Argentina

Brasil e Argentina têm nova tensão, explica Rubens Barbosa na Política Democrática de dezembro

Embaixador analisa relação entre os dois países da América do Sul em artigo publicado na revista produzida e editada pela FAP

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

O embaixador e presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (Irice), Rubens Barbosa, a relação entre os centros do poder do Brasil e da Argentina é marcada por nova tensão. Em artigo exclusivo de sua autoria publicado na edição de dezembro da revista Política Democrática online, ele afirma que “declarações de lado a lado acirraram os ânimos entre os presidentes, ministros e altos funcionários”.

» Acesse aqui a 14ª edição da revista Política Democrática online

De acordo com o embaixador, a nova tensão entre Brasília e Buenos Aires ocorre por causa de uma escalada retórica em função de divergências ideológicas. No Brasil, há um governo de direita, liberal na economia e conservador nos costumes, e, na Argentina, um governo de centro-esquerda, que acabou de assumir o poder, avalia o autor, no artigo. Todos os conteúdos da revista podem ser acessados, gratuitamente, no site da FAP (Fundação Astrojildo Pereira) e são compartilhados nas redes sociais.

A política econômica e comercial do novo governo argentino, conforme o artigo publicado na revista Política Democrática online, passou a ser preocupação do governo brasileiro. Isto, segundo Barbosa, por causa da possibilidade de a abertura da economia e a ampliação da negociação externa do Mercosul serem contestadas por políticas protecionistas.

“Sinalizações, nesse sentido, poderiam questionar o comércio bilateral e a aprovação do acordo com a União Europeia. A retórica confrontacionista põe em risco, de um lado, o relacionamento político e diplomático e a cooperação econômica e comercial entre os dois parceiros. E, de outro lado, o futuro do Mercosul”, analisa o presidente do Irice para a Política Democrática online.

Leia mais:

» ‘Corrupção sistêmica mina instituições democráticas’, diz editorial da Política Democrática de dezembro

» Democracia está sob risco, destaca revista Política Democrática de dezembro

» Veja aqui todas as edições anteriores da revista


Revista Política Democrática || Ruy Fabiano: O plágio, de Borges a Machado

Já se disse quase tudo de Machado de Assis, avalia Ruy Fabiano. Para ele, pouco, no entanto, se mencionou sobre o Machado vítima de plágio. Não um plágio qualquer, mas um cometido por outro gênio da literatura – ninguém menos que o argentino Jorge Luís Borges 

A respeito de Machado de Assis já se disse quase tudo. Quase. Sua gigantesca fortuna crítica, que não para de crescer, é marcada por antagonismos. A controvérsia, que em vida lhe causava tédio, o enriquece e o torna ainda mais esfíngico perante a posteridade.

Como todo artista de gênio, Machado é um ser poliédrico, que pode ser lido e compreendido sob ângulos diversos, que aparentemente se contradizem, mas, ao final, formam uma unidade. Já se falou das influências francesas, inglesas, portuguesas, alemãs, espanholas, greco-romanas e judaicas na obra de Machado de Assis.

Já se falou do Machado cético, ateu, irônico, humorista; Machado apolítico e, inversamente, político; Machado alienado, habitante de uma torre de marfim ou, muito pelo contrário, engajado a seu modo nas questões políticas e sociais do Segundo Reinado, como constatou o crítico e ensaísta Astrojildo Pereira.

Poucos, no entanto, mencionaram (ou mesmo perceberam) o Machado vítima de plágio. Não um plágio qualquer, mas um cometido por outro gênio da literatura – ninguém menos que o argentino Jorge Luís Borges. Tudo começa no capítulo VI, de Memórias Póstumas de Brás Cubas, o Delírio, que Eça de Queiroz recitava de cor e proclamava antológico. Nele, Brás descreve sua própria alucinação.

Não bastasse a circunstância singular dessa descrição – já que o delírio interrompe a razão, ao passo que o relato literário é um exercício que exige razão –, seu conteúdo é ainda mais espantoso. E esotérico. Brás, depois de se constatar transformado na Suma Teológica de Santo Tomás de Aquino, vê-se arrebatado por um hipopótamo, que o informa que irão “à origem dos séculos”. E o conduz ao alto de uma montanha, de onde, de certo ponto específico, vê passar por seus olhos, como “coisa única” uma redução dos séculos, “um desfilar de todos eles, as raças todas, todas as paixões, o tumulto dos impérios, a guerra dos apetites e dos ódios, a destruição recíproca dos seres e das coisas”.

Faz aí menção a um lugar do Universo em que a história humana – toda ela – estaria armazenada: passado e futuro, unificados num presente contínuo. Para descrever esse desfile dos séculos em turbilhão – diz Machado – seria preciso uma impossibilidade física: “fixar o relâmpago”.

Vejamos agora Borges.

O conto chama-se “O Aleph, talvez o mais festejado de seu magnífico acervo. Na história de Brás Cubas, a perda de uma mulher, Virgília, que o troca por outro, o leva àquele estado delirante.

Em Borges, também uma perda feminina, a morte de Beatriz Viterbo, o leva a encontrar o Aleph, que, na definição do homem que dele lhe dá notícia, um poeta medíocre, que julga louco, chamado Carlos Argentino, é “um dos pontos do espaço que contém todos os pontos”. A mesma ideia de Machado, o mesmo fundamento esotérico.

Para contemplar o Aleph, o observador, em vez de subir ao topo de uma montanha (como Brás), deita-se ao rés do chão, no porão de uma casa em ruínas, prestes a ser demolida, e fixa o olhar numa escada velha. Muda o cenário em que cada personagem se instala, mas não o essencial, o que vê.

O personagem de Borges fixa o olhar na parte inferior do degrau, à direita, e percebe uma pequena esfera furta-cor, o Aleph. A partir daí, o que descreve é uma variante do delírio machadiano.

Diz ele:

“Naquele instante gigantesco, vi milhões de atos deleitáveis ou atrozes; nenhum me assombrou tanto como o fato de todos ocuparem o mesmo ponto, sem superposição e sem transparência. O que meus olhos viram foi simultâneo (...). ”

E descreve cenas análogas às de Brás Cubas: o desfile dos séculos, dos impérios, cenas locais de sua cidade, de seu bairro, de seu quarto, mescladas a cenas de outras civilizações e de outras eras, coisas que não entendia, coisas que reconhecia. O Todo em simultaneidade; o relâmpago fixo. A Memória Universal em desfile.

Em um e noutro – em Machado e em Borges –, o tom quase bíblico do relato, à maneira do Apocalipse de São João, igualmente arrebatado, na Ilha de Patmos, por visões místicas, que um psiquiatra não hesitaria em diagnosticar como “alucinações”.

Mas o que é uma alucinação: algo que se vê e não existe ou algo que existe, mas só se vê em estados especiais de consciência, como aqueles que Dostoiévski atribuía às pessoas acometidas de patologias mais graves? Em síntese, é uma ilusão ou uma instância da realidade, acessível e acessável apenas em momentos especiais?

Tais questionamentos permeiam tanto o relato de Machado como o de Borges. Mas há ainda outras coincidências: os personagens Brás e Carlos Argentino evocam seus respectivos países: Brás, de Brasil, e Argentino, de Argentina; e há ainda a semelhança dos nomes Virgília e Viterbo. Atos falhos?

Provavelmente, sim, o que não macula ou diminui a obra de Borges, que é indiscutivelmente original e grandiosa.

Mas, por óbvias razões cronológicas, Borges leu Machado, e Machado não leu Borges. Machado morreu em 1908, quando Borges tinha nove anos. Susan Sontag, no ensaio Vidas Póstumas – O Caso de Machado de Assis, se engana, ao afirmar que Memórias Póstumas só foi traduzido para o espanhol em 1960.

A obra de Machado começou a ser traduzida para o espanhol exatamente em Buenos Aires, a partir de 1940, quando Borges estava em plena atividade, não só como escritor, mas também como crítico literário e ensaísta. E o primeiro livro de Machado em castelhano foi, muito a propósito, Memórias Póstumas de Brás Cubas.

Carlos Fuentes, no ensaio Machado de La Mancha (Editora Fondo de Cultura, México, 2001), captou essas “coincidências” e registra que o próprio Borges, posto diante delas, as reconheceu, declarando: “Por incrível que pareça, acredito que exista (ou tenha existido) outro Aleph” – a que Fuentes acrescenta: “De fato: o de Machado de Assis”.

Maria Esther Vasquez, colaboradora e amiga de Borges por décadas, informou, em entrevista à Folha de S. Paulo, em 1999, por ocasião do lançamento da biografia Borges, Esplendor e Derrota, de sua autoria, que “havia dois escritores de língua portuguesa que ele (Borges) amava: Camões e Machado de Assis”. Borges, porém, nas numerosas entrevistas que concedeu ao longo de sua vida, jamais fez referências a Machado de Assis.

O escritor brasileiro que ele mencionava com frequência era Euclides da Cunha, mais especificamente, seu épico Os Sertões, que considerava obra-prima universal. Citava também dois outros autores de língua portuguesa, Eça de Queiroz e Camões. Ninguém mais.

É possível que tenha omitido Machado de Assis exatamente para não trair a influência. Euclides da Cunha, estilisticamente falando, nada tem a ver com Borges. Nem muito menos Eça ou Camões. Já Machado tem – e muito. Possuem afinidades de concisão, elegância, ironia e erudição, destilada com critério e precisão, em frequentes citações. Os dois tinham ainda em comum o amor à literatura inglesa. Shakespeare os unia.

E mais: foram ambos leitores de Schopenhauer e mesclaram a visão pessimista daquele filósofo à busca aflitiva de transcendência em seus escritos. Ambos se proclamavam sem religião, mas não sem espiritualidade. A busca do conhecimento, em qualquer nível que se dê, vinculada ou não a uma doutrina específica ou a uma crença religiosa, conduz à religação buscada pelos místicos.

Constitui, pois, ato religioso por excelência – que tanto Machado como Borges souberam cultivar, com genialidade.

 


Revista Política Democrática || Rubens Barbosa: Encontros e desencontros entre Brasil e Argentina

Nova tensão entre Brasília e Buenos Aires ocorre por conta de uma escalada retórica em função de divergências ideológicas entre um governo de direita, liberal na economia e conservador nos costumes, no Brasil, e um governo de centro-esquerda, prestes a assumir o poder na Argentina

Como é normal entre países vizinhos, Brasil e Argentina passaram por muitos desencontros e crises ao longo de suas histórias.

Poderíamos começar ainda no século XIX, quando, em 1826, as Províncias Unidas (hoje Argentina) organizaram complô para sequestrar Dom Pedro II, de modo a pôr fim à guerra com o Brasil pelo controle da Banda Oriental (hoje, Uruguai). No início do século XX, de 1906 a 1910, nova crise por um incidente menor: apreensão de um barco uruguaio no Rio da Prata, em área de demarcação contestada entre Argentina e Uruguai. O governo uruguaio pediu apoio ao governo brasileiro. O conflito aumentou e só foi resolvido por ação do barão do Rio Branco e do presidente argentino, Saenz Peña.

Mais recentemente, tivemos momentos de tensão bilateral por ocasião da construção da Hidrelétrica de Itaipu – com questionamentos públicos pela Argentina nos organismos multilaterais, por conta da questão do compartilhamento das águas –, durante a Guerra das Malvinas e no período de governos militares nos dois países.

Agora, nova tensão entre Brasília e Buenos Aires em decorrência não de uma crise, mas de uma escalada retórica em função de divergências ideológicas entre um governo de direita, liberal na economia e conservador nos costumes, no Brasil, e um governo de centro-esquerda, prestes a assumir o poder na Argentina. Declarações de lado a lado acirraram os ânimos entre os presidentes, ministros e altos funcionários, que, do lado argentino, sequer tomaram posse.

A política econômica e comercial do novo governo argentino passou a ser preocupação do governo brasileiro, pela possibilidade de a abertura da economia e a ampliação da negociação externa do Mercosul serem contestadas por políticas protecionistas. Sinalizações nesse sentido poderiam questionar o comércio bilateral e a aprovação do acordo com a União Europeia.

A retórica confrontacionista põe em risco, de um lado, o relacionamento político e diplomático e a cooperação econômica e comercial entre os dois parceiros. E, de outro lado, o futuro do Mercosul.

O processo de integração sub-regional foi reforçado nas últimas reuniões presidenciais por medidas de modernização, enxugamento da burocracia e negociação de acordos comerciais com parceiros extra-zona. Na reunião presidencial do dia 4 de dezembro, encerrando a presidência brasileira, todos apoiaram o fortalecimento do Mercosul, e a sugestão de redução da Tarifa Externa Comum, sem acordo, ficou para 2020.

A Argentina e o Brasil têm, no âmbito do Mercosul, interesses comerciais importantes a preservar. O mercado brasileiro é fundamental para as exportações argentinas, que ajudarão na recuperação da economia, junto com políticas econômicas voltadas para a estabilização que o novo governo vier a tomar. Quanto ao setor privado brasileiro, o mercado argentino é importante para a indústria automobilística e a linha branca. A Fiesp recentemente emitiu nota a favor do fortalecimento do Mercosul, ressaltando que os problemas de funcionamento do bloco devem ser resolvidos de maneira consensual entre os países membros.

A diplomacia parlamentar do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, quebrou o gelo e propiciou encontro com Alberto Fernández, que deveria assumir a Presidência no dia 10. Vozes moderadas do Itamaraty preferem aguardar as definições das novas autoridades argentinas e, depois de informados sobre a nova realidade, buscar consultas bilaterais em nível técnico. Ao Brasil interessa uma Argentina que volte a crescer, estável política e economicamente. Para tanto, Brasília deveria deixar de lado divisões ideológicas e mesmo provocações políticas, como os gestos em relação ao ex-presidente Lula, e manter a “paciência estratégica”.

O bom senso começa a prevalecer e declarações mais moderadas apontam para uma distensão retórica.

Ao longo da história, em todos os momentos de tensão entre os dois países, as crises foram superadas pela ação pragmática da nossa diplomacia, que sempre levou em conta interesses concretos. Essa lição do passado pode ser útil quando a Argentina e o Brasil atravessam mais um momento delicado na relação bilateral.

O determinismo geográfico da vizinhança é um fator que o governo brasileiro não poderá deixar de levar em conta. Diferenças ideológicas não podem contaminar o relacionamento civilizado entre os dois países.

Como disse Saenz Peña, ao superar a crise no início do século passado, “tudo nos une e nada nos separa”. Que suas palavras nos sirvam agora de exemplo. E que prevaleça o que é do interesse nacional dos dois países.


Míriam Leitão: A esperança dos recomeços

Dilema argentino é que reduzir a crise social é urgente, mas sem estabilidade na economia qualquer plano estará fadado ao fracasso

A Argentina vai experimentar de novo o mesmo caminho de ampliar os gastos, estimular o crescimento, não pagar a dívida externa. Esses foram os sinais dados ontem pelo novo presidente Alberto Fernández. O discurso peronista volta com força diante do fracasso do liberalismo defendido pelo ex-presidente Mauricio Macri. O truque do discurso de Alberto Fernández é o mesmo de qualquer político: colocou toda a culpa nos últimos quatro anos. É verdade que Macri fracassou na economia, mas Cristina Kirchner deixou um país já com a crise instalada.

A esperança é sempre tentadora em recomeços, principalmente quando o ritual democrático é respeitado. O Congresso estava lotado de peronistas cantando diante do novo presidente e sua vice eleitos pelo voto direto. Podiam comemorar, era a hora da vitória depois de terem saído do governo há quatro anos. O presidente derrotado em sua tentativa de permanecer no poder, Mauricio Macri, ouviu respeitosamente o canto dos vencedores. No discurso de posse, Fernández exibiu os dados inegáveis da crise e prometeu derrotá-la com os remédios nos quais acredita.

Ele avisou que primeiro quer fazer a economia crescer para depois pagar os credores e disse que o país já está em “default virtual”. Ainda que o FMI tenha mandado mensagem simpática avisando que quer se entender com o novo governo argentino, o fato é que os juros não podem ser pagos por falta de dólares em caixa. Só neste dezembro são US$ 5 bilhões para quem tem reservas líquidas que podem estar abaixo de US$ 10 bilhões. De qualquer maneira, apesar de ele ter falado em renegociação, é possível que o novo governo deixe para anunciar qualquer medida em relação à dívida junto ao FMI e credores privados depois de uma negociação com o Fundo.

O novo governo prometeu um plano de combate à pobreza, mas também diz que vai estimular a produção, decretou emergência na saúde, avisou que fará acordos com os trabalhadores, industriais, produtores rurais. Não disse como pretende combater a inflação, que na Argentina tem sido um problema crônico.

O país, na verdade, há muito tempo não tem inflação sob controle. Em 2002, chegou a 40% ao ano. Foi o ano da crise que levou à moratória. Caiu para 3% em 2003, mas logo tornou a subir e em 2005 já tinha voltado aos dois dígitos, para 12,3%. Cristina tomou posse em 2007 e em 2014 o aumento de preços já tinha disparado para 23,9% ao ano. De 2015, não há estatística oficial, porque ela fez uma intervenção no Indec, o IBGE de lá, que comprometeu toda a credibilidade do índice. Como não vencia a febre, tentou alterar o termômetro. Macri revogou essa intervenção no índice e os preços subiram em parte porque o registro estava subestimado anteriormente. Além disso, estava represada em vários preços, como nos de energia. Essa é a história inteira. Ontem o presidente Alberto Fernández disse que é a primeira vez desde 1991 que a inflação chega a 50%. Isso é verdade, mas apenas parte dela.

O grande dilema argentino é que reduzir a grave crise social é urgente, mas sem estabilidade econômica qualquer plano de transferência de renda aos mais pobres está fadado ao fracasso. Deixar de pagar a dívida externa é mais do que razoável. É determinado pela realidade de não haver dólares. Mas o país precisa voltar a ter moeda. Hoje o peso serve para o pagamento das transações, mas não como reserva de valor, ou poupança, como explicou Carlos Melconian no “Clarín”. O peso é uma meia moeda, com apenas uma parte das funções clássicas.

Alberto Fernández deu também outro recado: vai mandar ao Congresso um projeto de reforma do Judiciário. Afirmou que a Justiça, em vez de julgar, “perseguiu”. E o fez “com agentes de Estado infiltrados e anuência da mídia”. Com uma vice que responde a nove processos, essa será mesmo uma perigosa batalha travada no coração da democracia argentina.

Não há tarefas fáceis pela frente, na economia e na política. Mas como qualquer presidente eleito ele tem a força do voto com ele neste começo. Que saiba usar com sabedoria seu capital político. E saiba que valores quer preservar. Os aplausos o cobriram quando disse: “vamos ouvir os movimentos sociais, como a juventude, o ambientalismo, o feminismo, os setores acadêmicos”. Nesse aspecto, um país normal.


El País: Alberto Fernández defende agenda com Brasil maior que “diferenças pessoais” entre seus líderes

Em discurso de posse, novo presidente argentino promete relação “ambiciosa, criativa e fraternal” com o Brasil

O presidente Alberto Fernández tomou posse nesta terça-feira fazendo uma descrição dramática da situação na Argentina. Disse assumir o governo de um país “praticamente em moratória” e “com 40% da população em situação de pobreza”, e em referência à dívida, lançou uma mensagem transparente: “O país tem a vontade de pagar, mas não tem recursos para isso”. A crueza empregada para falar da crise econômica contrastou, por outro lado, com o tom conciliador do seu discurso de posse. Perante as duas câmaras do Congresso e numerosos convidados estrangeiros, Fernández fez um apelo à fraternidade e a “superar o muro do rancor e do ódio” na política. “Quero ser o presidente que escuta, o presidente do diálogo.” Sobre o Brasil especificamente, disse, ainda no tom conciliatório, que quer construir uma agenda "ambiciosa, inovadora e criativa em temas de tecnologia, produção e estratégia, que esteja respaldada pela irmandade histórica de nossos povos que é mais importante que qualquer diferença pessoal de quem governa". O presidente brasileiro Jair Bolsonaro não foi à posse, e enviou seu vice, Hamilton Mourão.

A posse do novo presidente argentino refletiu um fato importante: diferentemente de outros países latino-americanos, e apesar do drama econômico e social, a Argentina goza de uma saudável normalidade institucional. Alberto Fernández entrou no plenário, onde se reuniam deputados e senadores, empurrando a cadeira de rodas da vice-presidenta em final de mandato, Gabriela Michetti, que é paraplégica. Foi um gesto simples, mas que conferiu humanidade à cerimônia. Depois Mauricio Macri, entregando a faixa e o cetro presidenciais, teve que suportar que a nova maioria cantasse aos brados a Marcha Peronista, e que sua velha rival, a vice-presidenta Cristina Fernández de Kirchner, lhe oferecesse um cumprimento gélido. O agora ex-presidente soube se despedir com elegância. Nestes tempos, isso é muita coisa.

Fernández recordou, por seu tom e suas palavras, Raúl Alfonsín, o presidente que insistiu em receber o bastão de comando (usurpado até então por uma atroz ditadura militar) em um 10 de dezembro, o Dia Internacional dos Direitos Humanos. Fernández, peronista, iniciou sua carreira política na administração de Alfonsín, um membro da União Cívica Radical pelo qual desde então sente um grande afeto. O novo presidente recorreu a uma conhecida frase de Alfonsín, “com a democracia se come, se cura e se educa”, para expressar seu desejo de que o diálogo caracterize seu mandato. “Se alguma vez me desviar do compromisso que assumi, saiam à rua para me recordá-lo”, pediu. Também utilizou com frequência a fórmula “nunca mais”, muito citada desde que o promotor Julio Strassera a usou para encerrar os julgamentos das Juntas Militares da ditadura.

O peso da dívida

Como primeira medida, Fernández jogou na lixeira o orçamento redigido pelo governo antecessor. Explicou que não era possível fazer projeções econômicas sem antes resolver a questão da dívida, a ser renegociada urgentemente com o Fundo Monetário Internacional e com os credores privados. Trata-se de um problema monstruoso. Sob as atuais condições, em 2020 a Argentina enfrentará vencimentos de mais de 58 bilhões de dólares (232,3 bilhões de reais), 36 bilhões (149,3 bilhões) em 2021, e quase 50 bilhões (207,4 bilhões) em 2022, somando as dívida em dólares e em pesos. “O país tem a vontade de pagar, mas não tem os recursos para isso”, admitiu. “Para poder pagar, primeiro é preciso crescer.” O projeto do governo peronista se centra em conseguir que o FMI adie por dois anos o reembolso da parte principal e dos juros da dívida, para dedicar esses 24 meses a recuperar certa estabilidade e relançar uma economia que não cresce desde 2010.

Fernández proclamou que, paralelamente à renegociação da dívida, sua prioridade seriam os mais desfavorecidos, 40% da população que vive na pobreza, sendo 12% mergulhados na miséria, e advertiu que os mais acomodados deveriam fazer “uma maior contribuição” na forma de impostos. “Seriedade na análise e responsabilidade nos compromissos que assumidos para que os mais fracos deixem de sofrer: sob essas premissas confrontaremos toda a negociação da nossa dívida”, afirmou.

Como mecanismo para regular o funcionamento da economia, com objetivos de longo prazo e com políticas de Estado, anunciou a criação de um Conselho Econômico e Social. Também declarou uma “emergência sanitária” para enfrentar a crise da saúde pública: sob o mandato de Macri, o orçamento da saúde caiu 45%. Comprometeu-se também a dirigir “com absoluta transparência” os recursos das obras públicas (houve pouquíssima transparência nesse âmbito durante o mandato de sua hoje vice-presidenta).

Um presidente peronista é obrigado a oferecer um gesto inaugural de bom populismo, e Fernández suscitou um grande aplauso quando anunciou uma intervenção na Agência Federal de Investigação, cujo histórico recente é sinistro, e a supressão completa de seus recursos reservados – esse dinheiro se destinará ao plano contra a fome. “Nunca mais Estado secreto, nunca mais porões da democracia!”, exclamou.

A espionagem política contribuiu para o descrédito da Justiça argentina nos últimos anos, e nesse terreno o presidente enfrenta um campo minado. Quer promover uma “reforma integral” do sistema federal de Justiça para acabar com “as perseguições indevidas”, os “dossiês contaminados” pelos serviços secretos e os “linchamentos midiáticos”. “Nunca mais uma Justiça que persegue segundo os ventos políticos”, disse – mas terá que fazer isso sem dar a impressão de que seu objetivo se limita a salvar sua vice, imputada por corrupção em numerosos processos.

A ex-presidenta adotou uma atitude discreta ao assumir o novo cargo de vice. O protagonismo foi para Alberto Fernández, que reconheceu a “visão estratégica” de Kirchner ao abrir mão da sua própria candidatura, muito divisora, e entregar-lhe a cabeça da chapa que se impôs rotundamente à dupla Mauricio Macri/Miguel Pichetto nas eleições de novembro.

Alberto Fernández dedicou o trecho final de seu discurso a prometer que lutaria para “erradicar a violência contra as mulheres” (surpreendeu que não mencionasse seu compromisso eleitoral de legalizar o aborto) e acabar com a discriminação por raça, gênero, sexualidade ou qualquer outra razão. Nas primeiras filas aplaudia seu filho Estanislao, de 24 anos, desenhista, funcionário administrativo de uma seguradora e transformista. “Voltemos a ganhar a confiança do outro”, pediu o presidente, antes de relembrar que ao final do seu mandato a democracia argentina completará 40 anos.

“Quero que sejamos recordados por termos conseguido voltar a unir a mesa familiar, por termos sido capazes de superar a ferida da fome, por termos superado a lógica perversa de uma economia que gira ao redor da desorganização produtiva, da cobiça e da especulação”, desejou.

Alberto Fernández concluiu seu pronunciamento com uma alusão a seus pais e com lágrimas nos olhos. Depois de muitas saudações e abraços, se dirigiu no seu veículo particular à Casa Rosada, onde deu posse a seus ministros e acenou do balcão à multidão que, sob intenso calor, lotava a praça de Mayo.


El País: Argentina se despede de Mauricio Macri e se abraça ao peronismo

Alberto Fernández assume nesta terça-feira como presidente com a urgência de resolver a crise econômica e renegociar a dívida externa. Mourão vai representar o Brasil na posse

A Praça de Maio de Buenos Aires, cenário da memória política da Argentina, vivenciou uma noite de domingo muito agitada. Dezenas de operários retiraram a grade que desde as revoltas de 2001 a dividia de lado a lado e protegia a Casa Rosada das manifestações. Alberto Fernández, que na terça-feira substituirá Mauricio Macri como presidente, pediu a retirada da grade para que a praça sirva para “acabar com as divisões e unir a Argentina”. Não existirá mais grade, assim como primavera política: Fernández receberá um país que está há dois anos em recessão e tem urgência em renegociar uma dívida externa que se tornou impagável.

As manifestações chegarão agora às portas da sede do Governo, onde já se montou um palco para a festa que virá após a entrega de comando. A Argentina iniciará assim uma nova etapa, marcada pelo retorno do peronismo ao poder — que não é bem vista pelo Governo do vizinho Brasil. Jair Bolsonaro, que já havia lamentado a eleição de Fernández, não vai à posse. Decidiu mandar como representante, de última hora, seu vice, Hamilton Mourão, num "gesto político", segundo o próprio vice. É a primeira vez em 16 anos que um presidente brasileiro não prestigia a troca de comando no país vizinho.

Quando Fernández receber o cetro de comando das mãos de Mauricio Macri terão acabado quatro meses de uma transição envenenada. A derrota governista nas eleições primárias de agosto obrigou Macri a pilotar sem poder a crise econômica que prejudicou a parte final de seu mandato. Em 27 de outubro, as urnas ratificaram a vitória de Fernández em primeiro turno. O Governo anunciava à época que não poderia cumprir com os pagamentos da dívida contraída com donos de bônus privados e com o Fundo Monetário Internacional e impunha um torniquete cambiário para deter a sangria de reservas do Banco Central.

General Hamilton Mourão

@GeneralMourao

Em um gesto político, o presidente @jairbolsonaro me designou para representá-lo na posse do presidente da Alberto Fernández @alferdez . Parto agora de Brasília rumo a Buenos Aires.

Ver imagem no Twitter
3.842 pessoas estão falando sobre isso

Urgido pelo calendário de vencimentos, Fernández terá menos de um semestre para revolver o problema da dívida e apenas poucas semanas para acalmar a ansiedade de seus eleitores, necessitados de respostas rápidas diante da perda do poder aquisitivo de seus salários e da inflação, que nesse ano superará 55%. O homem escolhido para resolver a herança recebida se chama Martín Guzmán, um discípulo do Nobel Joseph Stiglitz, que Fernández repatriou da Universidade de Columbia (Nova York).

Guzmán, de 37 anos, é um especialista em processos de renegociação de dívidas externas, mas sua experiência política é nula. Em novembro, o economista apresentou às Nações Unidas um plano sobre a dívida argentina. Disse à época que Buenos Aires não deve pagar capital e juros até 2022; evitar novos empréstimos do FMI; e neutralizar qualquer hipótese de quebra. Durante o período de indulto, a Argentina reordenará suas contas para tornar “sustentável” a dívida a médio prazo.

Fernández encontrará uma situação econômica debilitada por dois anos consecutivos de queda do PIB (a CEPAL estima -3% para 2019, a pior da região depois da Venezuela e Nicarágua) e um aumento da pobreza a 40%, o maior número em quase 20 anos. O novo presidente apressará a declaração de “emergência econômica”, uma fórmula que lhe permitirá fazer mudanças estruturais por decreto, sem passar pelo Congresso. Para lutar contra a inflação, tentará um grande acordo em que participarão sindicalistas e empresários dispostos, os primeiros, a moderar seus pedidos salariais; e aumentos de preços, os segundos.

Macri e Fernández se abraçam durante um ato religioso realizado no domingo.

Outro cenário de conflito será o Congresso. Fernández contará ali com a espada de Cristina Kirchner, que como vice-presidenta terá sob sua responsabilidade a titularidade do Senado. Kirchner teceu uma rede de apoios que lhe permitirá controlar a Câmara Alta sem problemas. Seu filho, o deputado Máximo Kirchner, liderará o bloco governista na Câmara Baixa. A ex-presidenta será uma figura em que valerá prestar atenção durante o novo Governo. Tão repudiada quanto amada, o desenvolvimento das causas judiciais por suposta corrupção que amealhou durante o macrismo será teste do nível de autonomia dos tribunais.

Macri, enquanto isso, se despediu em câmera lenta. Na quinta-feira fez um balanço muito otimista de seus quatro anos como presidente em uma mensagem gravada que foi retransmitida em rede nacional (em todas as rádios e televisões do país). Durante 40 minutos, limitou a autocrítica ao desempenho econômico e descreveu o que considera os sucessos de sua gestão; a integração da Argentina no mundo, instituições mais sólidas, uma justiça mais independente, uma melhora energética e estatísticas oficiais confiáveis.

Dois dias depois, subiu em um palco na Praça de Maio para dizer adeus aos seus partidários. Ao ritmo de Volví a Nacer, de Carlos Vives, milhares de pessoas cantavam “Você foi o respiro e a esperança era tão grande” instantes antes de Macri aparecer acompanhado de sua esposa, Juliana Awada, e de seu candidato a vice-presidente, o ex-kirchnerista Miguel Ángel Pichetto. “Obrigado, obrigado, obrigado”, repetiu várias vezes o presidente, emocionado às lágrimas. “Esse coração já é mais de vocês do que meu”, disse à multidão, muito inferior aos atos anteriores como o realizado na avenida 9 de Julho dias antes das eleições.

Macri lamentou os supostos “entraves” colocados pelo peronismo durante seu mandato e enviou uma mensagem a seu sucessor: “Pode ter certeza de que após muito tempo irá encontrar uma oposição construtiva e não destrutiva. Encontrará uma oposição firme e serena que defenderá a democracia, a qualidade institucional e nossas liberdades”.

Na mesma noite, Macri divulgou através das redes sociais um vídeo chamado Momentos em que mostra sua faceta mais íntima. “Há tempo para as ambições. Para 2021, para 2023...”, diz no documentário, gravado em primeiros planos que procuram ressaltar a emoção da mensagem. No vídeo, prevê um futuro difícil à coalizão de Fernández pelas múltiplas correntes internas que se uniram para apoiar sua candidatura. “Quando tantos se juntam antes de uma festa, é difícil que a festa dê certo. O DJ precisa ser muito bom”, frisa.

Apesar de suas palavras, o macrismo é hoje o principal afetado pelas divisões, após o abandono de três deputados nacionais e a ruptura de seu bloco na província de Buenos Aires, a maior e mais povoada do país.

O último ato público do presidente antes da entrega do comando foi domingo em Luján. Participou de uma missa pela paz realizada diante da basílica da cidade em que Macri e Fernández se abraçaram em um gesto de harmonia sem precedentes. A partir de terça-feira se verá se não se limita a uma fotografia.


Cida Damasco: Recados dos vizinhos

Chile a Argentina alertam para necessidade de mudar sem esquecer o lado social
A vizinhança inquieta emite sinais de advertência para o Brasil. Como vem acontecendo há bom tempo, cada polo faz a leitura que é do seu interesse das viradas no cenário político do Chile e da Argentina. Para uns, trata-se do fracasso do neoliberalismo e ponto final. Para outros, o erro de Mauricio Macri foi justamente ficar no meio do caminho da política liberal, deixando que o peronismo se reorganizasse e voltasse ao poder. E a explosão dos protestos no Chile se explicaria menos por questões internas e mais por uma “conspiração da Venezuela e de Cuba”.
Guardadas as devidas proporções, ambas são leituras radicais e, como tal, distantes da realidade. O Chile de Sebastián Piñera escancarou que, atrás da fachada de uma economia moderna e competitiva, se escondia um país com profunda desigualdade, sem a contrapartida de uma rede de proteção social. E, em particular, com um regime previdenciário de capitalização extremamente duro, apesar dos ajustes mais recentes para reduzir o empobrecimento dos aposentados. Um quadro que nem de longe lembra o paraíso apregoado por aqui.
Mesmo mais familiar aos observadores brasileiros, a Argentina de Macri também surpreendeu com o vigor da oposição, poucos anos depois da saída de cena ruidosa de Cristina Kirchner, enredada em acusações de corrupção. Visto no início como um símbolo de renovação na política argentina – e até fora das fronteiras do país –, Macri teria frustrado a população no quesito recuperação do crescimento e bem-estar social. Daí a uma pressão mais efetiva dos lobbies corporativos, foi apenas um passo.

O Brasil é uma réplica da Argentina e/ou do Chile? Claríssimo que não. A estrutura econômica é bem mais complexa do que a do Chile, essencialmente baseada na mineração, e menos degradada do que a argentina. Mas, em matéria de educação, por exemplo, a Argentina tradicionalmente vence a disputa com o Brasil, ainda que a crise venha reduzindo essa supremacia. Apesar das diferenças, contudo, os vizinhos têm muito a ensinar ao Brasil de Jair Bolsonaro, mal saindo da recessão e com dificuldades de engatar um ciclo de crescimento mais sustentável.
A equipe econômica empenha-se nesse momento em aprovar um pacotaço de reformas na economia, enquanto corre para providenciar alguns estímulos à demanda de curto prazo. Analistas, investidores e empresários começam a se animar com a essa transição e já refazem suas estimativas de crescimento para o PIB deste ano, mais para perto de 1%. Falta, porém, ampliar essa percepção para os protagonistas da cena econômica, ou seja, os trabalhadores/consumidores. E aí a chave é uma só: o emprego.
É verdade que as estatísticas confirmam uma lenta mas persistente queda do desemprego e um aumento na criação de vagas formais. Mas a herança de quase 28 milhões de pessoas classificadas como “mão de obra subutilizada”, 12,5 milhões delas sem qualquer ocupação, ainda é pesada para convencer a população de que está em curso uma mudança efetiva no mercado de trabalho.
Faz sentido, portanto, a tentativa do governo de dar alguma vitalidade às duas pontas desse mercado, consideradas as mais vulneráveis: a faixa de 18 a 29 anos de idade e acima de 55. A primeira corresponde à entrada dos profissionais no mercado, cada vez mais tardia e altamente competitiva.
A segunda refere-se ao fim de carreira, prematura para os novos padrões de longevidade da população – e para os objetivos da reforma da Previdência, que esticou a idade mínima para o trabalhador ter direito à aposentadoria.
Se sair do papel, esse programa para estimular empregos no setor privado coincidiria com uma ofensiva para, na mão contrária, mexer na remuneração e na carreira do funcionalismo público, um dos pilares da reforma administrativa e da proposta de emenda à Constituição (PEC) de contenção gastos.
De acordo com estudo do Banco Mundial, a média salarial dos servidores públicos federais é 96% superior à dos trabalhadores do setor privado que exercem funções comparáveis. A questão, porém, é atacar privilégios de quem realmente os detém, não necessariamente do conjunto da categoria.
Nessa e em outras mudanças em discussão no governo, todo cuidado é pouco, para que a correção de injustiças atuais “a ferro e fogo” não se faça com a criação de novas injustiças. Argentina e Chile estão aí para provar que o custo político e social pode ser maior do que o que consta das planilhas.

El País: A regra de sangue da Operação Condor, a aliança mortífera das ditaduras do Cone Sul

A Operação Condor, aliança entre Brasil, Argentina, Chile, Uruguai, Paraguai e Bolívia, permitiu a troca de informações e livre trânsito para perseguir, torturar e matar opositores da ditadura no continente

Era novembro de 1978, quando o casal uruguaio de ativistas Lilián Celiberti e Universindo Rodríguez Díaz e seus dois filhos, Camilo, 8 anos, e Francesca, 3 anos, foram sequestrados em Porto Alegre. A família fora raptada em uma operação conjunta entre militares brasileiros e uruguaios que perseguiam os opositores das ditaduras para torturá-los e matá-los. Mas acabou fracassada após ser descoberta por dois jornalistas. O sequestro dos uruguaios, como o caso ficou conhecido, tornou-se, anos mais tarde, o exemplo mais emblemático de como ocorreu, na prática, a Operação Condor.

Na época do sequestro, a Condor era uma aliança secreta formada entre os governos militares do Brasil, Argentina, Bolívia, Paraguai, Chile e Uruguai para perseguir os ativistas contra os regimes militares nesses países. Embora formalizada somente em 25 de novembro de 1975, em Santiago do Chile, essa conexão repressiva já existia desde o início daquela década no continente. O jornalista Luiz Cláudio Cunha, que juntamente com o fotógrafo J.B. Scalco, descobriu o sequestro da família, conta que o caso foi a primeira ação da Condor em território brasileiro. “Até então, não havia nenhuma informação sobre a Condor ter entrado no Brasil”, conta ele, que também é autor do livro Operação Condor: Sequestro dos Uruguaios (L&PM, 2008). “O sequestro foi a única ação da operação flagrada enquanto acontecia”.

Cunha narra que chegou ao flagrante por meio de um telefonema anônimo que recebeu na redação da revista Veja em Porto Alegre, onde era diretor. “Era uma sexta-feira, 17 de novembro de 78, e eu recebi um telefonema de São Paulo, de uma pessoa que não se identificou, dizendo o nome de quatro pessoas e um endereço”, conta o jornalista. “Eu perguntei se eles estavam desaparecidos e me disseram “‘não, estão detenidos [detidos, em espanhol]”. Cunha afirma que chegou ao endereço e fora recebido por Lilián Celiberti, com quem começou a falar em espanhol, e logo duas pistolas apareceram apontadas para sua cabeça. “Me mandaram entrar, e como eu falei em espanhol, acharam que eu era do Uruguai”, afirma. Os militares buscavam por Hugo Cores, um dos principais ativistas uruguaios e alvo da Operação Condor. Ao se identificar como jornalista, e mostrar suas credenciais, Cunha acabou liberado pelos militares e logo se pôs a escrever tudo o que tinha visto.

Embora o jornalista tenha ido ao apartamento da família no dia 17 de novembro, já fazia uma semana que Lilián havia sido sequestrada. E como o caso acabou tornando-se público após a publicação da reportagem, Lílian e Universindo foram torturados e presos, mas não foram mortos. “A regra de sangue da Condor era identificar o inimigo, localizar, mandar o comando para pegar, sequestrar, torturar, extrair as informações, matar e desaparecer com o corpo”, diz Cunha. “No caso de Porto Alegre, como aparecem jornalistas no meio da operação tiveram que abortá-la e não puderam matar os sequestrados. Dali em diante, eles não puderam matar a Lílian e o Universindo, porque virou um escândalo internacional”.

Para que a Condor pudesse alcançar seus objetivos, um dos acordos era o de livre trânsito dos militares, que podiam atravessar as fronteiras sem mandado judicial ou ordem da Justiça, e com anuência dos países que faziam parte do pacto. Além disso, a operação contava com apoio e suporte dos Estados Unidos que, embora não tivessem participação direta nas ações, sabiam que elas existiam. “Os Estados Unidos também forneceram, através da CIA, um sistema de comunicação sofisticado que era utilizado entre todos os países chamado Condortel”, conta Cunha.

A revelação do sequestro e da ação de militares uruguaios em solo brasileiro feita por Cunha e Scalco não jogaram luz, porém, na Operação Condor naquele momento. “Nunca ninguém soube da existência da Condor, que foi uma organização que só apareceu a partir da liberação dos documentos da CIA durante o Governo Clinton nos Estados Unidos [1993-2001]”, explica Cunha. Os documentos liberados pelos Estados Unidos atestando a existência da Condor são mais uma peça que se soma à história das ditaduras tanto no Brasil, como em outros países da América do Sul. E esse quebra-cabeça contraria, obviamente, a tese proferida pelo presidente Jair Bolsonaro de que não houve ditadura no Brasil.

“A regra de sangue da Condor era identificar o inimigo, localizar, mandar o comando para pegar, sequestrar, torturar, extrair as informações, matar e desaparecer com o corpo”

O fim da Condor
A Operação Condor, cujo nome rememora a ave presente no brasão oficial do Chile, terminou no início dos anos 80, juntamente com o arrefecimento das ditaduras no continente. Antes disso, porém, deu um de seus suspiros finais no aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro. Era março de 1980 quando os ativistas Horacio Domingo Campiglia e Monica Susana, do Movimento Peronista Montoneros, que mantinha resistência armada contra a ditadura militar argentina, aterrissaram no Rio para participar de uma convenção. Ao descerem do avião, já havia um corredor polonês de oficiais à espera dos do casal. “Quando eles desceram da escada do avião, perceberam que seriam presos e logo começaram a gritar seus nomes e de onde eram”, conta o jornalista Luiz Cunha.

O desfecho dessa ação realizada por militares argentinos em solo brasileiro é mais amargo do que o sequestro dos uruguaios: Monica e Horacio foram levados naquele mesmo dia para a Argentina onde foram torturados e mortos. Seus corpos nunca foram encontrados. “Na véspera, havia descido um avião no Galeão, modelo Hércules, com uma tropa armada, uniformizada, do exército argentino, que só poderia descer com autorização da aeronáutica”, diz Cunha. “Ou seja, aquela ação era no âmbito da operação repressiva da Condor”.

Foi a própria Argentina que, anos mais tarde, seria o primeiro país a condenar formalmente os chefes da Operação Condor. O longuíssimo julgamento com 105 vítimas e 18 réus teve início em 1999 com cinco casos e foi crescendo gradualmente, durando mais de uma década. Em 2016, um tribunal federal condenou por “associação ilícita no âmbito da Operação Condor” alguns dos principais acusados a penas entre 12 e 25 anos.

Aqui no Brasil, o Estado do Rio Grande do Sul reconheceu oficialmente, em 1991, o sequestro dos uruguaios e os indenizou. Um ano depois, o então presidente do Uruguai, Luis Alberto Lacalle fez o mesmo. Lílián Celiberti ainda hoje é ativista política no Uruguai. Universindo Díaz faleceu de câncer em 2012, aos 60 anos.


Luiz Carlos Azedo: Meia-volta, volver!

“A Argentina é o terceiro parceiro comercial do Brasil, atrás da China e dos Estados Unidos, mas é principal parceiro para a nossa indústria”

O encontro do presidente Jair Bolsonaro com o presidente da Argentina, Mauricio Macri, serviu para reposicionar o novo governo em relação ao Mercosul. Foi uma espécie de “meia-volta, volver!”, depois das declarações do ministro da Economia, Paulo Guedes, logo após as eleições, de que as relações comerciais do Brasil com os vizinhos do Cone Sul não eram uma prioridade. Guedes chegou a contextualizar o comentário de maneira a desdizer seu significado, mas foi preciso o encontro de ontem para que as coisas ficassem realmente mais claras, principalmente para os vizinhos. Bolsonaro e Macri acertaram trabalhar conjuntamente para fortalecer o bloco sul-americano. O ministro Paulo Guedes, nas conversas com os argentinos, procurou desfazer a imagem de que estava de costas para o Mercosul. A Argentina é o terceiro parceiro comercial do Brasil, atrás da China e dos Estados Unidos, mas é principal parceiro para a nossa indústria.

Isso significa que tudo ficará como dantes? Não, diplomatas do Brasil e Argentina discutiram mudanças nas regras do Mercosul que proíbem os países-membros de negociarem separadamente acordos de livre comércio com outros países. No caso brasileiro, Bolsonaro quer enxugar os encargos do Mercosul, reduzir tarifas e burocracia. Abre-se a possibilidade de avanços nas conversas com a União Europeia. Além disso, Paraguai e o Uruguai desejam fazer seus acordos bilaterais. O patinho feio do Mercosul é a Venezuela, que foi outro assunto abordado no encontro. Nesse caso, a afinação entre Bolsonaro e Macri é total: ambos pretendem endurecer o jogo ainda mais com o presidente do país vizinho, Nicolás Maduro, que assumiu novo mandato de seis anos e é considerado um ditador pela maioria dos países do continente.

Macri foi o mais enfático nos ataques a Maduro. Ressaltou que Argentina e Brasil reconhecem apenas a Assembleia Nacional da Venezuela, que é comandada pela oposição e considera Maduro um usurpador. “Reafirmamos nossa condenação à ditadura de Nicolás Maduro. Não aceitamos esse escárnio com a democracia, e, menos ainda, a tentativa de vitimização de quem na verdade é o algoz”, disse Macri. Bolsonaro foi mais comedido em relação a Maduro, mas reiterou que Brasil e Argentina jogarão juntos no caso da Venezuela: “Nossa cooperação na questão da Venezuela é o exemplo mais claro do momento. As conversas de hoje (ontem) com o presidente Macri só fazem reforçar minha convicção de que o relacionamento entre Brasil e Argentina seguirá avançando no rumo certo: o rumo da democracia, da liberdade, da segurança e do desenvolvimento”, disse.

Recessão
O fato de o Brasil e a Argentina terem governos ultraliberais tem um peso específico no continente, mas há uma variável imponderável: ao contrário de Bolsonaro, que acabou de assumir o governo, Macri está terminando seu mandato, em meio a um tremendo fracasso econômico. Os preços na Argentina subiram 2,6% em dezembro, com inflação anual de 2018 em 47,6%, a maior desde 1991. A meta de inflação de 23% em 2019, já considerada muito alta, dificilmente será alcançada, num ano de eleições presidenciais, nas quais Macri ainda pretende disputar a reeleição.

Com os preços descontrolados, o Banco Central argentino fez um ajuste duríssimo, com juros de até 70% e retirada de pesos do mercado. O dólar estabilizou em 37 pesos, mas a economia está em recessão: 2,5% em 2018; previsão de 2%, em 2019. Macri terá dificuldades para manter esse ajuste, quando nada porque os salários sofreram uma perda de poder de compra próxima a 10%, a maior desde 2002. Até o FMI prevê dificuldades para manter o ajuste, cujas projeções apontam que somente em 2024 os argentinos conseguirão recuperar o nível de vida de 2017. Será difícil para Macri resistir às pressões dos sindicatos por aumentos de salários e manter o acordo feito com o FMI.

À deriva
A propósito, a Inglaterra nunca esteve tão à deriva. Conservadores britânicos e unionistas da Irlanda do Norte salvaram a primeira-ministra Theresa May, derrotando por apenas 19 votos a moção de desconfiança apresentada pelos trabalhistas para evitar que o líder da oposição, Jeremy Corbyn, a substituísse, depois de a maioria esmagadora do parlamento do Reino Unido ter rejeitado o acordo de saída da União Europeia. O Brexit continua um salto no escuro, porque a primeira-ministra ainda não tem um plano B.

http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-meia-volta-volver/


El País: EUA e China acertam trégua de 90 dias em guerra comercial e ganham tempo para novo pacto

Trump e Xi Jinping chegaram ao acordo, que entra em vigor a partir de 1 de janeiro, numa reunião de duas horas e meia após encerramento do G20 em Buenos Aires

Um compromisso que não termina com a disputa, mas que faz ganhar tempo. China e Estados Unidos chegaram neste sábado a um acordo para não impor novas tarifas comerciais a partir de 1.o de janeiro. O presidente do gigante asiático, Xi Jinping, e o da potência norte-americana, Donald Trump, comprometeram-se a continuar as negociações para buscar uma solução à guerra comercial entre os dois maiores blocos econômicos mundiais, segundo informaram os veículos estatais chineses e a Casa Branca. Mas o compromisso é estritamente temporário – uma trégua de 90 dias – e não inclui nenhuma medida mais relevante.

O pacto foi alcançado numa reunião de duas horas e meia que os dois mandatários realizaram em Buenos Aires, após o encerramento da cúpula do G20, e que se transformou na única notícia de peso da última jornada do encontro: na declaração final da reunião de chefes de Estado e Governo das 20 maiores economias do planeta, os líderes haviam reconhecido os “problemas do comércio” mundial e se abstiveram – por vontade dos EUA – de condenar o protecionismo, um dos sinais de identidade da Administração Trump. O texto reconhecia também que o comércio multilateral havia “falhado em seus objetivos” e destacava a necessidade de reformar a Organização Mundial do Comércio (OMC).

Washington deu um passo além em seu ataque contra a China: informou que a reunião entre Trump e o presidente argentino, Mauricio Macri, tinha se concentrado na “atividade econômica predatória chinesa”. Havia sido num breve comunicado assinado pela porta-voz de Trump, Sarah Sanders. Mas a palavra “predatória” (“predatory Chinese economic activity”, no texto completo em inglês) caiu como uma bomba no país anfitrião, que esperava que Buenos Aires fosse o lugar escolhido para que ambos os países firmassem o “cachimbo da paz” ou que pelo menos afastassem suas diferenças. No final, acabou sendo assim graças à reunião de última hora.

Xi e Trump, no encontro bilateral.

Tarifas de 10%
Em declarações aos jornais na capital argentina, o vice-ministro chinês de Comércio, Wang Shouwen, explicou que as tarifas existentes continuarão em 10% e que não serão impostas tarifas a produtos novos. Ambas as partes seguirão as negociações para encontrar uma solução que permita retirar essas alíquotas. Se até lá não conseguirem chegar a um consenso, as tarifas subirão para até 25% – o valor que se esperava que entrasse em vigor a partir de 1º de janeiro.

Em nota, a Casa Branca confirmou o acordo de trégua. Segundo Washington, Pequim comprará “uma quantidade ainda não decidida, mas muito substancial, de produtos agrícolas, energéticos, industriais e outros dos Estados Unidos para reduzir o desequilíbrio comercial entre nossos dois países”. No caso dos produtos agrícolas – um dos objetivos buscados pela potência norte-americana –, as compras começarão de imediato. Trump e Xi, de acordo com a Casa Branca, “acordaram começar imediatamente negociações sobre mudanças estruturais com respeito à transferência forçosa de tecnologia, proteção da propriedade intelectual, barreiras não alfandegárias, pirataria e intrusões informáticas, serviços e agricultura”.

O objetivo é que essas negociações tenham conseguido fechar um acordo para dentro de 90 dias. “Se no final desse período as partes forem incapazes de chegar a um pacto, as tarifas que se encontram a 10% subirão para 25%”, confirma o comunicado dos EUA. Antes da reunião com Xi em Buenos Aires, Trump ameaçava elevar a 25% em 1º de janeiro as tarifas de 10% que os EUA agora impõem sobre 200 bilhões de dólares de produtos chineses. Esse passo preocupava não só a China, mas também o mundo todo: teria sido um passo de gigante, de consequências incalculáveis na escalada entre as duas maiores potências do globo. Os mercados financeiros devem respirar um pouco mais tranquilos na próxima segunda-feira.

Incluído nas conversações entre Xi e Trump, revelou a Casa Branca, há um pacto pelo qual a China, “num maravilhoso gesto humanitário”, designará o fentanil como uma substância controlada e castigará “com a maior pena de acordo com a lei” quem vender essa substância aos EUA. O fentanil é um analgésico entre 50 e 100 vezes mais potente que a morfina, cujo uso foi vinculado ao aumento de mortes por overdoses de opiáceos nos EUA. A substância entra nesse país sobretudo pelo tráfico de grupos mafiosos na China e no México.

O ministro chinês de Relações Exteriores, Wang Yi, confirmou em entrevista coletiva que Pequim acordou comprar mais bens norte-americanos para tentar reduzir o desequilíbrio na balança comercial. O ministro descreveu a conversa entre Xi e Trump como “amistosa e sincera”. Ambos, segundo Wang, concordaram que a China e os EUA “podem e devem” garantir o sucesso de suas relações.


El País: G20 corre o risco de fracassar por causa da tensão com a Rússia e guerra comercial entre China e EUA

Washington e Pequim se esforçam para alcançar um consenso mínimo fora da agenda oficial

Vladimir Putin está há 18 anos no poder. Nenhum outro mandatário da cúpula G20 tem experiência comparável. Nem o mesmo cinismo ou a mesma habilidade para provocar e controlar conflitos, nem a crueldade quando se trata de exterminar adversários, nem a brutalidade bélica. Ao seu lado, opríncipe saudita Mohamed Bin Salman é um aprendiz. Putin, que parece ter iniciado uma nova fase em sua estratégia de devorar a Ucrânia, lança mão agora de seus talentos na reunião de Buenos Aires: vincula as sanções contra seu regime com o protecionismo, dedica uma efusiva saudação a Bin Salman (seu inimigo na Síria) e dá de ombros quando se fala da nova crise entre Moscou e Kiev. A cúpula do G20 iniciada na última quinta-feira, marcada pela guerra comercial entre os Estados Unidos e a China e as divergências sobre a mudança climática, corre o risco de fracassar. É o ambiente de tensão em que Putin se sente à vontade.

A foto do Grupo dos 20 com a qual a reunião argentina começou mostra o príncipe Bin Salman relegado a um canto, junto com o presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e os primeiros-ministros da Austrália e da Itália. Cabe a ele exercer a função de rejeitado. A guerra com a qual ele assola o Iêmen (apoiado pelos EUA) e o assassinato em Istambul do incômodo jornalista Jamal Khashoggi (que os EUA consideram um assunto de menor importância) o transformaram num pária dentro da comunidade internacional. Trump o protege, mas prefere não se mostrar com ele numa atitude amistosa. Nessa mesma foto grupal, Putin posa impassível. Conhece bem os ritos e os truques desses encontros.

O príncipe Salman não recebeu outros abraços a não ser os do presidente argentino, Mauricio Macri, anfitrião e portanto obrigado, e os de Putin, seu inimigo no tabuleiro sírio (se é que se pode chamar tal matança de tabuleiro) e seu aliado ocasional no terreno energético. O francês Emmanuel Macron trocou algumas palavras com o príncipe saudita “sobre petróleo”, segundo o Palácio do Eliseu. Na verdade, foi um diálogo tenso, cheio de subentendidos (“você não me escuta quando falo”, “sou homem de palavra”) e sem nenhum sorriso. A primeira-ministra britânica, Theresa May, reuniu-se ontem à noite com o homem forte do regime de Riad. Segundo um porta-voz de Londres, May lhe expressou a necessidade de terminar com a guerra do Iêmen (um grande negócio para os fabricantes de armas europeus, com exceção dos alemães) e de “tomar medidas” para que “um incidente tão lamentável” quanto o brutal assassinato de Khashoggi não volte a ocorrer.

Donald Trump, evidentemente, está no centro dos conflitos mais graves. Isso é inevitável. Ele é o presidente dos EUA, e é Donald Trump. Quando embarcou no Air Force One com destino a Buenos Aires, Trump enviou um tuíte para anunciar que cancelava seu previsto encontro com Putin. O motivo, supostamente, era o ataque russo contra navios militares ucranianos e o sequestro de seus tripulantes. Mas há muito mais entre Trump e Putin. Continua avançando a investigação sobre a possível cumplicidade do Kremlin com a campanha eleitoral do hoje presidente dos EUA. E Trump, que em seu jogo amigo-inimigo com Moscou, utiliza instrumentos tão perigosos quanto os arsenais nucleares (retirou-se do desarme) e prefere não se exibir muito na companhia do presidente russo.

Trump também protagoniza um dos conflitos potencialmente letais para essa reunião: sua guerra comercial com a China, que já freou o crescimento econômico mundial. Mas, como prova de que nesses encontros supostamente igualitários mandam os de sempre, a questão comercial será resolvida – de maneira boa, ruim ou regular – fora do tempo: com o comunicado oficial já emitido, Trump e o presidente chinês, Xi Jinping, se reunirão para jantar (salvo imprevistos) na noite deste sábado e decidirão por conta própria. Donald Tusk, presidente do Conselho Europeu e representante de um terço da economia mundial, proclamou na quinta-feira que a União Europeia (UE) promove o comércio livre e justo. Sua voz foi ofuscada pelo atrito entre as duas hiperpotências.

Trump não quer ouvir falar de mudança climática, e nessa disputa está sozinho. Até mesmo Xi se une, pelo menos verbalmente, aos que consideram necessário agir com urgência contra o aquecimento global. O presidente Macron procura liderar, no que se refere ao clima, o campo contra Trump.

O que se pode esperar da reunião plenária deste sábado e da declaração final? Os técnicos de Washington e Pequim se esforçam para alcançar um mínimo de consenso fora da agenda oficial. A anfitriã Argentina carece de autoridade moral para promover acordos, pois seu sistema tarifário é um dos mais impenetráveis do mundo. E Putin esgrime cinicamente o livre comércio como argumento para desqualificar as sanções econômicas com as quais os EUA e a UE o pressionam para que deixe de abocanhar território ucraniano: essas sanções, diz ele, são manobras protecionistas. Para saber se a guerra comercial continuará se agravando ou se terá uma trégua, será necessário esperar a noite este sábado, e bem tarde. Sobre o clima, haverá palavras vagas – se é que será possível encontrar palavras vagas o bastante para não irritar Trump. Os acordos menores (promessas para os países em desenvolvimento, renovação do sistema de cotas do FMI, reflexões sobre o futuro do trabalho e coisas do gênero) poderiam se transformar no mais relevante de Buenos Aires.

TEMER ACREDITA QUE GOVERNO BOLSONARO VAI CONTINUAR NO ACORDO DE PARIS

POR AGÊNCIA BRASIL

O presidente Michel Temer reafirmou neste sábado em Buenos Aires, durante a cúpula do G20, o compromisso do Brasil com o Acordo de Paris e disse acreditar que seu sucessor, Jair Bolsonaro, não romperá este entendimento. "Evidentemente que essas questões são levantadas, mas depois são equacionadas. Não vejo que não terão apoio [as questões climáticas e ambientais] do novo governo", disse após reunião da Cúpula do G20.

Temer informou ainda que as colocações do presidente da França, Emannuel Macron, questionando o compromisso de Bolsonaro com o Acordo de Paris, não foram tratadas na reunião do G20. "Apenas o presidente da França falou disso [fora da reunião], fazendo uma relação com os possíveis acordos [do Mercosul] com a União Europeia, mas não houve uma palavra aqui sobre isso" , disse. "Não creio que haveria modificação da posição brasileira [no Acordo de Paris]", enfatizou.

Em entrevistas, o presidente francês, Emmanuel Macron, condicionou o avanço do acordo entre a a União Europeia e Mercosul ao apoio do governo brasileiro ao Acordo Climático de Paris. Bolsonaro respondeu que não fará acordos internacionais na área de meio ambiente que prejudiquem o agronegócio. Entretanto, ele ponderou que a posição não é definitiva.


Míriam Leitão: Filmes de época

Crise na Argentina e atos de Trump cabem em filmes de época. A Argentina vive nos últimos dias cenas de um filme de época: congelamento de preços, ida ao FMI, crise cambial, os maiores juros do mundo. Nos Estados Unidos, os atos encenados por Donald Trump, também parecem filme antigo, com surtos de protecionismo e o conflito com o Irã de volta. No Brasil o dólar tem subido. Mas não é filme velho, é uma nova temporada da série.

O dólar está subindo no mundo inteiro em relação a várias moedas. Essa alta tem sido forte no Brasil. Mas, como disse o presidente do Banco Central Ilan Goldfajn, no “Jornal das 10”, da GloboNews, o país está preparado para enfrentar as turbulências internacionais. O fato de Ilan ter demonstrado calma diante da volatilidade deixou alguns analistas nervosos. Achavam que ele deveria ter demonstrado mais preocupação e dado sinais de que vai continuar oferecendo operações de swaps para conter as altas.

No começo de 2016 o dólar valia R$ 4,00. Na época, o Brasil tinha perdido o grau de investimento e havia uma enorme incerteza sobre o governo Dilma. Depois disso, a cotação começou a cair. Agora voltou a subir. O câmbio a R$ 3,6 como estava cotado ontem é bem mais baixo, portanto, do que estava há pouco mais de dois anos. Períodos de altas e quedas são normais no câmbio flutuante. Sempre haverá temporada de elevação, por razões internas ou externas. A grande pergunta é que fragilidades o país tem quando está diante das oscilações de moedas.

A Argentina está com muitos pontos fracos e é por isso que começa a viver as velhas cenas de idas ao FMI, ou altas bruscas das taxas de juros para tentar conter a disparada do dólar. O presidente Mauricio Macri errou quando decidiu pelo ajuste gradual. Não conseguiu vencer a crise que herdou, e os avanços da conjuntura — maiores reservas, menor inflação, correção tarifária — vão se perder exatamente nessa crise na qual o país está vivendo situações que lembram o passado. A Argentina, como o Brasil, enfrentou nos anos 1980, 1990 e começo dos 2000 crises inflacionárias e cambiais. Lá, a alta do dólar tem elementos das crises do passado. Aqui, faz parte do contexto de oscilação cambial que sempre ocorre quando a incerteza no mundo aumenta. São movimentos de natureza diferente.

Nos Estados Unidos, desde a posse do presidente Donald Trump a sensação que se tem é de retrocesso. É como se a gente tivesse que assistir a filmes antigos de má qualidade. Ele tem surtos protecionistas de um primarismo que há muito tempo não se vê. A decisão de sair do acordo do Irã foi, na definição da embaixadora Susan Rice, ex-conselheira de Segurança Nacional, a “mais estúpida” possível, porque o país abdicou do poder de melhorar o acordo e não está claro o que os americanos têm a ganhar. Tudo o que se conseguiu foi dar argumentos para a linha dura iraniana. Os Estados Unidos ficaram isolados, porque a União Europeia tomou a decisão conjunta de permanecer e fortalecer o acordo. Empresas americanas perderão negócios já fechados, como a Boeing.

O problema de Trump não é apenas ele mesmo, mas a turbulência que pode causar no mundo. Sua política de liberar mais estímulos para uma economia já em pleno emprego e ao mesmo tempo elevar barreiras ao comércio contrata inflação, o que terá como consequência juros mais altos. E é esse cenário que o mercado de moedas está antecipando. Além disso, Trump cria pontos de estresse na política internacional.

Para nós, o que interessa é que o mundo está mais incerto e a Argentina, mais frágil. Isso sem dúvida nos afeta. A Argentina é o nosso terceiro maior parceiro comercial e destino de US$ 17 bilhões de exportação. As turbulências americanas, econômicas ou geopolíticas, afetam o mundo inteiro e podem provocar uma queda do crescimento mundial. O Brasil hoje está menos vulnerável que há três anos. No começo de 2015, o déficit em transações correntes era de 4,5% do PIB. Hoje, é de 0,38%. Um ponto fraco, porém, permanece: o enorme déficit das contas públicas.

Quando há velhos filmes em cartaz, o melhor a fazer é não repetir enredos antigos. O BC não tem que ficar nervoso porque o dólar sobe. Deve atuar quando for o caso. E a Fazenda tem que evitar, neste ano eleitoral, a piora das contas públicas.