Argentina
O que se sabe sobre o ataque armado contra Cristina Kirchner
Marcia Carmo*, BBC News Brasil
Imagens veiculadas por canais de televisão do país mostram o momento em que uma pistola é apontada para o rosto de Kirchner e, apesar de o gatilho ser puxado, o disparo falha. Segundo a polícia, a arma teria ficado a centímetros de distância da ex-presidente da Argentina.
Montiel, de 35 anos, portava uma pistola Bersa 380, calibre 32 — de fabricação argentina — carregada com cinco balas, segundo informações da Polícia Federal à imprensa.
A ação do homem, que usava uma touca preta e uma máscara facial, chamou a atenção dos apoiadores da ex-presidente que o agarraram, no meio da multidão, conforme mostram as imagens das emissoras locais.
Na hora de apertar o gatilho contra Cristina, ele tira a máscara, deixando o rosto visível, como mostram imagens da televisão.
No momento em que foi flagrado, ele tentou fugir, mas foi agarrado pela camiseta, no meio da multidão reunida próximo ao prédio onde a ex-presidente mora no bairro da Recoleta.
O homem foi preso e levado para uma delegacia na cidade de Buenos Aires, onde no fim da noite de quinta-feira continuava detido. A expectativa é que ele preste declaração nesta sexta-feira.
De acordo com fontes policiais, ele já teria sido preso pela Polícia da Cidade em março de 2021 quando portava uma faca.
Montiel teria chegado à Argentina ainda criança, em 1996. De acordo com informações da polícia, a partir das redes sociais de Montiel, ele possui tatuagens com símbolos nazistas. Nas suas redes sociais, ele se identificava como Fernando 'Salim' Montiel e era seguidor de grupos como 'comunismo satânico', entre outros 'ligados ao radicalismo e ao ódio', como definiu o portal do jornal La Nación, de Buenos Aires.
As fotos de Montiel estão em destaque nos portais de notícias e nas emissoras de televisão da Argentina, que recordam ainda uma aparição recente feita por ele em uma reportagem realizada pela Crónica TV nas ruas de Buenos Aires. Ele aparece opinando que os planos sociais não ajudam.
"O que ajuda é sair para trabalhar", diz diante da câmera.
Presidente do Senado, Cristina Kirchner tinha saído do Congresso para casa, quando o fato ocorreu pouco depois das nove da noite.
Após o atentado, como vem sendo definido por políticos e analistas argentinos, especialistas questionaram o esquema de segurança da vice-presidente. Eles apontaram para a "vulnerabilidade" que teria permitido que o brasileiro chegasse perto do seu rosto.
Cristina Kirchner costuma se pronunciar através de suas redes sociais e de discursos públicos. Até a manhã desta sexta-feira (2/9), ela ainda não tinha se manifestado publicamente sobre o atentado que sofreu.
Após o caso, o policiamento foi reforçado nos arredores de onde Cristina mora.
'Imensa' gravidade
O presidente Alberto Fernández realizou um pronunciamento em rede nacional pouco tempo após o ataque. Para ele, é o fato "mais grave" desde o retorno da democracia no país, em 1983.
Na suas declarações, Fernández disse que a vice-presidente "está com vida porque, por alguma razão, a arma não disparou".
O presidente definiu o caso como de "imensa gravidade".
"Esse fato é de imensa gravidade. A arma tinha cinco balas, mas não disparou. Esse atentado merece o total repúdio de todos. A violência não pode ameaçar a democracia", afirmou.
"Podemos discordar, podemos ter profundas divergências, mas em uma sociedade democrática os discursos que incitam o ódio não têm lugar porque causam violência, e a violência não pode conviver com a democracia."
O presidente também anunciou que decidiu "declarar feriado nacional nesta de sexta-feira para que, em paz e harmonia, o povo argentino possa se manifestar em defesa da vida, da democracia e em solidariedade à nossa vice-presidente".
O ex-presidente da Argentina Mauricio Macri, opositor de Kirchner, escreveu no Twitter:
"Meu repúdio absoluto ao ataque sofrido por Cristina Kirchner, que felizmente não teve consequências para a vice-presidente. Este gravíssimo fato exige um imediato e profundo esclarecimento por parte da Justiça e das forças de segurança."
Deputados e senadores da base governista, reunidos na coalizão Frente para a Vitória (FPV), se manifestaram no Congresso Nacional contra o ataque.
"Não a mataram porque Deus é grande", disse o senador governista José Mayans.
"Pedimos investigação, esclarecimento", disse o deputado governista Sergio Palacio.
Políticos da oposição também declararam respaldo à vice-presidente. Mas o decreto de Fernández instituindo feriado nacional, nesta sexta-feira, gerou críticas de setores opositores. O peronista Miguel Ángel Pichetto, atualmente ligado ao ex-presidente Macri, esteve entre os que criticaram o discurso do presidente em cadeia nacional e a decretação de feriado.
"O presidente não entendeu nada. A oposição deu sua solidariedade à vice-presidente. Mas ele culpou a oposição, a Justiça e os veículos de comunicação. E feriado nacional, para que?", escreveu Pichetto em suas redes sociais.
A BBC News Brasil pediu ao Itamaraty um posicionamento do governo brasileiro sobre o episódio na Argentina, mas ainda não recebeu resposta.
Nos últimos dias, o prédio onde a ex-presidente mora tem sido ponto de encontro de seus apoiadores que contestam o pedido do Ministério Público para que ela seja condenada a 12 anos de prisão por supostos casos de corrupção durante seu mandato.
*Texto publicado originalmente em BBC News Brasil.
Marcus André Melo: Por que o STF está na berlinda?
O momento em que mais precisamos da Corte, é quando ela enfrenta os maiores ataques
“Por que eu vou ser o único presidente da Argentina a não ter a sua própria Corte?”
Foi assim que Carlos Menem (1930-2021) justificou sua iniciativa de criar uma maioria na Suprema Corte argentina. O caso ilustra um paradoxo já identificado na literatura: um Judiciário independente é difícil de emergir nos contextos em que se faz mais necessário; e fácil de se consolidar onde ele não importa.
Nas democracias maduras, como a Inglaterra, a Suprema Corte não importa muito. Tanto que uma só foi criada no país em 2009. Há um equilíbrio institucional robusto que dispensa não só sua existência mas também a adoção de uma constituição escrita.
Em regimes autoritários, as cortes importam pouco porque neles elas são facilmente manipuláveis. O efeito é não linear: elas importam muito nos casos intermediários. É nos casos de mudança de regime ou alternância de poder entre forças políticas díspares que o Judiciário adquire centralidade política. Nas democracias estabelecidas isso só ocorre em situações muito raras (EUA sob Trump). Estou tratando aqui de centralidade política; não protagonismo em questões morais e comportamentais.
No caso do STF, sua centralidade política alcançou contornos sem paralelo em democracias. Seu hiperprotagonismo é magnificado por três fatores: seu papel como corte criminal em contexto em que ocorreu um dos maiores casos de corrupção já registrados e que atinge uma massa inédita de agentes políticos, inclusive três presidentes da República; a contenção que exerce em relação a um Executivo autoritário e populista, cujo discurso é abertamente antidemocrático; e pela elevada heterogeneidade política —que é produto da alternância— e modus operandi individualizado.
Este último se expressa no ativismo processual e produz intensa cacofonia. O individualismo é insidioso: os casos controversos em que a corte atuou de ofício, sem ser provocado (caso da Revista Crusoé), o leitmotif que deflagrou o processo foi o envolvimento de um membro do próprio Supremo nas denúncias.
E o que é muito mais grave: motivações individuais ligadas à Receita Federal e a Lava Jato parecem explicar a alteração de voto e a reviravolta ocorrida no julgamento de Lula.
Inicialmente restrito à esquerda, a ofensiva à Corte concentra-se recentemente no bolsonarismo. Como mostrou Gretchen Helmke, em análise de 472 casos na América Latina, há expressiva correlação negativa entre ataques às Supremas Cortes (impedimento de juízes, CPIs, intervenções etc) e a avaliação que desfrutam junto à opinião pública.
O momento em que mais precisamos da Corte, é quando ela enfrenta os maiores ataques. E seu maior desafio.
*Professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA)
Alon Feuerwerker: Cone Sul
O recrudescimento da Covid-19 no Cone Sul do continente (leia) produz problemas não apenas sanitários, mas também políticos. No Brasil, o governo de Jair Bolsonaro está às voltas com uma CPI. Na Argentina, o prefeito da capital rebelou-se contra as novas medidas restritivas de Alberto Fernández (leia). E no Uruguai acabou a lua de mel com o recém-eleito Luis Alberto Lacalle Pou (leia).
Os três países são governados por distintas correntes políticas. Grosso modo, e com todas as relativizações possíveis, direita no Brasil e esquerda na Argentina. No Uruguai, o que hoje em dia seria aqui chamado de centro. Também foram três modelos diferentes de combate ao vírus. Respectivamente, isolamentos sociais descentralizados (Brasil), tentativa de lockdown nacional (Argentina) e "modelo sueco" (Uruguai).
Uma hipótese para o repique regional é o espalhamento da variante de Manaus, mais contagiosa, disseminada com a ajuda das porosidades fronteiriças do continente. A isso certamente se juntam uma certa desorganização estatal e a ausência da desejável (pelo menos em pandemias) disciplina social encontrada nos países que vêm melhor conseguindo enfrentar o desafio.
*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação
El País: Agenda progressista da Argentina dá oxigênio à esquerda na América Latina
Legalização do aborto põe o país na vanguarda da região, em contraposição ao conservadorismo de Bolsonaro, à inércia de López Obrador e ao autoritarismo do eixo bolivariano
Federico Rivas Molina e Francesco Manetto, El País
A lei de aborto legal aprovada em 29 de dezembro na Argentina movimentou a esquerda latino-americana. Perdida a hegemonia do começo deste século, quando quase todo o continente estava dominado por Governos progressistas, as contadas voltas ao poder se viram prejudicadas pelas crises econômicas e, depois, pela pandemia. Agora, a recuperação da agenda em prol dos direitos sociais pode ser o alicerce de novos feitos, oxigenando a esquerda regional.
Na Argentina, Bolívia e México, onde a esquerda ou as propostas anti-establishment voltaram ao poder, passando pelos movimentos de insurreição popular no Chile e no Peru e as tentativas de uma construção política alternativa no Brasil e Colômbia, os projetos progressistas procuram um rumo que lhes permita reverter a atual hegemonia conservadora. O caminho é longo. Se falarmos de aborto legal, por exemplo, apenas Uruguai, Cuba, Guiana e Guiana Francesa avançaram antes da Argentina. E, embora a nova lei ponha o país platino na vanguarda, nações como o México estão, em seu conjunto, ainda muito distantes disso, apesar das bandeiras tremuladas por Andrés Manuel López Obrador.
O presidente mexicano, que recebe repetidas críticas do movimento feminista, defendeu na sua última entrevista coletiva deste ano que “as estruturas de poder” não deveriam intervir em decisões como a regulação da interrupção da gravidez, um tema sobre o qual, acrescentou, “há pontos de vista favoráveis e contrários”. A aposta dele seria, em todo caso, convocar um referendo. “O melhor é consultar os cidadãos e, neste caso, as mulheres. Há mecanismos para poder solicitar uma consulta.” López Obrador evita assim tomar partido sobre o direito ao aborto num país onde apenas a Cidade do México e o Estado de Oaxaca permitem a interrupção livre e gratuita da gestação até a 12ª semana.
Sua posição não é, entretanto, tão taxativa como a de outros líderes latino-americanos progressistas que não renunciaram a postulados tradicionalmente conservadores sobre o aborto. O dirigente opositor colombiano Gustavo Petro, por exemplo, voltou a declarar nesta semana que o caminho não deveria ser a proibição, e sim uma melhora na educação para chegar a uma “sociedade [com] zero aborto”. Tempos atrás, o ex-presidente equatoriano Rafael Correa foi além e ameaçou renunciar ao mandato se o Parlamento aprovasse a legalização. “Eu jamais aprovarei a despenalização”, anunciou no começo de seu último mandato, em 2013.
Parece um paradoxo, mas suas palavras são semelhantes às pronunciadas por Jair Bolsonaro no Brasil, um país que abraçou o extremismo conservador e, por seu peso, pode ditar a agenda regional. O presidente brasileiro também sentiu a onda expansiva iniciada em Buenos Aires. “No que depender de mim e do meu Governo, o aborto jamais será aprovado em nosso solo”, escreveu o presidente no Twitter. No Paraguai, o Congresso fez um minuto de silêncio por “pelas milhares de vidas dos irmãos argentinos que serão perdidas antes de nascer”.
“Estamos conscientes de que somos olhados”, diz Vilma Ibarra, secretária jurídica e técnica da presidência argentina e articuladora da lei de interrupção da gravidez aprovada no Congresso. “Sobretudo as mulheres nos olham. Abraçamos outras experiências porque sabemos que sem elas não chegaremos lá. Foi duro para as mulheres argentinas, mas a Espanha, Cuba, Uruguai e a Cidade do México nos abriram caminho. O bom dessas lutas é acompanhar e transmitir experiências. Agora vamos poder transmitir experiências na região”, diz Ibarra em uma teleconferência com correspondentes estrangeiros.
A retomada da agenda progressista na Argentina pode estimular movimentos semelhantes em outros países. A experiência boliviana, com a vitória eleitoral do presidente Luis Arce um ano depois da saída antecipada de Evo Morales, deu novo impulso à ideia da volta. Mas os problemas econômicos complicam os planos de expansão. O custo político de um ajuste pode ser excessivo. “À direita, o discurso de menos Estado com ajuste fiscal é natural. Mas à esquerda, a promessa de uma sociedade mais igualitária e com mais Estado, em um momento com menos dinheiro, ajuste fiscal e pandemia, soa mais complicado. Isso gera a tentação de recorrer às minorias, a uma agenda de expansão de direitos civis que não é só o aborto. Expande-se a ideia indigenista, retoma-se a agenda de longo prazo, de reforma cultural da sociedade”, explica o jornalista e analista Carlos Pagni, colunista deste jornal para questões latino-americanas. Trata-se, portanto, de reescrever os discursos, mas sem tropeçar nas pedras que no passado a afastaram do poder.
A essas reflexões se somam os debates de viés religioso ou relativos à influência política das igrejas que proliferam na América Latina e que em alguns casos engrossam as fileiras dos chamados partidos-movimentos de esquerda. “Há um esforço tácito de não se meter em assuntos que possam desatar a ira dos evangélicos e católicos, porque há uma grande parte da população que não apoia certas pautas”, aponta Sergio Guzmán, diretor da consultoria colombiana Risk Analysis. “A América tem uma taxa de religiosidade de 60% a 70%, na América Latina há mais ardor religioso. E as igrejas estão ganhando um papel determinante nas decisões políticas no continente. O próprio papa Francisco tratou de fazer uma mediação entre [os ex-presidentes colombianos] Juan Manuel Santos e Álvaro Uribe a propósito do processo de paz”, continua. A tendência não é nova, embora hoje as organizações religiosas estejam mais fragmentadas. Na Colômbia, continua ativo oExército de Libertação Nacional (ELN), uma guerrilha nascida no começo da década de sessenta com um prontuário ideológico que misturava marxismo e Teologia da Libertação. Um de seus pais foi justamente o sacerdote guerrilheiro Camilo Torres. E, embora este seja um caso extremo, é significativo que o conservadorismo e o machismo tenham impregnado durante décadas também o ideário de organizações insurgentes, incluindo a extinta guerrilha FARC. Ainda hoje, regimes que se autodenominam revolucionários, como o de Nicolás Maduro na Venezuela e Daniel Ortega na Nicarágua, se recusam a legislar sobre o aborto.
“A esquerda tem tendência a dar lições de moral”
Tatiana Roque é professora titular de Matemática na Universidade Federal do Rio de Janeiro e foi candidata a deputada federal pelo PSOL, que exerceu a oposição pela esquerda aos Governos do PT (2003-2016). Roque acompanhou com atenção a discussão sobre a legalização do aborto na Argentina. “O movimento argentino marca uma nova forma de fazer política, de criar consensos em uma sociedade que conclama a esquerda a dialogar. A esquerda tem a tendência a apontar, acusar, dar lições de moral, e isso afasta as pessoas com quem temos que conversar, pessoas de classe média baixa ou pobres. O processo do aborto na Argentina nesse sentido é um ensinamento, porque foram feitas gestões com os setores mais conservadores”, diz. Nessa estratégia de diálogo, Roque vê a semente da reconstrução de uma esquerda que, segundo ele, já não pode ter o PT como farol nem Lula como “o único capaz de articular”.
Nem a Argentina nem a Bolívia têm figuras com a influência que já foi exercida por Néstor Kirchner, Lula, Hugo Chávez, Pepe Mujica ou Rafael Correa. Alguns morreram ou estão aposentados da política ativa, outros foram presos por corrupção ou proibidos de participar de eleições por motivos semelhantes. Para o sociólogo argentino Mario Santucho, diretor da revista Crisis e especialista em movimentos de esquerda latino-americanos, essa falta de referências abre a porta a novos movimentos, mais atomizados, mas nem por isso menos potentes. “O feminismo na região não tem volta atrás. Embora tenha havido uma reação das igrejas, o que fica é uma consolidação destas agendas mais avançadas”, afirma Santucho. E cita como exemplo o Chile, onde a preparação de uma nova Constituição é também um debate sobre os novos valores da democracia. “Aí entram em jogo os direitos civis avançados, que não são só direitos em termos liberais”, afirma. “Estamos falando de uma nova ideia do social, do humano. Esse é o grande desafio da esquerda: conjugar um modo progressista e democrático com as novas discussões do século XXI, junto com os direitos sociais que sempre defendeu.”
Sergio Guzmán observa que são justamente as mulheres que têm assumido a liderança da agenda. “Os políticos progressistas homens são muito relutantes em liderar o tema”, diz em referência ao caso específico do aborto. “As políticas progressistas mulheres não têm nenhum problema em falar de liberdades e direitos.” Neste ano e em 2022, o mapa político será redefinido em países como Equador, Peru e Colômbia, enquanto Luis Arce, herdeiro de Morales, acaba de iniciar seu mandato na Bolívia. O jornalista norte-americano Jon Lee Anderson, profundo conhecedor da região, destaca a decadência da esquerda com retórica revolucionária, encarnada há uma década sobretudo por Hugo Chávez. Isso não representa a morte em si dos projetos progressistas, mas sim sua obrigação de se adaptar e reformular através de um novo caminho centrado nas políticas públicas.
Mariliz Pereira Jorge: Aborto legal no Brasil
Falta aos políticos brasileiros peito para encarar esse assunto e trazer para o debate o que é de fato pertinente sobre o tema
Gol da Argentina. Na madrugada desta quarta (30), o Senado aprovou a descriminalização do aborto, que passa a ser legal até a 14ª semana de gestação e depende exclusivamente da decisão da mulher, como acontece em quase 70 países. Momento histórico. Marca mais um capítulo de um longo caminho percorrido pelas mulheres desde que a Rússia legalizou a prática há cem anos, ainda antes de se tornar União Soviética.
Enquanto isso no Brasil... A nossa legislação é mais parecida com a de países como o Afeganistão, o Irã e a Síria, o que nos dá a dimensão do atraso em que vivemos. Os direitos reprodutivos de nós, mulheres, não nos pertence, mas ao Estado, infestado de gente feito Jair Bolsonaro.
Em outubro, o presidente assinou um decreto para estabelecer, como estratégia nacional de longo prazo, a defesa da vida “desde a concepção” e dos “direitos do nascituro”. A medida foi considerada por defensores dos direitos reprodutivos mais um passo contra as possibilidades de interrupção de gravidez previstas em lei.
Nosso Congresso não fica atrás. Já escrevi que o Portal da Câmara registra 574 projetos em que o aborto é mencionado. Só em 2020 foram 64, muitos apenas pioram a vida da mulher, com aumento de pena, imprescritibilidade dos “crimes contra a vida”. No ano passado, o Senado desengavetou uma Proposta de Emenda Constitucional que proíbe o aborto desde o início da gestação.
Falta a sociedade e aos políticos brasileiros peito para encarar esse assunto e trazer para o debate o que é de fato pertinente sobre o tema: questões médicas, legais, direitos individuais, empatia. O aborto não pode ser criminalizado. As mulheres não devem ser tratadas como assassinas por defenderem tal bandeira, como quer Jair Bolsonaro, ao insinuar nas redes sociais que esta colunista seja uma genocida. A história vai contar quem é o genocida.
El País: Argentina legaliza o aborto e se põe na vanguarda dos direitos sociais na AL
Legisladores debateram projeto de lei de interrupção voluntária da gravidez que permite o aborto livre até a 14ª semana de gestação e deram vantagem da pauta apoiada pelo Governo Fernández
Mar Centenera e Federico Rivas Molina, El País
É lei. Na Argentina, as mulheres que decidem interromper a gravidez podem fazê-lo de forma legal, segura e gratuita no sistema de saúde. O Senado aprovou na madrugada desta quarta-feira a legalização do aborto até a semana 14 da gestação por 39 votos a favor, 29 contra e uma abstenção. Enterrou assim a lei em vigor desde 1921, que considerava a prática crime, exceto em caso de estupro ou risco de vida da mãe. Nas ruas, a maré verde, a cor símbolo do feminista no país, explodiu de alegria.
Com a nova legislação, a Argentina está mais uma vez na vanguarda dos direitos sociais na América Latina. A partir desta quarta-feira é o primeiro grande país da região a permitir que as mulheres decidam sobre seus corpos e se querem ou não ser mães, como já fizeram Uruguai, Cuba, Guiana e Guiana Francesa (e regiões como a Cidade do México). Nas demais, há restrições totais ou parciais, como no Brasil. A iniciativa, aprovada na Câmara dos Deputados há duas semanas, prevê que as gestantes tenham acesso ao aborto legal até a 14ª semana após a assinatura do consentimento por escrito. Também estipula um prazo máximo de dez dias entre a solicitação de interrupção da gravidez e sua realização, a fim de evitar manobras que retardem o aborto.
A pressão de grupos religiosos e conservadores para manter a criminalização do aborto vinha sendo muito forte, mas não suficiente para repetir o resultado de 2018, quando o Senado rejeitou o projeto. Ainda assim, uma forte ofensiva legal é esperada. No país do Papa Francisco, a Igreja ainda tem muito prestígio. E não só porque trabalha em conjunto com o Estado no atendimento aos mais pobres, por meio de centenas de refeitórios populares. A proximidade de Francisco com o presidente Alberto Fernández, que acabou apoiando a legalização, é evidente, e a questão do aborto sempre foi um território incômodo de disputas. A praça em frente ao Congresso era uma prova disso. No lado celeste, exibindo as cores do país, onde os grupos antiaborto se reuniam, os padres celebravam missas diante de altares improvisados e os manifestantes carregavam cruzes e rosários, fotos de ultrassom e um enorme feto de papelão ensanguentado.
Ao contrário da Câmara dos Deputados, onde a aprovação foi folgada, o resultado no Senado mais conservador era mais incerto. Mas desde o início a expectativa acompanhou os verdes. Os números eram muito equilibrados e tudo dependia de um punhado de indecisos, que imediatamente passaram de cinco para quatro: um senador previu que votaria pró-aborto após um mínimo de ajustes no texto da lei. Horas depois, dois senadores e dois senadores também anunciaram seu voto positivo e elevaram os votos afirmativos para 38, ante 32 negativos. Os contrários, além disso, haviam perdido dois votos antes de partir: o do senador e ex-presidente Carlos Menem, 90, em coma induzido por uma complicação renal; e o do ex-governador José Alperovich, de licença até 31 de dezembro por denúncia de abuso sexual.
O triunfo do “sim” à lei logo se definiu, ainda antes da meia-noite, quando faltavam ainda quatro horas de discursos. “Quando eu nasci, as mulheres não votavam, não herdávamos, não podíamos ir à universidade. Não podíamos nos divorciar, as donas de casa não tínhamos aposentadoria. Quando nasci, as mulheres não eram ninguém. Sinto emoção pela luta de todas as mulheres que estão lá fora agora. Por todos elas, que seja lei”, declarou a senadora Silvia Sapag durante o debate, em uma síntese do tom dos discursos verdes.
“Queremos que seja lei para que mais nenhuma mulher morra por aborto clandestino. Por María Campos. Por Liliana. Por Elizabeth. Por Rupercia. Por Paulina. Por Rosario. Pelas mais de 3.000 mulheres que morreram por abortos clandestinos desde o retorno da democracia”, afirmava do lado de fora Jimena López, de 27 anos, com um cartaz que dizia “Aborto legal é justiça social”. Entre os que se opunham à lei, muitos criticaram o momento do debate, em meio à pandemia de covid-19, e outros citaram argumentos religiosos, como María Belén Tapia: “Os olhos de Deus estão olhando para cada coração neste lugar. Bênção se valorizamos a vida, maldição se escolhemos matar inocentes. Eu não digo isso, diz a Bíblia pela qual eu jurei”.
Nas províncias do norte do país, aquelas mais influenciadas pela Igreja Católica e grupos evangélicos, a maioria dos legisladores se opôs. Na capital argentina e na província de Buenos Aires, por outro lado, quase todos os representantes apoiaram a legalização, qualquer que fosse o partido.
Durante 99 anos, na Argentina foi legal interromper uma gravidez em caso de estupro ou risco para a vida ou saúde da mãe, como no Brasil (que também autoriza aborto em caso de anencefalia). Em todos os outros casos, era um crime punível com prisão. Ainda assim, a criminalização não foi um impedimento: de acordo com estimativas não oficiais, cerca de meio milhão de mulheres fazem abortos clandestinos a cada ano. Em 2018, 38 mulheres morreram de complicações médicas decorrentes de abortos inseguros. Cerca de 39.000 tiveram que ser hospitalizadas pela mesma causa.
“Obrigar uma mulher a manter sua gravidez é uma violação dos direitos humanos”, afirmou a senadora governista Ana Claudia Almirón, da província de Corrientes, no norte do país. “Sem a implementação de educação sexual integral, sem a previsão de anticoncepcionais e sem um protocolo de interrupção legal da gravidez, as meninas correntinas são obrigadas a parir aos 10, 11 e 12 anos”, denunciou Almirón.
“Em 2018 não alcançamos a lei, mas conscientizamos sobre um problema: hoje existem mulheres que abortam em condições precárias e insalubres”, afirma Mariángeles Guerrero, integrante da Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto Legal, Seguro e Gratuito. “O aborto deixou de ser um assunto tabu que se falava em voz baixa e passou a ser um assunto que tinha de ser debatido politicamente para garantir condições seguras para a realização destes abortos”, acrescenta. Em 1921, quando a lei atual foi aprovada, a Argentina estava na vanguarda regional dos direitos das mulheres, mas a falta de debates posteriores a fez perder a disputa. Agora, o país recuperou o terreno perdido.
Luiz Carlos Azedo: Faltou combinar com os russos
Como previu o ex-ministro da Saúde Henrique Mandetta, chegamos ao final do ano com 180 mil mortos. Novamente, precisamos do distanciamento social, enquanto não chega a vacina
Tem momentos da política que Brasília descola do Brasil, não a dos candangos que nasceram na cidade e nela ganham o pão com o suor de cada dia, mas aquela que todos conhecem pela arquitetura monumental de Oscar Niemeyer: a da Esplanada dos Ministérios e da Praça dos Três Poderes. Esta semana foi um desses momentos, com o centro político e administrativo do país completamente descolado da realidade nacional e voltado para a disputa pelo controle do Congresso, embora a eleição dos presidentes da Câmara e do Senado estejam marcada para 1º. de fevereiro. O drama do país é a segunda onda da pandemia do novo coronavírus.
Cercado de áulicos por sete lados — o oitavo, na Rosa dos Ventos, é a trincheira dos filhos —, Bolsonaro parece aquele Presidente prisioneiro de uma jaula de cristal a que se referia o economista Carlos Mattus, o ex-ministro do Planejamento de Salvador Allende, o caso clássico do líder isolado, prisioneiro da Corte “que controla os acessos à sua importante personalidade”. O presidente sem “vida privada, sempre na vitrine da opinião pública”, com a diferença de que não precisa representar um papel, Bolsonaro aparece ante os cidadãos que representa e dirige como realmente é: um líder sem empatia, indiferente ao luto dos familiares e amigos das vítimas da pandemia do novo coranavírus, cujo carisma está associado à truculência e ao conservadorismo.
Ontem, quando atingimos a marca dos quase 180 mil mortos e 6,78 milhões de infectados, Bolsonaro anunciou o “finalzinho” da “gripezinha”, ao inaugurar o vão central de uma ponte em Porto Alegre (RS). No mesmo dia, a segunda onda da pandemia do novo coronavírus atingiu 21 estados e o Distrito Federal, pressionando o sistema de saúde pública com uma velocidade muito superior à primeira. Para não desmentir o chefe, os militares que aparelharam o Ministério da Saúde atrasam a divulgação de dados, minimizam a expansão da doença e fazem uma ginástica danada para escamotear o que todo mundo já sabe: não fizeram o dever de casa e a vacinação em massa contra a COVID-19 aqui no Brasil vai atrasar, e muito.
No mundo, a segunda onda atinge com força a Europa, a ponto de a primeira-ministra Angela Merkel fazer um apelo dramático aos alemães, para que façam o isolamento social. Nos Estados Unidos, epicentro da segunda onda, a FDA, agência reguladora norte-americana, aprovou a toque de caixa a utilização da vacina da Pfizer-Biontech, justamente a vacina que havia sido descartada pelo Ministério da Saúde, porque sua logística exigia armazenamento 70º abaixo de zero. Agora, o ministro Eduardo Pazuello, um general de divisão do Exército, supostamente especialista em logística, tenta comprar a vacina que lhe fora oferecida e recusou em agosto passado.
Vacinas
Bolsonaro deu ordens para que o Ministério da Saúde comece a vacinação antes do ano-novo, uma missão quase impossível, porque a vacina da Pfizer não estará disponível. Enquanto o governo federal tenta adquirir uma vacina para chamar de sua, o Instituto Butantan já está produzindo, “24 horas por dia, sete dias na semana”, 1 milhão de doses/dia da CoronaVac. A vacina chinesa foi adquirida pelo governador João Doria (PSDB), que anunciou o início da vacinação em massa em São Paulo para o dia 25 de janeiro, aniversário da capital paulista, fundada por Manoel da Nóbrega, José de Anchieta, João Ramalho e o Cacique Tibiriçá, em 1554, contra a orientação do Bispo Sardinha e da Corte portuguesa.
Desculpe-me o trocadilho, mas Pazuello me lembra o Sargento Tainha. Como nas estórias em quadrinhos do Recruta Zero, erros de conceito costumam levar qualquer estratégia ao desastre. Além do conceito correto, uma estratégia exitosa pressupõe, ainda, um método adequado e um ambiente favorável. A militarização do Ministério da Saúde foi um erro de conceito, não tem a menor chance de dar certo. Os métodos autoritários, centralizadores e sem transparência contribuem ainda mais para o fracasso, além de se somarem ao ambiente desfavorável criado pelo negacionismo do presidente Jair Bolsonaro, tanto na sociedade como na própria estrutura do Sistema Único de Saúde (SUS).
Como previu o ex-ministro da Saúde Henrique Mandetta, chegamos ao final do ano com 180 mil mortos. Como no começo da pandemia, novamente precisamos do distanciamento social e do uso generalizado das máscaras de proteção individual para conter a expansão da pandemia e evitar o colapso dos hospitais, enquanto não chega a vacina. Felizmente, a corrida mundial para fabricá-la está chegando ao final. O conhecimento acumulado no caso da SARS-CoV-1 e a cooperação científica mundial, com destaque para a divulgação, pelos chineses, do sequenciamento genético da SARS-CoV-2, possibilitaram o desenvolvimento de 80 vacinas, que estão sendo testadas em todo o mundo. Apostar apenas numa delas, no caso, a vacina de AstraZeneca-Oxford, como fez Bolsonaro, foi um tiro pela culatra. Custava nada manter a parceria com São Paulo; afinal, quem vai sair na frente mesmo é a Argentina, cujo presidente, Alberto Fernández, comprou a vacina russa Sputinick V e será o primeiro a ser vacinado, antes do Natal, para mostrar que o medicamento é seguro.
Cacá Diegues: Gracias a la pelota
Maradona foi um permanente inquisidor da alma humana. Quase diria que se sacrificou por nós, latino-americanos
Às vezes, temos necessidade de um choque radical para compreender melhor o que já estava diante de nossos olhos. Como o papel civilizatório de Diego Armando Maradona. Além do craque de bola que ele foi, a base moral de seu comportamento no mundo, Maradona foi um permanente inquisidor da alma humana. Quase diria que se sacrificou por nós, latino-americanos, devedores de tantos poderosos que sempre admiramos pelo mundo afora.
Não é que Maradona não desejasse ser conquistado, como o foi tantas vezes, como todos nós. Mas ele queria entender o mundo à sua volta e, para isso, precisava saber por que os homens poderosos amavam e eram amados pelo povo que cultivava Maradona. Nosso herói não era de esquerda, de centro ou de direita; mas se interessava pelas pessoas que professavam tais ideias. Não pelas ideias, mas pelo povo que elas conquistavam, do qual se aproximavam.
Se procurarmos na vasta coleção audiovisual em que o registramos, vamos encontrar cenas em que Maradona se declara a Fidel, de quem tinha uma tatuagem na perna esquerda, justamente a perna genial. Ou confissões de amor a dirigentes políticos como Carlos Menem, um neoliberal populista e popular, a quem ajudou a se eleger presidente da Argentina. E ainda oferecendo ao general Videla, comandante da ditadura mais sangrenta na história de seu país, o título mundial conquistado em Tóquio pela seleção juvenil.
A televisão argentina não se cansava de mostrar Maradona a cantar hinos peronistas, a defender os Kirchners, a se deixar usar pela máfia italiana quando jogava pelo Napoli, a fazer oposição contundente a Macri, a dedicar sua autobiografia ao xeque Mohammed bin Rashid al-Maktoum, cruel ditador árabe, a quem agradecia por “brindá-lo com seu apoio”. Maradona beijava o desconhecido, como beijou o Papa Francisco na bochecha, quando o conheceu, e o atacante Caniggia na boca mesmo, quando este fez, de uma assistência sua, o gol que desclassificou o Brasil na Copa de 1990.
Segundo Tostão, grande cronista de futebol, “Maradona era o maior craque do mundo numa época em que a ciência esportiva tentava fazer do futebol um jogo essencialmente científico, programado e previsível. Ele, com seu show de habilidades, inventividade, imprevisibilidade e efeitos especiais, foi uma resistência ao futebol pragmático”. Podemos dizer a mesma coisa de sua vida pessoal. Quando ele se junta a líderes formados por diferentes ideologias, não está aderindo às ideologias dos políticos. Nunca o vimos comentar, criticar ou elogiar essas ideologias. “Não sou comunista”, disse ele uma vez. “Mas tenho orgulho de ser amigo de Fidel.”
Por meio de seus amigos, de direita, de centro ou de esquerda, por meio da Camorra ou da Igreja, Maradona se aproximou sempre de quem o povo admirava ou simplesmente amava de algum modo, por alguma razão. A única vez em que respondeu à pergunta de repórter sobre as consequências de sua morte, ele disse que queria apenas que em sua lápide estivesse escrito: “Gracias a la pelota”.
Acho que o que ele queria mesmo era entender, por meio de quem o povo amava, o povo que o fez tão grande. Ele se manifestava pela sua genialidade no futebol, o que o aproximava de todos, do “pibe” do Boca aos senhores do mundo. Mas ele queria entender o que era a Humanidade, e essa curiosidade talvez o tenha matado. Nunca entenderemos tudo o que se passa no mundo.
Maradona deixa como legado maior de sua vida e obra os dois gols que fez em 1986, no México, contra a Inglaterra, se tornando pela primeira e única vez campeão mundial de futebol. O primeiro gol, ele fez com a mão esquerda (“la mano de Dios”), falta que só o juiz encantado por ele não viu. No segundo, que consagrou a Argentina campeã do mundo, gol classificado pela Fifa como o mais bonito de todas as Copas, ele driblou o meio de campo e a defesa inteira da Inglaterra, numa inacreditável linha quase reta. É como se estivéssemos recebendo de presente as duas mensagens geniais de Maradona: o politico hábil e o mito divino do futebol. O diabo e deus na terra do sol.
Luiz Carlos Azedo: Argentina, China e EUA
As relações do Brasil com os três países estão sob estresse político, provocado por declarações inamistosas e de cunho ideológico do presidente Bolsonaro e dos seus filhos
Vamos começar pela Argentina, que ontem perdeu seu maior ídolo, o ex-jogador Diego Maradona, cujo prestígio entre nós era tão grande que a velha rivalidade entre as torcidas brasileira e argentina perde qualquer sentido diante da sua genialidade e importância para o futebol mundial. Aliás, essa rivalidade, do ponto de vista geopolítico, perdeu o sentido desde a Guerra das Malvinas, quando os Estados Unidos, o aliado principal dos argentinos, apoiaram os ingleses, que recuperaram o arquipélago depois de impor dura derrota militar aos nossos vizinhos.
Ao contrário do que imaginava o presidente da Argentina, o general Leopoldo Galtieri, a primeira-ministra britânica Margaret Tatcher não quis saber de negociação e resolveu o assunto pela força, exibindo o poder naval do Reino Unido no Atlântico Sul. Foi um golpe de morte na ditadura militar argentina, desmoralizada na guerra. Muito do prestígio de Maradona se deve à vitória da seleção argentina contra os ingleses, na final da Copa do Mundo do México, em 1986, quando fez dois gols, um com a “mão de Deus” e o outro, numa arrancada em linha reta, driblando todos os ingleses à sua frente. Lavou, em campo, a alma de uma Argentina humilhada.
A Guerra das Malvinas aproximou o Brasil da Argentina, a partir do governo do presidente José Sarney, tanto do ponto de vista diplomático como militar, estreitando a cooperação entre os dois países. Essas relações, porém, vão de mal a pior desde a eleição do presidente Alberto Fernández, um peronista moderado. Bolsonaro nunca esteve com o presidente argentino, contra quem fez campanha aberta na eleição presidencial e a cuja posse nem sequer compareceu, quebrando uma tradição diplomática importante para o Mercosul.
O país vizinho era o nosso terceiro parceiro comercial, agora é o quarto. Com um desempenho comercial de USD 3,7 bilhões tanto em importação quanto em exportação, no primeiro semestre de 2020, mesmo assim, continua sendo o parceiro mais importante para a nossa indústria de automóveis e de eletrodomésticos. Entretanto, em razão da pandemia e da péssima relação de Bolsonaro com Fernández, esse desempenho está muito abaixo do que seria possível. A Holanda passou a ocupar a terceira posição. No primeiro semestre deste ano, exportamos USD 4,5 bilhões para os holandeses, contra USD 647 em importações.
Tecnologia
Nosso segundo parceiro comercial são os Estados Unidos, que estão em guerra comercial com a China. A aliança de Bolsonaro, porém, era com o presidente Donald Trump, que perdeu a eleição. Fez campanha aberta contra o democrata Joe Biden, cuja política está em contradição com os rumos que tomamos na cena internacional e também internamente, em áreas como meio ambiente e saúde pública. Para ajudar Trump na eleição, Bolsonaro fez concessões comerciais que prejudicam a indústria brasileira e não obteve, do ponto de vista prático, nenhuma vantagem significativa.
No primeiro semestre deste ano, a balança comercial do Brasil com os Estados Unidos foi negativa: importamos USD 13,2 bilhões e exportamos USD 10 bilhões. Ou seja, o alinhamento automático com Trump somente nos deu prejuízo. Exportamos petróleo bruto, semimanufaturados de ferro e aço, aviões e pastas químicas; em contrapartida, importamos óleo diesel, gasolina, hulha betuminosa e nafta, principalmente. Por que, com Biden, será diferente?
Há mais de 10 anos, o nosso principal parceiro comercial é a China. No primeiro semestre de 2020, o Brasil exportou mais de USD 34 bilhões para o país. No mesmo período, a importação de produtos chineses foi de USD 16,7 bilhões. Vendemos soja, óleos brutos de petróleo, minérios de ferro e seus concentrados, pastas químicas de madeira e carnes desossadas de bovino congeladas, principalmente. Compramos plataformas de perfuração ou de exploração, flutuantes ou submersíveis; componentes para aparelhos receptores de radiodifusão, televisão etc; para aparelhos de telefonia/telegrafia; células solares em módulos ou painéis; e celulares.
Desde que Jair Bolsonaro assumiu a Presidência, porém, as relações do Brasil com a China estão sob estresse político, provocado por declarações inamistosas e postagens provocativas, de cunho ideológico, nas redes sociais do presidente da República e dos seus filhos. Os chineses são conhecidos pela paciência, mas resolveram reagir duramente a um comentário do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL -SP), acusando a China de espionagem, na segunda-feira. “Isso é totalmente inaceitável para o lado chinês e manifestamos forte insatisfação e veemente repúdio a esse comportamento”, diz a nota da embaixada chinesa. O plano de fundo é a disputa pelo mercado brasileiro de internet 5G. Responsáveis por 33,5% das nossas exportações, se forem excluídos da disputa por Bolsonaro, a priori, os chineses vão se reposicionar em relação ao Brasil.
RPD || Lilia Lustosa: Cinema argentino e mobilização
Lilia Lustosa destaca a força do cinema que clama por justiça, ao analisar o filme Crimes de Família (2020), do diretor Sebastián Schindel. Para ela, "um verdadeiro chamamento por condições dignas para trabalhadores domésticos e pelo fim da violência de gênero que afeta tantas mulheres na Argentina, no Brasil e no mundo"
Cinema e psicanálise nasceram praticamente juntos. Muito cedo percebeu-se que a nova arte tinha um poder catártico semelhante ao da nova corrente psicológica que surgia naquele final de século 19. Ao sentar-se em uma sala escura, com a atenção totalmente voltada para a tela, o espectador entrava em uma espécie de estado hipnótico, revivendo sensações do passado, seguidas de um certo alívio ao final da sessão. Um sentimento que muitas vezes terminava por converter-se em ação… ou em transformação.
Em Buenos Aires, tive a oportunidade de constatar esse poder do cinema quando fui assistir ao filme Refugiado (2014), de Diego Lerman, em uma villa (como se chamam ali as comunidades), fruto de uma ação promovida pelo PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento –, em conjunto com uma ONG local. O objetivo era incentivar mulheres vítimas de violência doméstica a se pronunciarem sobre o mal que vinham sofrendo, quem sabe até criando coragem para denunciar seus agressores.
O filme, que conta a história de uma mulher grávida que foge de casa e do marido, levando consigo o filho de 7 anos, despertou sentimentos profundos na plateia. Uma senhora, acompanhada do filho pequeno, declarou haver-se identificado muito com a protagonista, afirmando que o que viu na tela era exatamente o que vivia em seu dia-a-dia. Uma angústia sem fim que ela não queria mais na sua vida nem na de seu menino, que, ali sentado, parecia alheio a todo o mal que lhe cercava quotidianamente. O que essa mãe mais temia era que a criança crescesse tendo aquele modelo de pai, de relacionamento e de vida.
A verdade é que, apesar de já ter lido mil vezes sobre a força catártica do cinema, sobre sua capacidade de sensibilização ou mesmo de persuasão, características tão exaltadas pelos vanguardistas russos ou mesmo pela Igreja Católica com suas encíclicas Vigilanti Cura e Miranda Prorsus, nada se compara a vivenciar seu efeito na vida real.
Crimes de Família (2020), do diretor argentino Sebastián Schindel, lançado em agosto via streaming (Netflix), tem os quesitos necessários para repetir o feito de Refugiado. Tendo como tema central um crime cometido pela empregada doméstica Gladys em seu local de trabalho, numa interpretação comovente da atriz iniciante Yanina Ávila – ela mesma empregada doméstica na vida real –, o filme mostra ainda outros crimes que envolvem o filho da família de seus patrões, papéis interpretados brilhantemente por Benjamín Amadeo, Cecilia Roth e Miguel Angel Solá. De forma labiríntica, essa história forte, instigante e muito bem narrada, vai sendo pouco a pouco construída. À medida que o filme avança, o novelo vai-se desenrolando e vamos entendendo as razões que levaram Gladys a cometer tal monstruosidade.
O roteiro de Crimes de Família, baseado em fatos reais, acabou despertando o interesse de organizações internacionais como a ONU Mulheres e a OIT - Organização Internacional do Trabalho, que resolveram apoiar sua produção por enxergarem ali uma ferramenta de sensibilização para as questões de violência laboral, de gênero e assédio sexual. Quiçá capaz de impulsionar o governo argentino a ratificar a Convenção 190 da OIT, que trata justamente desses temas.
Como mulher e mãe, senti-me muito tocada por um outro aspecto do filme: a maternidade. Há várias mães nessa história, cada uma tentando acertar em seus papéis de educadoras, provedoras e protetoras. Mas, o que fazer quando nunca se teve o amor como modelo? Ou quando se sofre assédio constantemente? O que fazer diante de um filho criminoso? Até onde é possível preservar o tal instinto materno de proteção?
Como historiadora e crítica de cinema latino-americana, senti-me orgulhosa de ver a força de um cinema que clama por justiça. Um verdadeiro chamamento por condições dignas para trabalhadores domésticos e pelo fim da violência de gênero que afeta tantas mulheres na Argentina, no Brasil e no mundo.
Não é a primeira vez que Sebastián Schindel dirige um filme que retrata desigualdades nas relações sociais e trabalhistas. Aliás, este é um tema que o fascina! Com formação de documentarista, esse diretor-idealista costuma basear-se em fatos reais para compor seus roteiros, usando seu trabalho e sua arte como ferramentas de sensibilização, conscientização e chamamento por mudanças. Em 2014, seu O Patrão, radiografia de um crime, também usado pela OIT como bandeira para tratar do tema da escravidão moderna na Argentina, obteve excelentes resultados, levando este país a tornar-se o primeiro da América do Sul a ratificar o Protocolo 29 de combate ao trabalho forçado. Uma prova de que o cinema, além de entretenimento, pode ser também eficaz ferramenta de mobilização. Que mais e mais diretores e instituições tomem partido dessa faceta da sétima arte!
*Lilia Lustosa é crítica de cinema
Luiz Carlos Azedo: Tempos do coronavírus
“O grande problema para o Congresso entrar em velocidade máxima são as eleições municipais, cujas articulações já estão começando e deverão se acelerar a partir de abril, com abertura do prazo de filiações”
O governo já iniciou a operação para repatriar 29 brasileiros que estão na região de Wuhan, na China, e deverão chegar à Base Aérea de Anápolis (GO) no sábado. Os que tiverem sintomas da doença serão conduzidos diretamente para o Hospital das Forças Armadas, em Brasília. Essa operação é um prenúncio de tempos que poderão ser difíceis para o Brasil, não necessariamente por causa dessas pessoas, ou mesmo dos 14 casos suspeitos em observação no país, mas em razão do impacto que a epidemia em curso na China terá na economia mundial, caso não seja debelada rapidamente.
O acordo comercial dos Estados Unidos com a China, que estabelece relações especiais fora das regras do jogo da Organização Mundial de Comércio (OMC), deve impactar as exportações brasileiras para a China, numa escala que ainda não é mensurável. A redução da atividade econômica chinesa, em razão da epidemia, pode agravar o impacto do acordo no agronegócio e na mineração, que são atividades nas quais a parceria com a China é estratégica. A queda na produção industrial brasileira, no ano passado, por outro lado, refletiu a crise em países da América Latina que tradicionalmente importavam produtos industrializados do Brasil, sobretudo a Argentina.
Essas externalidades precisam ser compensadas para que a economia brasileira volte a crescer. São duas as variáveis necessárias. Uma é o aporte de investimentos estrangeiros, o que depende da aprovação do marco regulatório das concessões e parcerias público privadas. Sem esse marco, o programa de privatizações e concessões do governo não terá a segurança jurídica necessária para atrair esses recursos. A outra é a ampliação do poder de compra da população, que depende da oferta de crédito, uma vez que não haverá aumento da renda de imediato. Não é uma equação fácil.
O governo aposta todas as fichas na agenda econômica do ministro da Economia, Paulo Guedes, que depende da aprovação do Congresso. Em tese, não existe grande objeção dos parlamentares à agenda, mas o tempo é exíguo. O começo da legislatura na segunda-feira e ontem foi meio melancólico, com o Congresso esvaziado. O clima é de pré-carnaval. O governo também não tem capacidade de articulação política suficiente para impor um ritmo diferente aos trabalhos do Congresso, que funciona no seu próprio diapasão.
O grande problema para o Congresso entrar em velocidade máxima são as eleições municipais, cujas articulações já estão começando e deverão se acelerar a partir de abril, com abertura do prazo de filiações partidárias. O que está antecipando essas articulações é a mudança das regras eleitorais, pois todos os partidos estão sendo obrigados a montar chapas proporcionais e a lançar o maior número possível de candidatos a prefeito, com o fim das coligações.
Quarentena
Existe também um certo nível de imponderabilidade em razão do próprio governo Bolsonaro, que fabrica crises de combustão espontânea, a mais recente na Casa Civil, onde o ministro Onyx Lorenzoni passa por um processo de contínua fritura, sem falar na estratégia de confronto adotada em algumas áreas, na qual pontifica o ministro da Educação, Abraham Weintraub, que é foco permanente de fricção política com o Congresso. Para muitos analistas, as diatribes políticas da ala ideológica do governo e até do presidente Jair Bolsonaro são fatores perturbadores do ambiente econômico.
Esse comportamento contrasta com a atuação de outros ministros que têm amplo trânsito no Congresso, como Tereza Cristina, da Agricultura; Tarcísio de Freitas, da Infraestrutura; e Luiz Henrique Mandetta, da Saúde, que rapidamente mobilizou seus aliados no Congresso para aprovar a medida provisória com normas de emergência para enfrentar a ameaça de epidemia de coronavírus, relatada pela deputada Carmem Zanotto (Cidadania-SC) e aprovada ontem à noite pela Câmara, numa tramitação relâmpago. A MP autoriza a realização de quarentenas e outras medidas compulsórias para evitar que a epidemia se instale no Brasil.
http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-tempos-do-coronavirus/
Míriam Leitão: Governo argentino busca um rumo
Política econômica da Argentina deve reduzir o déficit público mas usa remédio velho e pouco eficiente na luta contra a inflação
O economista Fabio Giambiagi esteve na Argentina já no governo Alberto Fernández e avalia que a atual política econômica pode conseguir um pequeno superávit fiscal este ano. A inflação deve cair, mas será por pouco tempo, já que a política é a de controle de preços. Depois, voltará a subir e pode chegar nos próximos anos a até a 100%. “Em matéria de preços é o velho peronismo de sempre. Eu assisti o lançamento do programa precios cuidados, parecia o Brasil dos anos 1980.”
Ele admite que a impressão que fica do governo Alberto Fernández é até melhor do que se imaginava. No pacote de ajuste fiscal há algumas medidas duras, mas os sindicatos não reagiram. Se fosse outro governo, eles já estariam na rua. “Agora os tigres miam”:
— Claro que o pacote é controverso porque faz o ajuste pelo lado da receita em vez de corte de gastos. O governo Macri havia reduzido o déficit para 1% do PIB, mas o pacote Ferández é de 1% a 1,5% do PIB, o que pode levar ao superávit.
A Argentina tem diversos outros problemas. Um deles, o mais grave talvez, é que não tem reservas, tem uma dívida alta e com parcelas em atraso. Essa fragilidade se agravou no governo Macri. Desde o período de Cristina Kirchner o problema vem sendo enfrentado através do cepo cambiário, que ninguém desconhece o que seja na Argentina: são medidas que limitam o acesso à moeda americana.
— O governo impôs de novo as retenciones, taxações de exportações, que geram muitas distorções, mas o governo está taxando onde está o dinheiro. O campo gira muitos recursos. A ideia da política econômica é que quem está pagando os impostos é quem votou em Macri. Há um IOF de 30% sobre aquisição de divisas. Como os ricos viajam mais para o exterior, eles pagam 30% sobre 63 pesos e aí vai para mais de 80. A cotação oficial está em torno de 60 pesos — disse Fábio.
Giambiagi acha que houve um fato complicado na Argentina. Quando o peronismo venceu com larga vantagem as primárias, a eleição virou apenas uma formalidade, e isso fez com que Alberto Fernández não tivesse incentivo para negociar. O dólar subiu rápido e Macri teve que tomar medidas de aumento de controle.
Quando assumiu, ele adotou esse ajuste pelo lado da receita. Atingiu não apenas os produtores rurais e os turistas, mas também os aposentados:
— Havia uma regra que vinha da reforma da Previdência de Macri, que foi na verdade a reforma de um indexador. Era um mecanismo tradicional de indexação. Fernández aboliu isso e deu um valor fixo para quem ganha menos e deixou sem regras as aposentadorias, acima de um determinado valor. Só vai corrigir se tiver condições. Imagina isso num país com uma inflação de 55%. Só que os sindicatos, por ser um governo peronista, não reclamaram.
Giambiagi acha que o temor de que a vice-presidente, Cristina Kirchner, mandaria em tudo não se confirma:
— No jogo de forças internas temia-se as ideias intervencionistas de Cristina. Mas houve de fato uma coalizão dentro do peronismo — e é engraçado falar em coalizão dentro de um mesmo partido — entre as muitas facções. Nesse acordo, Cristina ficou com quatro áreas. Justiça, Receita Federal, o Senado e a Província de Buenos Aires.
Ela quer se livrar das acusações e por isso a Justiça e a Receita são fundamentais. Inclusive um dos problemas de que ela foi acusada foi a de usar uma rede de hotéis que tinha no Sul para lavagem de dinheiro. O Senado é presidido pelo vice-presidente. E na Província de Buenos Aires a vitória eleitoral foi de Axel Kicillof, um economista muito ligado a ela. Pode vir a ser o sucessor dela.
— A parte econômica é toda de Fernández. Ele tem a dívida externa para negociar. Há um conflito inevitável com os credores. E entre os credores privados e o FMI. Como não se dá o calote no FMI, você tem que pagar o valor de face, ainda que com mais tempo. Quanto mais cedo pagar o Fundo, menos dinheiro haverá para os credores privados — diz Fábio.
O economista acha que com as medidas de controle de preços e o congelamento das tarifas a inflação deve ficar entre 30% e 40%, acha que a recessão deve continuar, e que o país vai encolher de 1% a 2%. Mas apontando para um 2021 positivo. O problema é que a inflação será contida artificialmente e depois continuará a trajetória de alta. Nos próximos anos a inflação ficará, segundo o economista, entre 30% e 100%.