irradiava para os demais partidos "irmãos", o "marxismo-leninismo".

Tempos de ferro e fogo, de clandestinidade, prisões e exílios. E também de enrijecimento dogmático, de cisões e excomunhões estrepitosas, como, para dar o exemplo canônico, as que acompanharam a denúncia dos crimes de Stalin e do seu sistema de poder, no já distante ano de 1956.

Prestes e Armênio - uma visão que tendia a soluções militares, marcada por uma assimilação positivista do marxismo, e outra que tendia a valorizar a política e os recursos da democracia, em cujo cerne estão a dissuasão, e não a força, o consenso, e não a coerção. O mais tradicional e moderado dos partidos da esquerda chegaria cindido a 1964. "No embate entre Jango e seu mais feroz opositor, o governador Carlos Lacerda, da UDN, Prestes achava que o PCB podia ficar no meio da briga e sair ganhando o poder que sobraria depois da mortal briga entre os dois lados." Armênio e muitos outros, ao contrário, tiveram consciência imediata do alcance histórico da derrota e do salto de qualidade que o capitalismo iria conhecer entre nós, na sequência dos idos de março de 1964.

Debilitado pelas sucessivas cisões de quadros que iriam fazer a luta armada - Marighella, Gorender, Mário Alves -, o velho PCB, apesar de tudo, acharia forças para prestar um último e decisivo serviço à democracia brasileira, ao tornar-se "linha auxiliar do MDB" e apostar na crescente discrepância entre o arbítrio do regime dos atos institucionais e o resíduo de legalidade que se manifestava na competição eleitoral e no movimento associativo, mesmo sob severos condicionamentos. Uma estratégia que apontava, desde o início, para a derrota do regime discricionário mediante a obtenção de ampla anistia e, fundamentalmente, de uma Carta democrática - esta mesma a que lealmente nos devemos referir em todos os momentos, especialmente nos de crise e incerteza, como o que ora atravessamos.

Eis-nos, como dissemos no princípio, antes de um novo e iluminador voo da coruja, a nos haver não só com o legado de Armênio, como também com os problemas um tanto opacos do presente. Movemo-nos num ambiente em que o mundo virtual - num indício, talvez, de verdadeira mudança antropológica - facilita enormemente a difusão do anseio por uma "democracia direta" que, segundo seus adeptos radicais, eliminaria a mediação institucional e os organismos estáveis da representação.

Além do fato de o mundo virtual também estar atravessado de boas e más possibilidades, podendo gerar, no limite negativo, um "assembleísmo eletrônico" com todos os vícios do assembleísmo tradicional, resta a evidência de que a esquerda hegemônica não parece ter pela Carta de 1988 o apreço a que devem sentir-se convocados todos os cidadãos. Alguns dos seus dirigentes veem a crise como ocasião para "enfrentar a direita e levar o governo para a esquerda", ainda que, a rigor, não tenham nenhum projeto alternativo de País ou de sociedade. Enxergam o conflito social legítimo como oportunidade de processos constituintes espúrios ou plebiscitos mal-ajambrados, que supostamente reuniriam um Executivo ainda mais hipertrofiado e a massa da população, fora ou dentro das redes sociais - mas sempre ao largo das instituições.

Num paradoxo só aparente, o caminho da fidelidade às regras do jogo democrático, como poderia ter sido em 1964 e como se patentearia nos anos da resistência, continua a ser a via mestra das mudanças substantivas, sem aventuras ou saltos no escuro. No velho PCB, em circunstâncias muito mais difíceis, pôde germinar um reformismo como o de Armênio Guedes. A esquerda hegemônica, hoje, está desafiada a fazer o mesmo: hic Rhodus, hic salta, diria conhecido pensador. E já não seria sem tempo.

* Luiz Sérgio Henriques é tradutor, ensaísta e um dos organizadores das obras de Gramsci no Brasil. Site: www.gramsci.org