Apartheid
Revista online | Representatividade negra na política
Kennedy Vasconcelos Júnior*, especial para a revista Política Democrática online (46ª edição: agosto/2022)
Como pode um deputado ou deputada não-negros (brancos) entenderem as demandas dessa população se nunca sofrem discriminação ou racismo na pele? Para iniciar qualquer conversa sobre o tema “representatividade”, é essencial definirmos o conceito do termo de modo que possamos partir do mesmo ponto.
De acordo com o Dicionário da Língua Portuguesa e o Dicionário de Política, do filósofo e historiador Norberto Bobbio, a representatividade é a expressão dos interesses de um grupo (partido, classe, movimento, nação, etc.) na figura de um representante, de forma que aquele que fala em nome do coletivo o faz comprometido com as demandas e necessidades dos representados.
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Portanto, falar de representatividade revela o sentido político e ideológico por trás do termo. Mesmo que seja possível imaginar o sofrimento do outro, só podem alcançar a compreensão plena do que seja a opressão racial aqueles que sofrem diretamente a violência desse contexto. Qualquer coisa diferente disso é achismo.
A maneira mais reveladora de se enxergar a falta de representatividade negra é nos números: Além de o Brasil ser o maior país em concentração de negros fora do continente africano, temos 125 deputados autodeclarados negros – soma de pardos e pretos, segundo critério do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) – de um total de 513 parlamentares na Câmara dos Deputados, o que representa 24,36% da assembleia da Casa.
Mesmo que pessoas negras constituam a maioria da população brasileira (cerca de 56%, de acordo com dados do censo do IBGE de 2018), a representatividade desse grupo está muito aquém da necessária, e isso não é um acidente. O racismo estrutural é fruto do caráter exploratório e excludente da colonização, bem como da desigualdade social que afeta majoritariamente negros e pardos no Brasil.
Veja, abaixo, galeria de imagens:
Jovens negros continuam sendo as principais vítimas da violência no Brasil, o que é facilmente constatado pelos dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2020. De acordo com a pesquisa, pessoas negras foram 76,2% das vítimas de mortes violentas intencionais. No mesmo ano, representaram 78,9% das vítimas de intervenções policiais. Além disso, 62,7% dos policiais assassinados eram negros.
Nada disso decorre de crimes diretamente caracterizados por ódio racial. No entanto, fazem parte de uma lógica histórica mais profunda, entranhada não só nas percepções individuais e no funcionamento das políticas públicas e das instituições.
Tudo isso, atrelado à falta de perspectivas e oportunidades, justifica a urgência da necessidade de falarmos sobre representatividade negra e diversidade, além da garantia de direitos fundamentais para que a vida de nossas crianças se desenvolva de forma segura, saudável e promissora, por meio de políticas compatíveis com as necessidades de um mundo real, partindo do entendimento de que nossa sociedade é múltipla e diversa. Aceitar e se aliar a essa pauta é uma oportunidade de reforçar o nosso desenvolvimento individual como seres humanos e como sociedade.
A “violência simbólica" é o subproduto das relações de poder, trazendo à margem tudo que foge do padrão eurocêntrico preestabelecido desde as colonizações. O sociólogo francês Pierre Bourdieu define violência simbólica como um conceito social elaborado, o qual aborda uma forma de violência sem coação física, causando danos morais e psicológicos, muitas vezes sutis, e que estão arraigados na estrutura social.
A única forma de combater o racismo estrutural nas instituições é por meio do despertar da consciência da comunidade negra, que precisa se reconhecer como tal e, assim, se empoderar da armadura ancestral de lutas, sacrifícios e vitórias. Os brancos precisam reconhecer seus privilégios e entender que é preciso microevoluções para grandes revoluções. Tudo isso é crucial para este momento de ameaça democrática. É preciso confiar nas instituições e no processo eleitoral e respeitar a luta de muitos que se foram para respirarmos liberdade e escolha.
Doze das 24 legendas com representação na Câmara dos Deputados não têm qualquer instância para debater igualdade racial ou sua organização política, o que fere profundamente a representatividade racial no Brasil, pois dificulta ainda mais que negros e negras disputem eleições no país.
A Comissão de Igualdade Racial do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) lançou neste mês de agosto de 2022 um relatório de financiamento de campanha eleitorais para impulsionar campanhas de pessoas negras por meio do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC) e o Fundo Partidário, atribuindo a responsabilidade de empregar os recursos aos candidatos negros, aos órgãos geridos pela base nacional de cada partido, que também será responsável por fixar os critérios internos para o recebimento pelos candidatos, assim como sua prestação de contas ao TSE.
Esses recursos deverão ser solicitados à base nacional do partido através de uma carta de autodeclaração racial. É importante fiscalizar o destino do dinheiro e se atentar a autodeclarantes que não possuem características negras.
A mensagem final que deixo é sobre o aquilombamento, um conceito muito bem abordado por Abdias do Nascimento, político brasileiro, poeta, artista e ativista do direito negro. A perspectiva do aquilombamento vem trazendo uma nova modalidade para a luta negra no Brasil, um lugar seguro de compartilhamento e fortalecimento. É um espaço de conexão e acolhimento com amor.
Uma das maiores características dos quilombos é a união do povo. É preciso um espírito evoluído para olhar integralmente para as questões humanas e saber que a construção de um mundo melhor faz parte de nós. Não basta não ser racista, é preciso ser antirracista.
Sobre o autor
*Kennedy Vasconcelos Júnior é coordenador do Igualdade23 de Minas Gerais. Primeiro Secretário na empresa Conselho Municipal de Cultura de Juiz de Fora - Concult-JF.
** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de agosto de 2022 (46ª edição), editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não refletem, necessariamente, as opiniões da publicação.
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Cristovam Buarque: Sem Mandela nem De Klerk
Tanto o Brasil quanto a África do Sul se estruturavam com base na segregação e consequente exclusão, por renda ou por apartheid
Cristovam Buarque / Blog do Noblat / Metrópoles
O Brasil África do Sul são parecidos. Pode-se dizer que o Atlântico é um espelho que mostra um lado similar ao outro no sistema social e econômico de apartheid, com a diferença que o sistema deles separava brancos de negros, o nosso separa ricos de pobres. As escolas sulafricanas eram segregadas conforme a raça, da mesma forma que as nossas são segregadas conforme a renda. O fim do apartheid fez aquele belo país africano ainda mais parecido com o nosso.
Tanto a sociedade de um lado quanto do outro do Atlântico se estruturavam com base na segregação e consequente exclusão: por renda, no Brasil, com nossa apartação; ou por raça, na África do Sul, com o apartheid. De um lado e outro, estas sociedades se caracterizavam pela concentração de renda e de benefícios sociais, pela violência e instabilidade.
Foi o líder branco De Klerk, falecido nesta quinta feira, que, depois de décadas como lider racista, conduziu o diálogo com os líderes negros, na direção de um pacto nacional para abolir o apartheid, dando direitos iguais a brancos e negros. Apesar de eleito pelos brancos para beneficiar aos brancos, percebeu que os interesses maiores do país exigiam quebrar o apartheid e construir uma nação de brancos, negros e mistos em uma só nação. Teve a ousadia e o estadismo de ir a Mandela, então preso por 27 anos, negociar com seus apoiadores racistas para dar liberdade ao grande líder negro, e juntos construírem uma transição que em poucos anos elegeu o primeiro presidente que representou a maioria e implantou um sistema social sem exclusão racial.
Com este pacto, os dois construíram um novo país e ganharam juntos o Nobel da Paz.
A sua morte nesta semana deveria ser um momento de reflexão entre as lideranças brasileiras, sobre a necessidade de fazermos nosso pacto pelo fim da apartação. Um pacto capaz de assegurar o fim da exclusão social no Brasil: incorporar todos no mínimo necessário à vida sem necessidades básicas. O caminho mais possível para esta mudança estrutural seria assegurar pobres e ricos em um mesmo sistema escolar, com a mesma qualidade independente da renda e do endereço da família. Bastaria a implantação de um Sistema Nacional Único Público de Educação de Base.
Mas continuamos sem um Mandela e sem um De Klerk e sem um pacto social capaz de abolir a apartação que caracteriza nossa sociedade.
*Cristovam Buarque foi senador, ministro e governador
Fonte: Blog do Noblat / Metrópoles
https://www.metropoles.com/blog-do-noblat/artigos/sem-mandela-nem-de-klerk-por-cristovam-buarque
Ivanir dos Santos: Para sempre Mandela
“Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, ou por sua origem, ou sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender, e se elas aprendem a odiar, podem ser ensinadas a amar, pois o amor chega mais naturalmente ao coração humano do que o seu oposto. A bondade humana é uma chama que pode ser oculta, jamais extinta” – Nelson Mandela
A célebre epígrafe escrita por Nelson Mandela, ex-presidente da África do Sul, compõem a sua autobiografia, intitulada “Long Walk to Freedom” publicada em 1995, retratara um dos períodos mais emblemáticos da luta antirracismo, colonialismo e contra a intolerância em África. Se estivesse vivo Mandela, símbolo das lutas contra o apartheid, teria completado cem anos de vida no último dia 18 de julho. O apartheid, é uma palavra afrikans (ou africâner), uma língua creolizada derivada do encontro entre a língua holandesa com as línguas nativas sul-africanas, que no seu sentido literal significa separação ou segregação.
A política de segregação racial fez da África do Sul o único país do mundo a definir os direitos fundamentais dos seus cidadãos tomando como base a cor da pele, separando brancos e negros no mesmo espaço geográfico. Algo bem diferente das configurações políticas e sociais do Brasil, que foi construído sobre a ideia de “democracia racial” com o intuito de passar uma imagem de convivência pacífica e harmoniosa entre as “três raças” (indígena, negra africana e branca europeia), afim de não evidenciar todas as mazelas deixadas em nossa sociedade com o sistema escravocrata.
Assim, enquanto a política do apartheid, entre as décadas de 1940 a 1990, evidenciou o racismo como um problema político e social na África do Sul, tal como o episódio em Shaperville onde milhares de sul-africanos saíram às ruas protestando contra a segregação racial no país, no Brasil tais questões foram distensionadas com narrativas construídas pela historiografia tradicional, que contribuíram para o fortalecimento do processo de inviabilização do racismo e para o crescimento das políticas de embranquecimento social.
Mandela nunca aceitou que a política do apartheid fosse a base de sustentação das relações políticas e sociais de seu país e foi por lutar contra todo o sistema racista “herdado” do processo colonial que passou 27 anos encarcerado na Prisão Local de Pretória (entre 7 de novembro de 1962 a 25 de maio de 1963), de Robben Island (entre 27 de maio de 1963 a 12 de junho de 1963), novamente em Robben Island (entre 13 de junho de 1964 a 31 de março de 1982) no setor de segurança máxima, na Prisão de Pollsmoor (entre 31 de março de 1982 a 12 de agosto de 1988) e na Prisão Victor Verster (7 de dezembro de 1988 a 11 de fevereiro de 1990). E mesmo preso, Mandela lutou pela garantia da igualdade e equidade entre negros e brancos dentro e fora da África do Sul, lutas essas evidenciadas nas de cartas que escreveu para parentes e amigos relatando o sistema de opressão que subjugava o continente africano e em especial a África do Sul. Parte desses escritos foram publicados como biografia e/ou autobiografias do maior líder negro sul-africanos, imortalizando a memória e as lutas de Nelson Mandela contra o racismo, contra a desigualdade e contra a intolerância.
*Ivanir dos Santos é professor doutor Babalawô