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Antonio Prata: A milícia de Brancaleone
“As eleições acabaram, não há lugar para revanchismo”, dizem os supostos arautos da racionalidade, “agora é torcer pra dar certo” — e todos aqueles que não acompanham as primeiras estultices do governo Bolsonaro fazendo coraçãozinho com a mão são petistas ressentidos, incapazes de aceitar as regras da democracia: “Vai pra Cuba!”.
Tenho dificuldade em torcer para o governo Bolsonaro “dar certo”, não por ser um “petista ressentido” —no infinito rol dos inimigos da pátria criado por esta direita neo-jurássica estou mais para “esquerda-caviar”. O problema é que não compreendo o que seria este governo “dar certo”. Se for Bolsonaro e sua milícia de Brancaleone conseguirem pôr em prática boa parte do que prometeram na campanha e começaram a tentar implementar nas últimas duas semanas —com exímia incompetência, felizmente—, estou fora.
Sejamos francos: estes caras são uns lunáticos. Como não chamar de maluco quem acredita que o aquecimento global é um “plot marxista”? Quem acha que a Folha (“Foice”) de S.Paulo e a Globo (“Red Globo”) são comunistas? Quem vê um plano da esquerda, infiltrada em todas as ramificações do ensino e da cultura, para destruir a família? Para Olavo de Carvalho, o Osho da seita Jair messiânica, o “plot” é ainda mais doido: a esquerda é manipulada pelo grande capital que, minando a família do trabalhador, poderá explorá-lo melhor.
“A sociedade que o ‘multiculturalismo’ anuncia” —escreveu aqui na “Foice”, em 2017, o Rajneesh dosbolsominions— “(...) é uma sociedade de tipo romano em que só os ricos e poderosos têm o privilégio de possuir uma família estruturada, enquanto o povão se esfarela numa poeira de átomos soltos, sem pais nem mães, nem tradição, nem passado, nem referência —a massa de manobra ideal para os engenheiros sociais a soldo da elite bilionária”.
Imagina o grau de delírio da pessoa para, toda vez que vê a bunda do Zé Celso, enxergar a carteira do George Soros? Nem no Centro Acadêmico de Ciências Sociais eu me lembro de testemunhar paranoia tão delirante. E olha que lá no CA o pessoal misturava Foucault com maconha, Kaiser quente e Bakunin —coquetel, agora sei, preparado pelos ocultos barmen da “elite bilionária”.
Voltando à terra: imagino que a maioria dos que torcem para o governo “dar certo” se refere à recuperação da economia. Sim, todos queremos crescimento, empregos, riqueza. Mas o que viria na esteira deste crescimento? Porte de arma para a população no país que já é o campeão mundial em mortes por bala? “Ponto final em todos os ativismos no Brasil”, i.e., mais violência contra mulheres, negros, LGBTs? Destruição das florestas, extinção das reservas indígenas? Execuções sumárias pela polícia? Murundu na política externa só para lamber as botas do Trump?
Os mesmos jedis da racionalidade que “torcem pelo Brasil” costumam reduzir tudo à economia, como se o nosso grau de desenvolvimento pudesse ser medido em toneladas de soja e as pautas de “costumes” fossem perfumaria. Ora, “costume” não é dar um ou dois beijinhos. É uma questão de costume escravizar ou não escravizar seres humanos. Uma mulher morrer assassinada a cada duas horas é uma questão de costume. (Eis a tradição que se preserva com a cretinice do azul e do rosa). Desigualdade e injustiça: costume. O que separa a Noruega do Brasil não é a economia, o DNA, a providência divina: são os costumes.
Sinceramente, não sei para o que torcer. Parece-me que a tragédia dell’arte que ora se desenrola diante de nossos olhos não tem como “dar certo”.
*Antonio Prata é escritor e roteirista, autor de “Nu, de Botas”, e colunista do jornal Folha de S. Paulo.