Antonio Gramsci
Alberto Aggio: O Gramsci que conhecemos e o que ele inspirou
Teorias de Gramsci se tornaram de uso comum e identificáveis por meio de conceitos como “hegemonia”, “guerra de posições”, “revolução passiva”
Gramsci é, no Brasil, um autor bastante conhecido e com um número estável de leitores. A primeira edição dos Cadernos do cárcere é da década de 1960 e foi reeditada no final da década seguinte, num contexto de luta contra a ditadura. Uma nova edição dos Cadernos, que mescla a edição temática dos anos sessenta com a edição crítica publicada na Itália a partir de 1975, veio à luz nos últimos anos do século passado, com vários dos seus volumes já reimpressos.
Há tempos registra-se uma difusa assimilação do pensamento gramsciano. As teorias de Gramsci se tornaram de uso comum e identificáveis por meio de conceitos como “hegemonia”, “guerra de posições”, “revolução passiva”, “transformismo”, “americanismo” e outros. O pertencimento de Gramsci à história do marxismo e do comunismo é patente, ainda que ele seja reconhecido, mas não generalizadamente, como um pensador político original. Desde o final da década de 1970, a progressiva difusão do pensamento gramsciano contribuiu e alimentou um novo “programa de ação” para a esquerda brasileira: organizar a luta contra o autoritarismo.
Além de Gramsci, outros pensadores animaram esse movimento, como Norberto Bobbio, Hannah Arendt e Jürgen Habermas. Mas foi com Gramsci que se instituiu no universo de reflexão da esquerda as temáticas e as visões críticas da história brasileira a partir de uma perspectiva de longa duração. Com a difusão e a assimilação de Gramsci se começa a pensar o Brasil tomando como referência a Alemanha e a Itália, países que não chegaram à ordem burguesa por meio do percurso revolucionário francês. Por meio das referências gramscianas, passa-se a reconhecer que o país era “ocidental” e que se havia estruturado como um país moderno pela via autoritária, sobretudo a partir de 1964. Isso requeria da esquerda uma nova leitura da democracia. Sem ela, a esquerda não seria capaz de se tornar um ator relevante na luta contra o autoritarismo e lhe faltaria uma “grande política” que pudesse guiá-la numa nova situação democrática.
Naquele contexto, o Gramsci que conheceríamos não seria aquele da luta operária, mas o Gramsci inspirador de uma luta política geral, cuja tradução política se exprimia na ideia de que, para combater o autoritarismo, era necessário “fazer política” e construir alianças que objetivassem a conquista da democracia. O Gramsci dos intelectuais, da hegemonia e da guerra de posição se encontrava então em campo aberto, em diálogo com outras correntes de pensamento, em particular as liberais, jogando a esquerda para dentro do debate público sobre as questões do pluralismo como horizonte político-cultural: um diálogo a que nem a esquerda nem os liberais estavam acostumados. Em síntese, a difusão das ideias de Gramsci contribuiu para amadurecer na esquerda brasileira uma perspectiva crítica a respeito da sua história precedente, de forte matriz golpista e autoritária, pouco afeita aos temas decorrentes da política democrática.
No contexto de luta pela democracia no Brasil, o mais importante ensaio de corte gramsciano foi, sem dúvida, “A democracia como valor universal”, de Carlos Nelson Coutinho (1979), que representou um marco divisório na cultura política da esquerda brasileira, sobretudo no que diz respeito à revalorização da democracia. O ensaio tem muitos méritos e foi extremamente influente. Embora Carlos Nelson Coutinho valorizasse temáticas como a “ampliação do Estado”, ajudando a esquerda a compreender a natureza “ocidental” da sociedade brasileira, entendia que não se deveria cogitar nenhuma “leitura mais complexa” do conceito gramsciano de revolução passiva.
No ensaio de 1979, as formulações a respeito da realidade brasileira aparecem inteiramente subordinadas ao enfoque leninista, assim sintetizada no subtítulo do seu segundo item: “o caso brasileiro: a renovação democrática como alternativa à via prussiana”. A ênfase não era irrelevante nem foi esporádica. Em diversos textos posteriores, Carlos Nelson Coutinho se empenhou em definir a transição brasileira à modernidade capitalista identificando revolução passiva a uma “contrarrevolução prolongada” (a expressão é de Florestan Fernandes), por definição reativa à mudança social (registre-se aqui que a categoria da via prussiana já havia sido mobilizada para interpretação da formação social brasileira em Liberalismo e sindicato no Brasil, de Luiz Werneck Vianna, em 1976).
Este é um tema importante na discussão sobre Gramsci no Brasil: se admitirmos que o conceito de “via prussiana” descreve uma situação histórica na qual está anulada a possibilidade do ator da antítese ao capitalismo de assumir, pela política, um papel afirmativo no processo de modernização capitalista, a pergunta que emerge naturalmente é se a categoria de “revolução passiva”, elaborada por Gramsci, pode ser compreendida no sentido de se admitir um novo protagonismo do ator da antítese no interior do processo de modernização capitalista.
Luiz Werneck Vianna, em seu livro Revolução passiva: americanismo e iberismo no Brasil (1997), responde afirmativamente a esta pergunta, esclarecendo que na revolução passiva se pode desenvolver a ação de um ator que represente uma “antítese vigorosa” e empenhe de maneira intransigente todas as suas potencialidades (p. 78). A revolução passiva, como critério de interpretação de processos históricos, é útil ao ator que se invista da representação de portador das mudanças, “capacitando-o, a partir de uma adequada avaliação das circunstâncias que bloqueiam seu sucesso imediato e fulminante, a disputar a hegemonia numa longa ‘guerra de posições’, e a dirigir o seu empenho no sentido de um transformismo ‘de registro positivo’, assim desorganizando molecularmente a hegemonia dominante, ao tempo em que procura dar vida àquela que deve sucedê-la”. […] “A exploração do transformismo de ‘registro positivo’ é indicada em processos societais novos na sociedade brasileira, muito especialmente depois da institucionalização da democracia política em meados dos anos 80” (p. 9). A revolução passiva é, portanto, um critério de interpretação “que poderia servi-lo no sentido de mudar a chave da direção do transformismo: de negativo para positivo”. Graças a esse conceito, Gramsci cria “a possibilidade de uma tradução do marxismo como uma teoria da transformação sem revolução ‘explosiva’ de tipo francês”.
Como se sabe, a história brasileira nunca protagonizou uma revolução de tipo “jacobino”. As grandes transformações históricas do país foram moleculares ou caracterizadas por uma “dialética sem síntese”, no interior da qual os elementos de novidade e de modernidade foram introduzidos, no mais das vezes, por grupos sociais anteriormente contrários à modernização. Os ciclos da longa “revolução passiva á brasileira” (L. W. Vianna) vão da fundação do Estado Nacional até o recente processo de democratização vivido pelo país, passando pelo período Vargas, pela democracia de 1946 e pelo autoritarismo das décadas de 1960 e 1970. Neste longo período histórico, o Estado assume o papel de agente modernizador e condutor das transformações históricas, em geral sem a participação da sociedade civil, estabelecendo a lógica de conservar-mudando. Essa lógica faz com que as transformações históricas no Brasil ocorram sem abalos violentos, o que ajuda a conservar a precedente hegemonia dos grupos sociais mais atrasados.
Nos dias que correm, contrariando as enormes esperanças, os governos do PT, desde 2002, não se constituíram numa alternativa ao longo processo da “revolução passiva à brasileira”. Ao contrário, no governo, o PT conduziu a modernização associando-se às elites agrárias e industriais, abrigando-as no seio de um enorme Estado, inteiramente dependente do Poder Executivo. O alargamento do poder de consumo das classes populares fez parte dessa estratégia e a figura de Lula passou a ser essencial a esse tipo de transformismo. Manteve-se o dirigismo estatal, o patrimonialismo e o corporativismo ao invés de se estabelecer um nexo renovador entre democracia, autonomia, mercado e bem-estar.
Nascido do moderno parque industrial paulista, isto é, da face americanista mais visível do país, o PT no governo foi derivando progressivamente para a velha tradição ibérica de supremacia do Estado sobre a sociedade que havia marcado a história brasileira. O PT é, como já se disse, uma monografia particular do Brasil, articulada por uma síntese de americanismo e iberismo, na qual o Estado continua a contrapor-se à sociedade civil, controlando molecularmente as transformações, obedecendo à lógica do conservar-mudando e impedindo consequentemente o desenvolvimento autônomo da sociedade civil.
Mudar as relações entre a sociedade civil e o Estado e fazer com que a mudança dirija a conservação não significa adotar uma espécie de antirrevolução passiva, instalando um processo de rupturas de corte jacobino. Transformar o caráter recessivo da “revolução passiva à brasileira” demanda a construção de uma cultura política republicana, que contribua para a geração de uma sociedade civil autônoma, capaz de associar-se politicamente para a condução dos destinos do país. É esse o desafio que está colocado: buscar, com realismo, as balizas e os parâmetros de uma grande reforma da política, de caráter republicano, que reverta os termos da atual modalidade de “revolução passiva à brasileira” e ao mesmo tempo recomponha a confiança do país em continuar vivenciando e ampliando a democracia política.
O pensamento de Gramsci apresenta-se hoje no Brasil essencialmente por meio de uma disjuntiva. De um lado, o Gramsci da “política democrática”, ou seja, da política-hegemonia, enquanto “hegemonia civil”. De outro lado, temos o Gramsci como expressão da “política revolucionária”. Na primeira “leitura”, a revolução não é mais o centro da elaboração política e a perspectiva se deslocou no sentido de exercitar o conceito de revolução passiva até seus limites, isto é, acionar permanente e intransigentemente a política democrática no interior da perspectiva de “rovesciare” a longa revolução passiva à brasileira, de marca autoritária e excludente, e lhe dar finalmente outro direcionamento.
Essa perspectiva implica compreender que Gramsci se descolou da sua originária demarcação revolucionária, distanciando-se assim de um marxismo que ainda tem como referência uma época histórica de revoluções. De outro lado, a perspectiva de um “outro Gramsci” se desdobrou gradativamente em “outros Gramsci”, mantendo-os, contudo, no universo diversificado da noção de “representação”, agora num duplo sentido: representação de classe, com o fora anteriormente, e portanto numa perspectiva revolucionária, e, noutro sentido, representação como conservação e difusão de um imaginário revolucionário, no qual se quer resguardar os signos e significados de uma época revolucionária terminada há décadas.
(Esse texto é a versão em português do artigo publicado no L’Unità (07.12. 2015), e corresponde à súmula da palestra proferida na Fondazione Istituto Gramsci de Roma, em 25,11.2015. Em português foi publicado em Política Democrática, n. 44, Brasília: FAP, 2016, p. 40-44 e também em AGGIO, A. Itinerários para uma esquerda democrática. Brasília: Verbena/FAP, 2018, p. 165-171)
Fonte: Horizontes Democráticos
https://horizontesdemocraticos.com.br/o-gramsci-que-conhecemos-e-o-que-ele-inspirou/
Travessia política: Gramsci
Gilvan Cavalcanti de Melo, Blog Democracia Política e Novo Reformismo
Agradeço o convite para debater, nesta travessia política as ideias de um italiano que há anos se tornou referência para mim. Trata-se de Antonio Gramsci, o mais importante - talvez o maior - pensador da tradição marxista-ocidental do século passado, cujos 116 anos do nascimento foram celebrados em 22 de janeiro de 2007.
Gramsci morreu em 27 de abril de 1937, aos 46 anos. A morte o derrotou no instante em que conseguira a liberdade. Dois dias antes, recebera o documento assinado pelo Juiz do Tribunal Especial de Roma com a declaração de que fora suspensa qualquer medida de segurança em relação a ele, que foi preso por ordem de Mussolini em 8 de novembro de 1926. No processo-farsa montado pelo Estado fascista, o promotor pediu aos juízes sua condenação; olhando-o sentenciou: ”É preciso impedir este cérebro de funcionar”. O castigo ocorreu, mas não se conseguiu impedir que, de dentro da prisão, fosse escrita uma obra monumental, para a eternidade (Für ewig).
Condenado, Gramsci fez com que sua inteligência penetrasse na densidade sombria da realidade. Recusou a vaidade demagógica de uns e o dogmatismo mofado dos outros. Não pensou em formular uma nova e original filosofia da práxis. Só mais tarde manifestou a consciência do valor de sua reelaboração. Ousou, do interior do cárcere, na solidão, inclusive política, desafiar a ignorância e as banalidades stalinistas. Foi por muito tempo negligenciado e desconhecido até pelos que, ao contrário, deveriam tê-lo amado e o honrado mais intensamente.
Por que minha curiosidade por esse homem e sua obra? Originalmente, meu contato com Marx se deu com leituras de textos de outro italiano, Antonio Labriola (1843/1904). Era uma espécie de vacina antidogmática. A partir daí, descobri Gramsci rapidamente. No início senti comoção por aquele homem frágil, sofredor e perseguido. Na sequência, admiração pela sua coragem e combatividade. Depois, interesse crescente pelo seu pensamento denso. Mais tarde, aceitei seus ensinamentos e visão sobre a filosofia de Marx. Esse encontro ocorreu entre os anos 1958 e 1962, por meio de publicações argentinas que chegavam a Recife. Nesse contexto, um papel importante foi desempenhado nessas minhas descobertas pelo gerente da livraria Editora Nacional, na Rua da Imperatriz.
Até hoje, há uma polêmica sobre o porquê da recusa de Gramsci em usar o termo materialismo ou marxismo. Uma grande parte de estudiosos atribui o fato a uma maneira de ultrapassar a rigidez da censura. É preciso ressaltar, entretanto, que aqueles termos estavam relacionados a uma visão economicista, dogmática e ortodoxa, cujo símbolo mais conhecido era o manual Ensaio popular, de Nicolau Bukarin. Em sua defesa Gramsci foi buscar o exemplo de Marx no prefácio de O capital. Ali, o corifeu da nova filosofia falava de “dialética racional” e “dialética mística” em vez de dialética materialista e dialética idealista.
Estou convencido de que o uso do termo filosofia da práxis foi consciente, no sentido da revalorização da atividade cultural e da dimensão ético-política. Ao mesmo tempo em que travava uma batalha contra os dogmáticos, Gramsci considerava que a filosofia da práxis deveria reconquistar a força criadora da qual se apoderara o pensamento moderno preconceituoso em relação a Marx: Bérgson, Sorel, Croce, Weber, Veblen, Freud, o pragmatismo e, através de Spengler, Nietzsche também.
Seria interessante recordar a crítica de Gramsci às duas correntes principais existente na época: a ortodoxa e a oposta. A primeira era representada por Plekhanov, cuja obra Os problemas fundamentais do marxismo, não foi a poupada por Gramsci, que a chamou de materialismo vulgar e a considerou típica do método positivista. Já a segunda queria ligar a filosofia da práxis ao kantismoou outras correntes não positivista e não materialistas; era representada por Otto Bauer, que chegou a afirmar que o marxismo poderia ser baseado em - e integrado por - qualquer filosofia. Daí, a preocupação de Gramsci em colocar em circulação o pensamento de Antonio Labriola. Tratava-se do contraponto ao grupo intelectual alemão que exercia uma forte influência em determinada leitura de Marx, na Rússia. Gramsci valorizava a ideia de Labriola de que a filosofia da práxis era independente de qualquer outra filosofia, sendo auto-suficiente.
Ao meu ver, é interessante destacar o núcleo do pensamento gramsciano: a palavra chave era o homem como bloco histórico. O tema foi polemizado com Lukács. Vejamos a refutação da teoria da dualidade:
“Deve-se estudar a posição do professor Lukács em face da filosofia da práxis. Lukács, ao que parece, afirma que só se pode falar de dialética para a história dos homens, não para a natureza. Pode estar equivocado e pode ter razão. Se sua afirmação pressupõe um dualismo entre a natureza e o homem, ele está equivocado porque cai em uma concepção da natureza própria da religião e da filosofia greco-cristã, bem como do idealismo, que realmente não consegue unificar e relacionar o homem e natureza mais do que verbalmente. Mas se a história humana deve ser concebida também como história da natureza (através também da história da ciência), como então a dialética pode ser destacada da natureza? Lukács, talvez, por reação às teorias barrocas do Ensaio Popular, caiu no erro oposto, em uma forma de idealismo”.
E reafirmando sua concepção unitária do homem, Gramsci escreve:
“É possível dizer que cada um transforma a si mesmo, se modifica, na medida em que transforma e modifica todo o conjunto de relações do qual ele é o ponto central. Neste sentido o verdadeiro filósofo é – e não pode deixar de ser - nada mais do que o político, isto é, o homem ativo que modifica o ambiente, entendido por ambiente o conjunto das relações de que o indivíduo faz parte. Se a própria individualidade é o conjunto destas relações, conquistar uma personalidade significa adquirir consciência destas relações, modificar a própria personalidade significa modificar o conjunto destas relações”.
Nessas palavras, está presente uma visão, uma interpretação da décima primeira tese sobre Feuerbach, escrita por Marx: conhecer a realidade e transformá-la.
A chave bloco histórico está presente na relação entre intelectuais e não-intelectuais, por meio dos conceitos senso comum e de bom senso. Gramsci salientava que todos os homens são filósofos e definia os limites e as características dessa peculiaridade. Essa singularidade está contida, em primeiro lugar, na própria linguagem, isto é, um conjunto de conceitos com conteúdos, bom-senso. Em segundo lugar, no senso-comum, na religião popular, em todo o sistema de crenças, superstições, etc.
Gramsci também encontrou a chave para unificar, criticamente, esse conjunto de filosofia, através da análise do conceito de senso comum e bom senso. Vejamos como ele resolve a questão de maneira muito clara:
“Passagem do saber ao compreender, ao sentir e vice-versa, do sentir ao compreender, ao saber. O elemento popular sente, mas nem sempre compreende ou sabe; o elemento intelectual sabe, mas nem sempre compreende e, em especial, sente. É preciso reconciliar os dois extremos. Sem essa conexão entre intelectuais e povo/nação, não se faz política: unidade, bloco histórico”.
Esse conceito, unitário perpassa todo o trabalho e a formação de outros conceitos e categorias. Está presente também na relação estrutura e superestrutura. Vejamos outro exemplo, quando Gramsci se refere às “ondas” dos movimentos históricos: de um lado, chama a atenção para o exagero de economicismo ou de doutrinarismo pedante; e, de outro, para o limite extremo de ideologismo.
Essa separação poderia levar a graves erros na arte política de construir a história presente e futura e dar lugar a fórmulas infantis de otimismo e bobagens. Por isso, Gramsci estabeleceu uma distinção metodológica de dois momentos para a análise de uma situação concreta, circunstância ou conjuntura. O primeiro está unido à estrutura, objetiva, ao grau de desenvolvimento das forças materiais de produção, à formação dos agrupamentos sociais, suas funções e posição na produção. Essa realidade permite investigar se numa determinada sociedade já existem as condições indispensáveis e suficientes para sua transformação. O segundo é a relação das forças políticas, ou seja, a avaliação do grau de homogeneidade, autoconsciência e organização adquirido pelos diferentes grupos sociais. Gramsci considerava que esses momentos se confundiam reciprocamente na vida real.
Mais uma vez, ele procurava resolver duas questões apresentadas por Marx no prefácio à Crítica da economia política: a) uma formação social nunca perece antes que estejam desenvolvidas todas as forças produtivas para as quais ela é suficientemente forte e vigorosa, e novas relações de produção mais adiantadas jamais se firmarão antes que suas condições materiais de existência tenham sido geradas no seio mesmo da velha sociedade; b) a humanidade mira apenas os problemas que pode resolver, pois a tarefa só aparece onde as condições materiais da solução já existem, ou, pelo menos, onde são captadas no processo do seu devir.
Gramsci, ainda desenvolveu o conceito de revolução passiva, deduzindo-o dos dois princípios estabelecidos por Marx, no mesmo prefácio e reportando-o à descrição daqueles dois momentos que podem distinguir a situação concreta e o equilíbrio das forças com a máxima valorização do segundo: a relação de forças políticas.
O mesmo conceito de bloco histórico serviu-lhe para resolver um falso problema da separação - que só existe metodologicamente - entre Estado e sociedade civil. Mas Gramsci deixou bem explicitado que essa relação dialética exigia um reconhecimento do terreno nacional. Ao analisar formações sociais atrasadas (Oriente) e adiantadas (Ocidente), estabeleceu um critério de estudo: Nos países pouco desenvolvidos, o Estado é tudo, e a sociedade civil, primitiva e viscosa; nos países capitalistas mais avançados, há entre o Estado e a sociedade civil uma relação de disputa, pendência, e diante de qualquer tremor ou oscilação do Estado, descobre-se imediatamente, uma poderosa estrutura da sociedade civil. O Estado é apenas um posto avançado, por trás do qual se situa uma poderosa rede de proteção blindada. Partindo dessa visão Gramsci reexaminou o conceito leniniano de hegemonia.
Entre os elementos força e consenso, deu ênfase aos ordenadores do sistema de hegemonia: as organizações e instituições políticas e culturais nas quais esse sistema se materializa e os sujeitos, forças sociais e instituições que o constroem e se reproduzem. Ao mesmo tempo, demonstrou que os sistemas hegemônicos não são eternos, mas históricos, bem como salientou o processo e a possibilidade de se construir uma nova hegemonia político-moral.
Mais uma vez, estou convencido de que por meio de uma série de problemas examinados por Gramsci dentro do pensamento filosófico, no início da década de 30, foi possível antecipar as novas contradições das sociedades modernas - suas complicações, crises econômicas e morais - e a passagem do velho individualismo econômico para a economia programática, uma nova hegemonia. De fato Gramsci vislumbrou as grandes transformações capitalistas. Com o famoso texto “Americanismo e fordismo” demonstrou sua enorme capacidade de olhar o mundo além do seu tempo.
A mesma coerência unitária é destacada em sua visão de partido político. Ele partia do questionamento da necessidade histórica de sua existência, recusando-se a aceitar um tipo de organização oriental burocrática, e propunha algumas condições, para a sua realização, entre elas a possibilidade de seu triunfo, ou, pelos menos, uma via pera esse triunfo fosse alcançado.
Contudo, para que o partido exista, é necessária a unidade de três grupos de elementos: a) um elemento de homens comuns, médios, cuja participação é oferecida pela disciplina e fidelidade; b) um elemento principal de coesão, que o unifique no campo nacional, torne eficiente e poderoso um conjunto de forças (Esse grupo é dotado de determinadas premissas, como criatividade, perspectiva e união; c) um elemento médio, que articule o primeiro grupo com o segundo, colocando-os em sólido contado intelectual e moral.
Evidentemente, não concordo com aqueles estudiosos e críticos de sua obra que tentam fragmentá-la, em várias interpretações: os que, em matizes, formas e graus diferentes, colocam Gramsci no campo exclusivo do leninismo; os fundamentalmente, interessados, nas inovações que ele introduziu nas análises das superestruturas; e os que o preferem como o filósofo da sociedade industrial.
Ora, Gramsci respondeu à pergunta: “O que é o homem?” e afirmou que esta é a primeira e principal questão da filosofia. Também perguntou: como respondê-la? A resposta foi resumida mais ou menos assim: “O homem é o que o homem pode se tornar, se pode controlar seu próprio destino, se pode se fazer, se pode criar sua própria vida”. Portanto, o homem é um processo, exatamente o processo de seus atos. Em suma, a humanidade se reflete em cada individualidade e é composta de distintos elementos: o indivíduo; os outros homens e a natureza, isto é, bloco histórico. Como fragmentá-lo?
Gramsci, modesto como era, não deixou de polemizar com o pensamento mais rigoroso e fecundo que grandes correntes de opinião formavam. Assim o faz quando estudou o conceito de classe política de Gaetano Mosca, relacionando-o com o conceito elite de Vilfredo Pareto. Foi Benedetto Croce, um dos mais importantes filósofos italiano, seu principal interlocutor. O conjunto dos Cadernos do cárcere, na verdade, é um combate em duas frentes: contra o pensamento especulativo e idealista (Croce) e a chamada ortodoxia vulgar e positivista do marxismo. Hoje, as categorias gramscianas são reconhecidas e estudadas, nos meios acadêmicos, como instrumentos de análise da modernização conservadora brasileira e de suas complexas superestruturas.
A vida de Gramsci, pelo modo, lugar e tempo de sua concretização, poderia ser designada como a de um homem derrotado. Mas a ignorância de uma época iluminou a extraordinária força moral e o rigor intelectual do sujeito que, sem se deixar abater, fez de suas derrotas, fontes de energia para recomeçar a avançar. Ele suportou o seu destino, com coragem e sobriedade intelectual, sem concessões ao vulgar e patético, conservando sempre o controle racional dos sentimentos.
Diante disso, como resistir à tentação de falar sobre Gramsci e sua obra tão rica, fecunda, dando-lhe o papel de herói num mundo cheio de vilões teóricos?
Para finalizar, nada melhor do que me referir a outro Italiano, Norberto Bobbio, Ele dizia que, para garantir um lugar entre os clássicos, um pensador deve preencher estes três requisitos: a) ser considerado intérprete da época em que viveu, não se podendo prescindir de sua obra para conhecer o “espírito do tempo”; b) ser sempre atual, no sentido de que cada geração sinta necessidade de relê-lo e, relendo-o, de dedicar-lhe uma nova interpretação; c) elaborar categorias gerais de compreensão histórica que não possam ser dispensadas para interpretar uma realidade, mesmo distinta daquela a partir da qual essas categorias derivaram e à qual foram aplicada.
Hoje, ninguém, duvida que Gramsci deva ser considerado um clássico na história do pensamento.
*O presente texto foi apresentado no Colóquio Internacional Travessias: políticas, urbanas, literárias e cinematográficas, realizado nos dias 10 e 11 de agosto de 2006, no auditório do Consulado Italiano, no Rio de Janeiro. Teve a parceria da Fundação Biblioteca Nacional com o Instituto Italiano de Cultura.
O mesmo texto foi reproduzido no livro TRAVESSIAS – Brasil-Itália – organizadores: Cléia Schiavo Weyrauch, Maria Aparecida Rodrigues Fontes e Aniello Ângelo Avella - Rio de Janeiro, Editora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), 2007 P. 129-136
Marco Aurélio Nogueira: Um dos pivôs da 'guerra cultural', Gramsci tem livros publicados no Brasil
Desde que foi lançado há três anos o ‘Dicionário Gramsciano’ a obra do italiano já foi revisitada até em quadrinhos
Ao menos desde 2017, quando foi publicada a edição brasileira do Dicionário Gramsciano, vive-se um momento de grande interesse pelo pensamento do comunista italiano Antonio Gramsci (1891-1937).
Parte disso é um efeito colateral da “guerra cultural” martelada pela extrema-direita, que invariavelmente trata Gramsci como um de seus inimigos principais. O fundamental, porém, deve-se ao trabalho dos inúmeros grupos de estudiosos que se formaram ao longo dos anos em diversas áreas acadêmicas.
Gramsci, a rigor, nunca saiu de cena no Brasil, país em que sua difusão está entre as maiores do mundo. Nos anos 1960, a Civilização Brasileira foi pioneira ao editar os primeiros escritos gramscianos entre nós. Mais tarde, a partir de 1999, a mesma editora publicou os Cadernos do Cárcere, uma caprichada tradução que demarcou um novo campo para os estudos marxistas e tornou conhecida a grandiosidade da reflexão teórica de Gramsci.
Nas duas décadas que se seguiram à publicação dos Cadernos no Brasil, o interesse por Gramsci só fez crescer. Textos esparsos, coletâneas e pesquisas mais estruturadas – bem como uma edição de Gramsci em Quadrinhos (Veneta, 2019) -- começaram a circular em sequência, formando um volume que chama atenção, até por coincidir com um período não propriamente favorável ao marxismo ou às esquerdas. É uma prova de vitalidade e relevância, que se expressa com clareza nos verbetes do Dicionário.
2020 mantém esse padrão. A editora Boitempo inaugurou sua coleção Escritos Gramscianos com uma reunião de artigos escritos por Gramsci em 1917, Odeio os Indiferentes. Embora não integrem o núcleo fundamental de sua reflexão, os textos daquele ano emblemático – a Revolução Russa batia às portas – mostram um jovem intelectual convencido de que todos tinham de se engajar em causas grandiosas, justas e igualitárias. Apaixonado pela ideia de revolução, Gramsci mergulha na militância socialista. Sua bandeira é a luta pela dignidade dos trabalhadores, o desprezo por aqueles que “não tomam partido” e vivem como “homens nascidos apenas para consumir alimentos”, aprisionados a seus mundinhos provincianos. É um Gramsci preocupado com propaganda e militância. Um entusiasta da Revolução Russa, compreendida por ele como destinada a libertar as massas de sua condição subalterna e inaugurar uma nova era universal.
Processa-se ali uma inflexão, que levará Gramsci ao Partido Comunista e à luta antifascista, em nome da qual será preso e condenado pelo regime de Mussolini. A passionalidade de 1917 seria, com o tempo, temperada pela luta política, a convivência com a Internacional Comunista e os anos no cárcere (1926-1937), durante os quais analisará a derrota do movimento revolucionário e elaborará uma sofisticada teoria da política e do Estado, na qual lugar de destaque será dado aos intelectuais e à educação, o que não era comum entre os marxistas.
A compreensão dessa trajetória requer que se leve em conta as circunstâncias históricas, os “contextos”. O volume Gramsci no seu tempo chegou à segunda edição propondo-se a ser um esforço para inserir Gramsci na história vivida, em seus dramas pessoais e em seu relacionamento com o movimento comunista da época. Trata-se de uma coletânea que complementa os seminais trabalhos de Giuseppe Vacca, Vida e Pensamento de Antonio Gramsci. 1926-1937, e de Leonardo Rapone, O Jovem Gramsci: Cinco Anos que Parecem Séculos, 1914-1919, ambos lançados anos atrás pela Contraponto/FAP. Na mesma direção vai Antonio Gramsci, o Homem Filósofo, de Gianni Fresu, fruto de uma alentada pesquisa sobre a evolução política e intelectual de Gramsci, suas batalhas pessoais e teóricas travadas sem dogmas ou esquemas pré-concebidos. Fresu enfatiza que o legado gramsciano “desenvolve-se num quadro de profunda continuidade”, o que não significa que Gramsci permaneça sempre idêntico, mas sim que “suas questões e suas conclusões ficam mais complexas, tomam novas direções” e modificam seus pressupostos iniciais. O teórico dos Cadernos não abandona os ideais revolucionários e a visão de mundo da juventude: procede por um movimento de superação, que incorpora o que antes formulara e o projeta em um plano mais sofisticado.
Do conjunto desses livros emerge um Gramsci atento à sinuosidade da história, não dogmático, livre de armaduras ideológicas ou da “obediência” cega a diretrizes partidárias. Uma figura de intelectual bem diferente daquela que a extrema-direita apresenta e que também colide com o doutrinarismo das esquerdas. Em sua trajetória de diálogo com os dilemas da época em que viveu, Gramsci elaborou um marxismo maduro, forjado na dialética histórica e na busca pelas fontes que fazem a humanidade ser como é.
*É professor titular de Teoria Política da Unesp e autor do livro ‘As ruas e a democracia: ensaios sobre o Brasil contemporãneo’ (Contraponto/FAP)
Olavo de Carvalho recorre a conceito de Gramsci para atacar esquerda, explica Marcos Sorrilha
Em artigo publicado na revista Política Democrática Online, professor da Unesp analisa pensamento de escritor brasileiro
Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP
O escritor Olavo de Carvalho recorre ao conceito de hegemonia de Antonio Gramsci para interpretar o mundo e a construção da Nova Era, apropriando-se do paradigma gramsciano da política-hegemonia. Essa é a análise do historiador Marcos Sorrilha Pinheiro, em artigo de sua autoria publicado na 20ª edição da revista Política Democrática Online, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília.
Acesse aqui a 20ª edição da revista Política Democrática Online!
Todos os conteúdos da publicação podem ser acessados, gratuitamente, no site da entidade. Professor assistente da Unesp (Universidade Estadual Paulista), Pinheiro diz que a palavra hegemônica é fundamental para entendermos como se daria a construção da Nova Era na versão de Olavo de Carvalho.
“Na verdade, não se trata apenas de uma palavra, mas de um conceito elaborado por Antonio Gramsci no início do século 20. Segundo Gramsci, o conceito de hegemonia retirava o socialismo do plano revolucionário e o trazia para o paradigma político/democrático”, explica o historiador.
Em Gramsci, de acordo com o professor, a construção de uma sociedade igualitária, principalmente no Ocidente, não se daria mais pela revolução, mas pela articulação do campo político, por meio da difusão de valores, tradições e ideias junto ao sistema nervoso das sociedades: a cultura.
Segundo Pinheiro, os partidos e seus intelectuais deveriam atuar como sujeitos articuladores dessa cultura, lançando mão dos aparatos próprios para sua mobilização: a mídia, a escola, as artes etc. “À medida que tais ideias fossem ganhando maior abrangência e concordância entre os cidadãos, seria aberta a possibilidade de que líderes comunistas fossem eleitos pelo voto e, uma vez no comando do Estado, lançariam mão das ferramentas do poder para organizar a sociedade em torno de seus ideais, convertendo-os em uma hegemonia”, diz.
Olavo de Carvalho, de acordo com o professor, recorre ao conceito de hegemonia gramsciano, pois, conforme explica, entende que, com o ocaso da União Soviética, Gramsci se converteu no grande paradigma de atuação da esquerda global. “Por meio de seus métodos (a contaminação da cultura com valores marxistas), foi possível aos intelectuais gramscistas o predomínio junto às principais instituições internacionais responsáveis pela elaboração de estratégias de desenvolvimento global, como a ONU, a OMS, ONGs etc., transformando pautas da esquerda em pautas da própria humanidade”, escreve.
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Compre na Amazon: Livro Diálogos Gramscianos analisa principais enigmas da política brasileira
Obra de Luiz Jorge Werneck Vianna apresenta duas das principais paixões do autor: o Brasil e a democracia
Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP
O cientista social Luiz Jorge Werneck Vianna, de 81 anos, professor da PUC-RJ (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro), é um defensor intransigente da democracia, analisa os fatos por meio de uma compreensão crítica da realidade e da história e sustenta uma legítima teoria sobre o Brasil como Estado nacional e comunidade política. No livro Diálogos Gramscianos Sobre o Brasil Atual (2018), uma de suas obras mais recentes à venda no site da Amazon e produzida com entrevistas realizadas por ele com diversos interlocutores, o autor apresenta um enigma da política brasileira. O livro foi editado em parceria entre Verbena Editora, FAP (Fundação Astrojildo Pereira) e Fundação Gramsci.
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Um dos maiores intérpretes brasileiros de Antonio Gramsci, Vianna mostra, em seu livro, entrevistas que contemplam o período de 2007 a 2018 e que vão além de meras análises de conjuntura. O autor nasceu no Rio de Janeiro em novembro de 1938. Concluiu o curso de graduação em Direito pela UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), em 1962. Em 1967, terminou a segunda graduação, em Ciências Sociais, pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Em 1970 concluiu o Mestrado em Ciência Política pelo Iuperj (Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro) e, em 1976, obteve título de doutor em Sociologia pela USP (Universidade de São Paulo).
O cientista político Rubem Barboza Filho registrou sua avaliação na contracapa do livro. “Nesta coletânea, o leitor irá se deparar com a reflexão, em ato, de um de nossos maiores intelectuais”, diz, para continuar: “Longe da impotência reflexiva que esteriliza as nossas conhecidas divisões, Luiz Werneck Vianna reafirma, com uma verve que associa a visão de longo prazo e a face das conjunturas, duas de suas paixões: o Brasil e a democracia. Paixões que alimentam a lucidez profética de quem não aceita para o país outro futuro senão uma vida democrática cada vez mais densa e produtiva”.
País sufocado
Leitor de Vianna, o doutor em ciência política pela USP e professor de teoria política na Unesp (Universidade Estadual Paulista) Marco Aurélio Nogueira atesta a visão que o autor deixa no livro. “Um país sufocado pela centralidade do Estado, que modelou a modernização de modo a prolongar a marginalidade das classes subalternas e a travar o próprio moderno. Tratou-se de uma ‘estatalização’ que não foi incentivada e organizada somente pelas elites dominantes, mas também pelos atores que buscaram se apresentar como expressão da esquerda”, afirma Nogueira.
O livro também procura acompanhar os desdobramentos recentes do processo político no Brasil, segundo Nogueira, olhando em detalhe a “era Dilma” (2011-2015), com sua tentativa fracassada de patrocinar um desenvolvimentismo sem foco emancipatório e destinado basicamente a servir de plataforma para a reprodução de um bloco de forças no poder. “A consequência disso não foi apenas o impulsionamento de uma grave crise econômica e fiscal, como também a perda da base parlamentar, que levou ao impeachment, e uma crise política de vastas proporções, com a qual ainda temos de lidar”, diz o professor da Unesp.
Luiz Werneck Vianna é presidente da ANPOCS (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais) e foi professor do Iuperj. Ele também é autor de outros livros à venda no site da Amazon, como Ensaios sobre política, direito e sociedade (2015), Modernização sem o Moderno (2011), A Revolução Passiva (2004) e A Judicialização da Política e das Relações Sociais no Brasil (1998).
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Intelectuais e Política em Gramsci
A FAP publica o audio de uma conversa realizada pelo Grupo Intelectuais e Política na América Latina, sediado na Unesp/Franca, sobre a obra, o pensamento e os conceitos de Antonio Gramsci. Vale a pena ouvir e refletir sobre o que diz Marcus Oliveira, doutor em História e membro do Conselho Curador da Fap, especialista no tema:
https://soundcloud.com/ipacast/intelectuais-e-politica-em-gramsci
Antonio Gramsci e a Revolução Russa: uma reconsideração (1917-1935)
Na ocasião do centésimo aniversário da Revolução Russa e do octogésimo da morte de Gramsci, o presente ensaio se propõe a contribuir para a contextualização histórica da personalidade e do pensamento desse pensador, seguindo uma abordagem que se consolidou sensivelmente nos estudos mais recentes. O tema da relação de Gramsci com o leninismo e o bolchevismo foi debatido infinitas vezes, mas hoje, um quarto de século depois do fim do comunismo na Europa e na Rússia, podemos nos libertar de limitações definidoras e ideológicas. Um modo de fazê-lo é reconstruir os vários fios que ligam o percurso de Gramsci antes da prisão e depois, no cárcere, com a experiência central da Revolução Russa. Esses fios são entrelaçados com toda a sua biografia de 1917 em diante, a tal ponto que não é fácil isolar o próprio tema e fornecer pistas interpretativas capazes de unir comentários, percepções, análises, estratégias e reflexões. Mas é necessário fazê-lo se quisermos compreender melhor o nexo entre a ação política e o pensamento. Pretende-se sugerir que justamente isolando o tema da Revolução Russa podemos ver com mais precisão a formação das principais categorias do pensamento político de Gramsci.
Por Silvio Pons
Università degli Studi di Roma “Tor Vergata”.
Roma, Italia. pons.silvio@gmail.com
O IMPACTO DA REVOLUÇÃO E O NASCIMENTO DE UMA NOVA ESTATALIDADE (1917-1921)
A revolução dos bolcheviques é feita de ideologias mais do que de fatos. (Por isso, no fundo, pouco nos importa saber mais do que sabemos). Essa é a revolução contra O Capital de Karl Marx. O Capitalde Marx era, na Rússia, o livro dos burgueses, mais do que dos proletários. Era a demonstração crítica da necessidade fatal de que na Rússia se formasse uma burguesia, se iniciasse uma era capitalista, se instaurasse uma civilização de tipo ocidental, antes que o proletariado pudesse sequer pensar na sua emancipação, nas suas reivindicações de classe, na sua revolução. Os fatos superaram as ideologias. Os fatos fizeram explodir os esquemas críticos dentro dos quais a história da Rússia deveria se desenvolver de acordo com os cânones do materialismo histórico. Os bolcheviques renegam Karl Marx e afirmam, com o testemunho da ação explícita, das conquistas realizadas, que os cânones do materialismo histórico não são tão férreos como se poderia pensar e se pensou.1
É esse o célebre primeiro comentário de Gramsci sobre a Revolução de Outubro, menos de um mês após a tomada do poder pelos bolcheviques. Ponto de chegada das reflexões dedicadas por ele à Rússia depois da Revolução de fevereiro, mas também antecipação de muitas problemáticas futuras, a “revolução contra o Capital” tornou-se, retrospectivamente, uma chave de acesso à biografia política e intelectual gramsciana, e até mesmo às motivações de uma geração inteira de jovens revolucionários que viveram o trauma da Guerra Mundial (Eley, 2017). De fato, aquelas palavras de Gramsci continuam a nos parecer penetrantes e emblemáticas. Penetrantes porque apreendem um núcleo essencial do pensamento e da ação de Lenin e dos bolcheviques, que revisa o marxismo da Segunda Internacional. Emblemáticas porque constituem o embrião de uma cultura política centrada no papel da subjetividade, a base de uma visão antideterminista e antimecanicista da história. Nesse sentido, emerge logo a trama entre o impacto da revolução e a reflexão sobre categorias da política moderna, destinada a permanecer traço distintivo de Gramsci por muitos anos.
Essa trama se enriquece rapidamente de significados no contexto da luta política e dos conflitos sociais na Itália e na Europa no final da guerra. Gramsci desenvolve juntamente uma idealização da Revolução Russa, própria naquele momento de muitos jovens intelectuais socialistas e marxistas, e uma leitura não convencional das suas características, que se liga a uma precisa visão das consequências da Guerra Mundial: a emergência de uma nova consciência social da mobilização total, o salto de qualidade da modernidade política como a participação de massa na vida pública, a exigência de uma reconfiguração radical da ordem mundial. Por essa via, Gramsci legitima sem reservas a ação de Lenin e dos bolcheviques, que vê não como utópicos mas realistas, organizadores da consciência de massa e portadores de ordem no caos russo, aderindo à ideia e à prática da ditadura do proletariado como instituto de garantia da liberdade. Ele parece não ter sido tocado nem minimamente pela dúvida, presente entre os socialistas europeus da época, de que o poder do partido possa desautorizar o autogoverno dos Conselhos Operários. Ao contrário, ele pensa que os sovietes e o partido bolchevique sejam os “organismos” integrados da nova ordem, capazes de criar novas hierarquias baseadas em uma “autoridade espiritual”, fonte de socialização e de uma cidadania responsável (Il Grido del Popolo, 22 jun. 1918; Avanti!, 25 jul. 1918). Assim, participa da construção de um mito da revolução. Bem consciente da lição de Sorel a respeito da importância de um mito fundador na moderna sociedade de massas, como fator de organização de uma vontade coletiva, instaura uma dialética entre a narração meta-histórica de nascimento de uma “nova ordem” e a sua posição no tempo histórico do pós-guerra. Ele continua a ver a revolução como fruto de uma profunda agitação da sociedade, uma combinação entre o crescimento espontâneo da consciência de massa e a ação da subjetividade política. Identifica logo o cenário da “nova ordem” com a figura do Estado bolchevique, seu monopólio da força e seu grupo dirigente. A centralidade dessa visão historicamente determinada foi talvez subestimada pelos estudiosos e, pelo contrário, merece um foco particular pelas suas implicações no longo prazo.2
Ao final da Guerra Mundial e após a eclosão da guerra civil na Rússia, Gramsci desenvolve sua própria visão do Estado revolucionário, acrescentando novas peças ao aparato delineado na “revolução contra o Capital”. A República dos Sovietes é para ele “um Estado orgânico, constitucionalmente e historicamente justificado”, cuja legitimação reside em sua força militar (Avanti!, 9 fev. 1919). A instauração de uma nova estatalidade lhe parece “o fato essencial da Revolução Russa”, e Lenin, “o maior estadista da Europa contemporânea” (L’Ordine Nuovo, 5 maio e 7 jun. 1919). Não parece sensato nem possível separar a visão do Estado bolchevique da ideologia conselhista que Gramsci desenvolve com a fundação do movimento Ordine Nuovo (Nova Ordem), em Turim. A experiência conselhista extrai alimento original do novo protagonismo operário que na Alemanha e na Itália adquire uma dimensão mais ampla do que na Rússia, mas que é inconcebível, nas suas formas e dinâmicas, sem a interação com a Revolução Russa. Os escritos de Gramsci estabelecem uma constante interdependência entre a politização das massas, a revolução bolchevique, a crise da ordem liberal e capitalista pré-bélica, o problema de reconstruir uma ordem internacional e o colapso da configuração tradicional da sociedade italiana. A idealização da Revolução Russa e a análise do pós-guerra europeu convivem entre si. Entre o fim de 1918 e o início de 1919, com a queda dos impérios centrais, generaliza-se a percepção de uma possível onda de levantes revolucionários, que suscita esperanças e medos. O colapso da velha ordem europeia é uma realidade, não uma imaginação. A ideia que a revolução na Europa e o autogoverno dos trabalhadores fosse atual, mais que a construção de Estados democráticos, corresponde à percepção de muitos no inverno 1918-1919, no contexto de uma crescente radicalização e mobilização de forças opostas. Gramsci não assume o “modelo” de revolução mas pensa que a agitação profunda provocada pela guerra leva à construção de uma “nova ordem” que a Rússia está antecipando e revelando.
No rastro da Internacional comunista, Gramsci adota uma visão catastrófica do pós-guerra. O quadro da vida internacional lhe parece “uma espantosa tempestade em uma paisagem de ruínas”, a mesma “organização da civilização mundial ... desintegrada na sua totalidade”, uma vez que “os Estados liberais metropolitanos se desfazem em seu interior” e “o sistema das colônias e das esferas de influência se desintegra” (L’Ordine Nuovo, 1 maio 1919). Gramsci não considera uma autêntica possibilidade a reconstrução da Europa burguesa, em formas democráticas ou autoritárias, que ele apresenta como uma perspectiva e uma tentativa contingente. Todavia, foge de visões deterministas e inscreve as próprias considerações no campo das possibilidades históricas. A sua ênfase recai sobretudo na possibilidade salvadora de que “uma classe dirigente nova ... construa uma nova ordem internacional que unifique a consciência universal do mundo”. Nesse sentido, as forças revolucionárias e soviéticas na Rússia, na Baviera, na Hungria e também na Itália lhe parecem a única barreira contra a dissolução da sociedade e a guerra civil europeia. A distância entre o mundo institucional e cultural e o socialismo é radical: os comunistas devem se opor com sua cultura política, sabendo que “a crise catastrófica na qual se debate a civilização europeia só pode ser detida pela substituição radical do Estado democrático-parlamentar por um sistema de Conselhos operários e camponeses” (L’Ordine Nuovo, 2 ago. 1919).
Tal ótica visionária não impede análises baseadas no realismo, sobretudo construídas com base em categorias geopolíticas. Ele se faz intérprete de sentimentos transversais na opinião política europeia e percebe as figuras de Lenin e Wilson como protagonistas de duas visões opostas da ordem pós-bélica, ambas inovadoras, uma alternativa entre a paz obtida pela revolução socialista e a paz relacionada à democracia capitalista (Avanti!, 5 jul. 1918; Il Grido del Popolo, 12 out. 1918). A oposição entre Lenin e Wilson é, na realidade, uma simplificação que não dá conta da complexidade política e social das opções em campo no fim da guerra. As trajetórias do leninismo e do wilsonismo estão ambas destinadas, em diversos modos, a deixar uma marca fundamental, mas também a declinar precocemente na contingência do pós-guerra.
Todavia, tal chave captura a entrada em cena de forças destinadas a modificar a política mundial de modo irreversível. Não é exagero afirmar que os escritos gramscianos desses anos mostram uma visão global, ainda que concentrada na Europa. Gramsci entrevê a emergência de uma hegemonia mundial anglo-americana após a queda dos impérios centrais e põe em questão a crise do Estado-nação europeu, na qual enquadra a crise do Estado italiano (Avanti!, 10 maio e 18 jul. 1919). Percebe as incongruências geopolíticas da paz de Versalhes, que não atingem somente a Alemanha, mas todo o ordenamento da Europa oriental e da Rússia (L’Ordine Nuovo, 15 maio 1919).
Em tal contexto, a força do poder bolchevique na guerra civil e a onda de violência que abala a Europa em tempo de paz levam-no a deslocar gradualmente o foco do tema da consciência social e da iniciativa de baixo para a noção de relações de força e à consolidação de uma nova ordem política. Como já se observou, elas representam “duas correntes de base” do seu pensamento político, que compreende a revolução socialista não só como automobilização das massas e libertação individual, mas também como coesão e ordenamento do corpo social, sobretudo pela figura e autoridade do Estado (Rapone, 2011, p.409). Ele dirige atenção crescente ao segundo dos dois polos, quanto mais se fundem aos seus olhos a atualidade da revolução na Europa e a emergência do poder bolchevique da guerra civil na Rússia.
Gramsci não se debruça sobre o principal paradoxo da Revolução Russa: ter realizado o que Lenin e os outros líderes bolcheviques consideravam impossível, sobreviver apesar do isolamento internacional, defender com sucesso seu poder na guerra civil apesar da ausência da revolução na Europa. Só mais tarde as consequências de tal paradoxo tornam-se evidentes. Ele delineia principalmente a ideia de que a derrota das revoluções na Europa central implica o abandono da noção de uma “revolução em dois tempos”, a exemplo daquela realizada na Rússia entre fevereiro e outubro de 1917 (L’Ordine Nuovo, 3 jul. 1920). É uma mudança ainda parcial e incompleta, que confia os sucessos revolucionários à construção de fortes partidos comunistas na Europa, segundo o projeto anunciado pelo Comintern. Assim, a perspectiva de uma revolução europeia que não se destina a seguir o exemplo russo reforça e não enfraquece o nexo com o “partido mundial da revolução” em Moscou. Ainda mais no contexto da derrota sofrida pelas lutas operárias na Itália na primavera-verão de 1920, já visível antes do seu auge na ocupação das fábricas em setembro (Tasca, 1973, p.113-114). A guerra russo-polonesa e o seu êxito consolidam essa passagem. O objetivo da tomada de Varsóvia, a expectativa de uma insurreição proletária na Polônia e na Alemanha e a esperança de exportar a revolução “na ponta das baionetas” movimentam o segundo Congresso do Comintern entre julho e agosto. Gramsci nutre as mesmas esperanças. Ele abraça a ideia de que a Rússia soviética é uma “potência mundial”, visão expressa antes da clamorosa derrota do Exército Vermelho (L’Ordine Nuovo, 14 ago. 1920). Todavia, essa noção se aplica à força real manifestada pelo Estado construído pelos bolcheviques e à perspectiva da sua difusão em escala mundial, independentemente dos resultados da guerra na Polônia. Nesse sentido, a consonância de Gramsci com Lenin é particularmente significativa, porque não está confinada à ilusão revolucionária que se esvai repentinamente e olha além da contingência estratégica do verão de 1920. A presença do Estado bolchevique não parece então decisiva somente pela sua constituição interna e por seu exemplo revolucionário, mas pela sua projeção e influência no sistema internacional dos Estados e no poder mundial. A oposição Lenin-Wilson desvanece e nenhuma das duas figuras espelha retrospectivamente os significados e as tendências do imediato pós-guerra. Mas as forças de mudança postas em movimento pela Guerra Mundial estão igualmente em ação. O projeto leninista permanece atual pela mutação da guerra civil e marca o tempo histórico do pós-guerra.
O ESTADO SOVIÉTICO, O MOVIMENTO COMUNISTA E A HEGEMONIA REVOLUCIONÁRIA (1922-1926)
A partir do nascimento do Partito Comunista d’Italia (PCd’I), em janeiro de 1921, a experiência de Gramsci se desloca do terreno da intervenção militante e da criação de cultura política ao da ação voltada à construção do partido. Tal ação revelará em diversos momentos a influência dos paradigmas de leitura originários e lançará luz sobre o acúmulo de experiências também do ponto de vista analítico, destinadas a recuperar, afinar e também a modificar profundamente aqueles paradigmas. Sobrepõem-se então dois registros diferentes: de um lado, o da estratégia do movimento comunista e do PCd’I, e de outro, o dos acontecimentos da Rússia soviética, que entram em estreita interação entre si. O advento do fascismo na Itália, as convulsões da reconstrução europeia e a “construção do socialismo” na Rússia tornam-se os cenários essenciais no interior dos quais se desenvolvem as análises políticas e estratégicas gramscianas. No período transcorrido em Moscou em 1922 e 1923, Gramsci vive por experiência própria o nexo entre a consolidação do governo bolchevique após guerra civil e a reformulação de uma estratégia do movimento comunista, em muitos aspectos contrastantes com as convicções amadurecidas por ele até aquele momento. Gramsci toma consciência de três passagens decisivas que refletem o fim da fase de movimento aberta no último ano da Guerra Mundial e o isolamento da Revolução Russa: o rígido vínculo da unidade do grupo dirigente imposto por Lenin como condição de existência da “ditadura do proletariado”; o discurso sobre a aliança operária e camponesa ligado à Nova Política Econômica (NEP) como condição de uma base social da construção socialista; a “frente única” considerada como redefinição estratégica após a derrota da revolução europeia. Somente após o período moscovita, emergem paulatinamente uma ideia processual da revolução e uma análise do fascismo como fenômeno não efêmero de reorganização do poder na sociedade de massa, reflexão inspirada pelo Comintern (sobretudo por Bukharin) e comum a todo o grupo dirigente italiano, ainda imerso em seus sonhos revolucionários.
Nessa evolução, o momento de virada é representado pelo fracasso da tentativa revolucionária de outubro de 1923 na Alemanha e pela morte de Lenin. O outubro alemão mostra como a construção de partidos comunistas organizados era condição necessária, mas não suficiente, para a revolução na Europa. Gramsci aceita a interpretação do fracasso formulada pelos dirigentes do Comintern, que atribuem toda a responsabilidade aos comunistas alemães. Todavia, não se limita a isso e formula em Viena, em fevereiro de 1924, a primeira ideia de uma visão diferenciada da revolução no Ocidente, escrevendo que
a determinação, que na Rússia era direta e lançava as massas nas ruas ao assalto revolucionário, na Europa central e ocidental se complica por todas aquelas superestruturas políticas, criadas pelo maior desenvolvimento do capitalismo, o que torna mais lenta e mais prudente a ação da massa e demanda, portanto, do partido revolucionário toda uma estratégia e uma tática mais complexa e de maior fôlego em relação às que foram necessárias aos bolcheviques no período entre março e outubro de 1917. (Togliatti, 1974, p.197)
Essa é uma novidade no discurso político e um elemento de reflexão único no panorama do comunismo europeu, não somente no confronto com Bordiga. As palavras empregadas por Gramsci são mais ricas de implicações da crítica à revolução “em dois tempos” formulada em 1920, porque reconhecem a complexidade política das sociedades europeias e vinculam as características da Revolução Russa a uma contingência histórica. Vale a pena observar que tal afirmação precede um pouco a primeira análise autêntica de Gramsci, já de volta à Itália, sobre o fascismo como um fenômeno de massa original (Gramsci, 1971, p.33-34). Nessa mesma passagem, Gramsci insiste na incapacidade dos comunistas italianos em obter uma adesão de massa entre os operários no momento da cisão de Livorno, apesar “da autoridade e do prestígio” da Internacional comunista, êxito julgado impiedosamente como uma derrota: “fomos derrotados, porque a maior parte do proletariado organizado politicamente não nos deu razão ... Fomos - é necessário dizer - arrastados pelos acontecimentos; fomos, involuntariamente, um aspecto da dissolução geral da sociedade italiana” (L’Ordine Nuovo, 15 mar. 1924). Gramsci emprega palavras duras que retornarão no ano seguinte nas “Teses de Lyon” e que deixarão uma marca na sua trajetória intelectual e política.
Entrementes, seu elogio fúnebre representa plenamente a identificação, realizada logo após a revolução, entre a liderança leniniana e a ditadura do proletariado como fator de ordem e de autogoverno das massas: Lenin é “o expoente e o último e mais individualizado momento de todo um processo de desenvolvimento da história passada, não somente da Rússia, mas do mundo inteiro”. No seu legado, Gramsci põe em primeiro plano “a ideia de hegemonia do proletariado ... concebida historicamente e concretamente”, que se expressou na NEP e na fórmula da aliança entre os camponeses pobres (L’Ordine Nuovo, 15 mar. 1924). Ele emprega a noção de hegemonia seguindo a acepção prevalente no bolchevismo do início dos anos 1920, que pôde apreender durante a sua permanência em Moscou. Ainda mais do que na linguagem de Lenin, tal noção é explícita nos discursos de Zinoviev, o presidente do Comintern. Já em 1922, ele invoca a exigência de que a classe operária no poder, em um país prevalentemente componês e sitiado pelo capitalismo, adquira uma visão “estatal geral”, afastando-se dos seus “interesses corporativos” para exercitar o próprio papel “hegemônico” e de “guia da revolução em escala nacional e internacional”.3 Em 1923, o próprio Zinoviev eleva a noção de hegemonia à principal categoria do bolchevismo, com boa dose de aproximação e propagandismo, indicando como exemplo dela também a construção do Exército Vermelho (Brandist, 2015, p.101). Os termos “hegemonia” e “direção” aparecem amplamente sobrepostos. De qualquer modo, institui-se uma continuidade entre o papel das alianças sociais antes da revolução e após a revolução que serve como ensinamento para todos os comunistas, começando por aqueles dos países de industrialização recente como a Itália. Filtrada pela experiência moscovita, a combinação gramsciana entre consciência social, subjetividade política e organização estatal se manifesta assim de forma diversa em relação ao “biênio vermelho” de 1919-1920. E todavia, ele mantém firme a interdependência entre a estatalidade revolucionária na Rússia e a revolução na Europa, tematizada então na chave de influência, exemplo e potência mundial. A diferenciação entre Rússia e Ocidente não significa perder o senso de interdependência dos cenários revolucionários e dos processos mundiais. Para Gramsci não existe uma dimensão separada da revolução no Ocidente, mas sobretudo um problema persistente de “tradutibilidade” da revolução bolchevique no plano nacional e europeu. Justamente por isso, a morte de Lenin abre uma interrogação dramática sobre a capacidade do grupo dirigente russo e do “partido mundial” revolucionário em preservar o próprio projeto.
Gramsci é consciente das divisões do grupo dirigente bolchevique que se delineiam entre o fim de 1923 e o início de 1924, especialmente em torno do regime interno de partido e do êxito do outubro alemão, mas em uma situação ainda fluida. A questão reemerge clamorosamente no outuno de 1924, em seguida ao célebre texto de Trotsky sobre “As lições de outubro”, destinado a suscitar paixões e interrogações bem mais substanciais e angustiantes. A luta entre os sucessores de Lenin apresenta uma dupla implicação para todos os comunistas da época: uma ruptura que atravessa de modo transversal todo o movimento comunista, com consequências imprevisíveis; um descolamento entre a “construção do socialismo” na União Soviética e o destino da revolução mundial. Como todos, Gramsci segue uma lógica de alinhamento. Mas não a segue até as extremas consequências e até opõe a ela uma vigilância crítica. Não é difícil ver os elementos políticos e intelectuais que o levam a defender posições não conformistas, mostrando uma relação peculiar com a herança de Lenin. Ele se preocupa sobretudo com o perigo constituído pelo fato de que “a falta de unidade no partido, em um país no qual há um só partido, cinde o Estado”.4 Uma constatação crítica em relação à oposição trotskista mas também em relação à maioria staliniana do partido soviético, que rotulando a oposição como um corpo estranho ao Comitê Central constrói uma unidade fictícia do partido. Mas também uma constatação desligada da contingência e muito enraizada na visão gramsciana da “ditadura do proletariado” como Estado orgânico, desenvolvida desde os anos da guerra civil. Nesse ínterim, propõe-se a manter aberto um discurso sobre a atualidade da revolução e desconfia de análises instrumentais do conflito político. Por isso acolhe sem entusiasmo a noção da “estabilização relativa” do capitalismo que se destaca nas análises de Stalin e Bukharin na metade dos anos 1920 e que se liga à teoria do “socialismo em um só país”. Embora a sua linguagem seja amplamente bolchevizada, ele não tolera as fórmulas onicompreensivas cunhadas pelo Comintern no plano analítico. Assim, ele delineia uma análise diferenciada dos países capitalistas europeus ao longo de um esquema centro-periferia, que não se encontra nas concepções do Comintern e ressoa sobretudo as suas análises geopolíticas que remontam a anos anteriores.5 Em síntese, Gramsci adere com convicção à ideia da “construção do socialismo”, mas sua visão política não segue fielmente as coordenadas do pós-Lenin.
A célebre carta de 14 de outubro de 1926 ao Comitê central do partido soviético constitui o momento no qual a visão gramsciana se cristaliza antes da prisão. Sua trama se articula sobre dois pontos: primeiro, o nexo entre “socialismo em um só país” e revolução mundial não é resolvido de uma vez por todas, mas deve ser definido nas distintas ocasiões, à luz dos interesses estatais da União Soviética, do papel desempenhado pelo partido russo no movimento comunista internacional, da análise das realidades nacionais no mundo capitalista; segundo, a condição para realizar essa tarefa é reforçar, e não enfrquecer, a unidade do grupo dirigente russo, sobretudo nas condições da NEP e da “aliança” entre operários e camponeses. O perigo de uma “cisão” da qual revelava temor desde o início da carta é por isso ligado estreitamtente ao risco de perder o papel de “propulsão revolucionária” desempenhado pelo Estado soviético. Embora sustentando politicamente a maioria do partido russo, Gramsci endereça aos seus dirigentes a advertência mais severa: a de “anular a função dirigente” própria do partido russo no “partido mundial” e de “perder de vista os aspectos internacionais das próprias querelas russas”. Dada a sua visão do Estado revolucionário, o tema da unidade não é para ele um dado interno das lógicas do partido russo, mas um problema internacional, decisivo para os militantes comunistas e para as “grandes massas trabalhadoras”. No risco de uma cisão ele vê postos em discussão “o princípio e a prática da hegemonia do proletariado” e “as relações fundamentais de aliança entre operários e camponeses”, isto é, “os pilares do Estado operário e da Revolução”. A sua crítica à oposição trotskista está centrada no argumento fundamental de que ela tenha traído a ideia de que o proletariado “não pode manter a sua hegemonia e a sua ditadura” sem sacrificar os próprios “interesses corporativos” e ressuscite, portanto, “toda a tradição da social-democracia e do sindicalismo”, obstáculo principal ao “organizar-se como classe dirigente” do proletariado ocidental. Mas a sua preocupação é que a maioria staliniana pretenda ganhar com vantagem esmagadora e favorecer uma cisão que produziria danos “irreparáveis e mortais”.6 Replicando pouco depois a Togliatti - que como se sabe, de Moscou julga um erro político a crítica gramsciana e invoca uma adesão incondicional à linha da maioria do partido bolchevique -, Gramsci repete com firmeza que o problema levantado na carta envolve “a hegemonia do prolet[ariado]” e a estabilidade do Estado na Rússia, a sua percepção dele entre as massas de trabalhadores, portanto o sentido e a missão dos comunistas. O seu ponto essencial é que o papel da União Soviética como “organizador das massas mais potentes que já apareceram na história” não deve ser considerado “já adquirido de forma estável e decisiva” porque, pelo contrário, “ele é sempre instável”. Assim se exprime Gramsci:
hoje, 9 anos depois do outubro de 1917, não é mais o fato da tomada do poder pelos bolcheviques que pode revolucionar as massas ocidentais, porque isso já foi dado como certo e produziu os seus efeitos; hoje é ativa, ideologicamente e politicamente, a persuasão (se existe) de que o proletariado, uma vez tomado o poder, pode construir o socialismo. A autoridade do P[artido] está ligada a essa persuasão, que não pode ser inculcada nas grandes massas com métodos de pedagogia escolástica, mas somente de pedagogia revolucionária, isto é, somente pelo fato político de que o P[artido] R[usso] no seu conjunto está persuadido e luta unitariamente.7
Essa tomada de posição é atípica no contexto do comunismo ocidental, como os historiadores sempre souberam. Mas hoje vemos melhor como ela implica um nexo essencial entre a questão da revolução no Ocidente e a questão da evolução na União Soviética, que ele desenvolverá nos anos do cárcere (Pons, 2008, p.403-430). Gramsci continua a ver a figura do partido bolchevique como partido de governo e aglutinador de um Estado proletário, como havia feito desde os anos da guerra civil. Seu apelo apresenta, entretanto, uma implicação muito significativa. Ele enfatiza a importância do recurso simbólico e político constituído pela autoridade do Estado e pela credibilidade da “construção do socialismo” no plano internacional não menos que na União Soviética. Estabelece assim um nexo entre hegemonia e autoridade como um objetivo político a ser conquistado e não como um dado de fato. Essa conexão se distingue da linguagem bolchevique, que enfatiza o momento da direção, e também do emprego precedente daquele termo criado pelo próprio Gramsci, que era de tipo convencional (hegemonia como supremacia) ou referente às alianças de classe no rastro da concepção leninista da NEP. Delineia-se uma acepção específica do conceito e uma centralidade cultural que ele nunca havia ocupado no bolchevismo, apesar da sua recorrência lexical (Di Biagio, 2008, p.379-402). As suas consequências políticas não foram expostas, as intelectuais foram desenvolvidas nos Cadernos do cárcere.
O OLHAR DO CÁRCERE: “GUERRA DE POSIÇÃO” E “REVOLUÇÃO PASSIVA” (1929-1935)
No cárcere, Gramsci não se distanciará mais dos princípios enunciados nas cartas de 1926 e desenvolverá as interrogações implícitas neles. Muitas notas dos Cadernos constituem um esforço intelectual solitário de encontrar respostas sobre a evolução vivida pela União Soviética e pelo Comintern, voltando a pensar nas próprias fontes originais e colocando-as no contexto analítico do mundo do pós-guerra. No período compreendido entre a sua prisão (outubro de 1926) e o planejamento da escrita (fevereiro de 1929), Trotsky e a oposição empreendem sua última batalha e são condenados e expulsos do partido, o grupo dirigente staliniano lança violentas “medidas excepcionais” no campo, e o Comintern adota uma linha “de esquerda” no sexto Congresso. A escrita de Gramsci começa a tomar corpo entre 1929 e 1930, depois que o Comintern realizou a virada extremista resumida nas palavras de ordem do conflito “classe contra classe” e do “social-fascismo”, que ele julga um erro pagando o preço de uma séria marginalização nas relações com o partido italiano. Assim, a condição de prisioneiro não é o único impedimento e a única fonte de solidão na relação com o mundo externo. A dimensão que lhe pertence não é, porém, a do distanciamento e do desencanto, mas a da dissensão e da revisão.
O elemento primário de análise é constituído pelo paralelo estabelecido entre a revolução francesa e a Revolução Russa. A analogia se refere em primeira instância à relação cidade-campo, à forma política da ditadura, à função nacional e modernizadora (Gramsci, 1975, Q1, p.43; Q3, p.337).8 Mas se expande depois a metáfora para a compreensão do papel e da influência mundial da Revolução Russa no pós-guerra, tornando-se assim uma fonte de juízo crítico nos Cadernos. A reflexão de Gramsci se concentra na Revolução Russa e em sua herança, sobretudo em algumas notas da mesma época (fim de 1930 - início de 1931) que compõem um quadro integrado ou integrável. Gramsci pensa retrospectivamente as características da revolução e insere a “construção do socialismo” na modernidade dos anos 1920. Como se sabe, ele considera a Revolução de 1917 como último episódio da “guerra de movimento” e da “tática de assalto” ao poder (Gramsci, 1975, Q7, p.860). Como estratégia política, a passagem da “guerra de movimento” à “guerra de posição” ou “de assédio”, lhe parece por isso “a questão de teoria política mais importante posta pelo pós-guerra” (Gramsci, 1975, Q6, p.801). Nesse período, Gramsci lê a autobiografia de Trotsky e faz dele objeto explícito da crítica que anima a própria reflexão retrospectiva. Trotsky é “o teórico político do ataque frontal no período em que este é somente causa de derrota” e o autor da doutrina da “revolução permanente”, que lhe parece “o reflexo político da teoria da guerra de movimento” (Gramsci, 1975, Q6, p.801-802; Q7, p.866). Gramsci contrapõe Lenin e Trotsky: o primeiro “profundamente nacional e profundamente europeu”, enquanto o segundo é, ao contrário, “um cosmopolita, isto é, superficialmente nacional e superficialmente ocidentalista ou europeu”. Na sua análise, somente Lenin tinha entendido a necessidade de passar da guerra de movimento à guerra de posição, “a única possível no Ocidente”, mas não tinha disposto do tempo para desenvolver a fórmula da “frente única”. As implicações de tal crítica se estendem por isso além da figura de Trotsky e se referem a toda experiência revolucionária do pós-guerra. A tarefa de passar à “guerra de posição”, ele escreve, implicava “um acurado reconhecimento de caráter nacional” porque “no Oriente o Estado era tudo, a sociedade civil era primordial e frágil; no Ocidente, entre o Estado e a sociedade civil havia uma justa relação ... O Estado era somente uma trincheira avançada, atrás do qual estava uma robusta cadeia de fortalezas e casamatas” (Gramsci, 1975, Q7, p.866). Os Cadernos retomam aqui a visão diferenciada do Ocidente em relação à Rússia, formulada pela primeira vez em fevereiro de 1924, agora inserida na concepção gramsciana da “guerra de posição”.
É importante observar como Gramsci, enquanto analisa o núcleo da fracassada experiência revolucionária do pós-guerra, dirige simultaneamente a própria atenção à experiência soviética. Mais uma vez é Trotsky o objeto da crítica, neste caso como voz principal do projeto de industrialização realizada com métodos coercitivos. Para Gramsci, tal tendência, se não tivesse sido derrotada, teria desembocado em “uma forma de bonapartismo” (Gramsci, 1975, Q4, p.489). Mas o perigo inerente ao industrialismo não é constituído somente pelo bonapartismo, também pelo “egoísmo econômico-corporativo”, a incapacidade do novo “grupo hegemônico” de realizar com responsabilidade autolimitações e sacrifícios para manter em vida os equilíbrios sociais e as perspectivas de transformação socialista (Gramsci, 1975, Q4, p.461). Um tema claramente retomado pela carta de outubro de 1926, que reemerge após a crise terminal da NEP e no contexto da modernização que se está realizando sob Stalin. O ponto de vista expresso por Gramsci é que a modernização seja compreendida dentro dos parâmetros produtivos e organizativos da modernidade global, no seu entender representados pelo americanismo (por isso reconhece que o interesse de Trotsky pelo americanismo vinha de “justas preocupações”, ainda que as soluções fossem “erradas”) (Gramsci, 1975, Q4, p.489). Mas ela deve ser também avaliada segundo o princípio de uma tarefa histórica precisa, a de construir uma nova ordem pós-revolucionária. Os representantes da “nova ordem em gestação”, que tem como referência “o mundo da produção” - ele escreve - “por ódio ‘racionalista’ ao velho, difundem utopias e planos sem critérios”. E, todavia, está convencido de que “o desenvolvimento das forças econômicas das novas bases e a instauração progressiva da nova estrutura sanarão as contradições que não podem faltar” e “permitirão novas possibilidades de autodisciplina, isto é, de liberdade também intelectual” (Gramsci, 1975, Q7, p.863). Em outras palavras, ele se pergunta se naquele preciso momento histórico os construtores da “nova ordem” estão à altura de exercer uma hegemonia política e econômica concreta. A sua fé na “construção do socialismo” não é cega, ainda que continue a acreditar em tal perpectiva.
De modo diverso, os temas até aqui tratados estão destinados a voltar e a sofrer revisões nas notas posteriores dos Cadernos, escritas entre a metade de 1932 e o início de 1935. Revisões muito significativas, pois podem ser facilmente decodificadas como um balanço substancialmente negativo da grande transformação soviética sob Stalin. Tal balanço não se refere às realizações econômicas do plano quinquenal nem à construção da potência soviética, mas se refere, ao contrário, ao tema do Estado e das superestruturas políticas. É esse o autêntico fio condutor que percorre o seu pensamento desde os escritos juvenis sobre o nascente Estado bolchevique como “Estado orgânico” nos anos da guerra civil até as notas tomadas no cárcere na época da “revolução do alto” de Stalin, mas estas últimas revelam também uma mudança radical. É preciso perguntar-se se o próprio ajustamento das principais categorias políticas gramscianas entre 1932 e 1933 não devam ser relacionadas com os êxitos visíveis da “revolução do alto” na União Soviética. As fontes a que Gramsci tinha acesso eram limitadas, mas suficientes para mostrar o projeto de onipotência do Estado, o domínio da propaganda, o peso das medidas administrativas e dos corpos burocráticos, a militarização das relações sociais (sobretudo entre cidade e campo) na União Soviética do início dos anos 1930. Sua questão fundamental torna-se, agora, verificar se é realmente possível desenvolver recursos hegemônicos em semelhante cenário. É visível um deslocamento do tema do industrialismo e da modernidade produtivista ao tema do regime político de massa, enquanto se destaca a questão do papel da União Soviética na ordem mundial do pós-guerra.
Um sinal inequívoco de tal deslocamento é constituído pela nota de abril de 1932, na qual Gramsci reconhece que o período de “estatolatria” parece “necessário e até oportuno” quando os grupos subalternos iniciam uma “vida estatal autônoma”, mas sublinha que com o fim de desenvolver “novas formas de vida estatal” tal “estatolatria” não deve se tornar um dado permanente nem tranformar-se em “fanatismo teórico” (Gramsci, 1975, Q8, p.1020). É difícil não pensar que aqui Gramsci exprime a sua visão retrospectiva sobre a evolução conhecida da “ditadura do proletariado” na década precedente e sobre as consequências da ruptura entre os sucessores de Lenin, que parece indicar não mais a temida “cisão” do Estado mas a emersão de um culto cego do Estado. Gramsci está já muito distante da sua visão juvenil da “ditadura do proletariado” como transição em direção a uma nova ordem e como condição da liberdade. Chega mesmo a inverter aquela perspectiva, aludindo ao perigo de que a ditadura pós-revolucionária se torne um fim em si mesmo, um autoritarismo privado de hegemonia, destinado a reproduzir violência e dogmatismo. Um obstáculo e uma negação da nova relação entre governantes e governados que constitui, na sua concepção, o teste decisivo da “construção do socialismo”.
A escrita controlada e hamletiana de Gramsci se faz mais transparente em algumas notas de fevereiro de 1933 ou pouco depois, que apresentam uma consonância temática junto à coincidência temporal. Ele afronta explicitamente, caso único nos Cadernos, o tema do “socialismo em um só país” - a perpectiva staliniana que ele mesmo tinha acolhido na década anterior e que então é apresentada na União Soviética como fato consumado. Ele repensa o conflito entre Trotsky e Stalin “como intérprete do movimento majoritário”, isto é, do bolchevismo, do ponto de vista da hegemonia. Esta pode se dizer garantida somente pela combinação correta dos elementos nacional e internacional. Por isso “as acusações de nacionalismo são incorretas se se referem ao núcleo da questão”. Para Gramsci, a originalidade do boschevismo pré-revolucionário foi justamente a de “depurar o internacionaslimo de todo elemento vago e puramente ideológico” para lhe dar “um conteúdo de política realista”. Todavia, Gramsci atribui a Trotsky e a Stalin as mesmas deficiências. A fase atual do socialismo, escreve, é caracterizada por um “napoleonismo” anacrônico, por “uma forma moderna do velho mecanicismo” e por uma “teoria geral da revolução permanente” (Gramsci, 1975, Q14, p.1730). Escritas no fim do primeiro plano quinquenal, essas palavras parecem um código que se refere à ditadura staliniana, ao caráter teleológico do planejamento soviético e ao ultrarradicalismo da estratégia do Comintern. É lícito pensar que Gramsci emprega tal código para evidenciar a incapacidade dos sucessores de Lenin de compreender a “guerra de posição” e os limites mostrados pela “construção do socialismo” em termos de hegemonia.
Contemporaneamente, Gramsci escreve sobre a “revolução passiva” - isto é, a realização de mudanças históricas necessárias pelas próprias classes dominantes, capazes de conter as forças autenticamente revolucionárias. O tema aparece nos Cadernos muito cedo como um paradigma interpretativo da história italiana, extensível aos outros Estados da Europa moderna, mas somente nos anos 1932 e 1933 o seu significado se configura como categoria analítica fundamental (Vacca, 2017, p.95-99). É essencial destacar a coincidência temporal entre as notas que se referem ao “socialismo em um só país” sob Stalin e as que estendem a noção de “revolução passiva” a categoria essencial para entender o pós-guerra. Tal extensão da “revolução passiva” se verifica pela ligação com a noção de “guerra de posição”, que Gramsci adota como um critério de periodização histórica em uma nota do Caderno 10, escrita em maio de 1932:
na Europa de 1789 a 1870 houve uma guerra de movimento (política) na revolução francesa e uma longa guerra de posição de 1815 a 1870; na época atual, a guerra de movimento se teve politicamente de março de 1917 a março de 1921 e se seguiu uma guerra de posição cujo representante, além de prático (para a Itália), ideológico, para a Europa, é o fascismo. (Gramsci, 1975, Q10, p.1229)
A “guerra de movimento” do século XX, pontuada pelo impulso da revolução comunista na Rússia e na Europa, apresenta por isso uma duração muito breve em relação à do século precedente. Sua origem está na Revolução de Fevereiro, e seu fim não é datado no Outubro alemão de 1923 mas até mesmo na chamada “ação de março” de 1921 na Alemanha.
Todavia, as noções de “guerra de posição” e de “revolução passiva” apresentam implicações muito mais amplas da estratégia do comunismo internacional. Também no Caderno 10, Gramsci integra uma das suas notas iniciais sobre o nexo entre o Estado moderno francês nascido da Revolução e os outros Estados modernos europeus. A interrogação original é se o modelo de mudança sem revolução posto em prática pela Restauração do século XIX pode se repetir na história europeia e mundial também após a Guerra Mundial. Inicialmente ele havia excluído essa hipótese (Gramsci, 1975, Q1, p.134). Agora ele se pergunta se “ao menos em parte é possível ter desenvolvimentos semelhantes, sob a forma de advento de economias programáticas”. Em outras palavras, Gramsci alude à intervenção estatal na economia como resposta à crise de 1929, que caracteriza também a Itália fascista, como agente de uma “revolução passiva” no século XX. Essa noção aparece na mesma nota, quando ele define a formação dos Estados modernos na Europa continental como “reação-superação nacional” da Revolução francesa, acrescentando ser esse um “motivo essencial para compreender o conceito de ‘revolução passiva’” (Gramsci, 1975, Q10, p.1358 e 1361).
Em nota escrita logo em seguida, ele volta às analogias entre o período pós-napoleônico e o período sucessivo à Guerra Mundial para observar que a “revolução passiva” é “a característica mais importante a ser estudada” do pós-guerra (Gramsci, 1975, Q15, p.1824). O ano de 1917 é compreendido na “fratura histórica” da Guerra Mundial. O pós-guerra constitui o momento genético da resposta das classes dirigentes europeias nos termos de uma “revolução passiva” adaptada à sociedade de massa, que na grande depressão dos anos 1930 assume forma mais definida. Desse modo, Gramsci chega a inverter toda a perspectiva adotada nos primeiros anos do pós-guerra, que não contemplava entre as possibilidades históricas a de uma “revolução sem revolução”. Qual teria sido o lugar reservado à experiência soviética na “revolução passiva” do pós-guerra permanece um ponto não esclarecido nos Cadernos. Gramsci parece deixar intencionalmente aberta essa questão, ainda que a sua crítica do deficit de hegemonia política visível na União Soviética pareça implicar uma perspectiva de subalternidade à forma de hegemonia representada pela “revolução passiva”.
CONCLUSÕES
Diferentemente de muitos intelectuais europeus que na época têm liberdade de informação e de movimento (e até mesmo a possibilidade de visitar a União Soviética), Gramsci não adota a grande depressão de 1929 como um critério para estabelecer o primado da “civilização” soviética sobre o capitalismo liberal. E diferentemente da maior parte dos comunistas, ele não vê a “modernidade alternativa” soviética como uma experiência dotada de um sentido de autossuficiência completo, dado o seu caráter não capitalista. O seu foco analítico se concentra nas conexões entre a cesura representada pela Guerra Mundial, a longa crise europeia do pós-guerra e a difícil afirmação de novas forças hegemônicas globais. Nesse contexto ele insere a experiência soviética. O seu dilema não é constituído somente pelos motivos do fracasso da revolução no Ocidente, mas junto a isso pelo desenvolvimento insuficiente de uma força hegemônica na Rússia pós-revolucionária. Um ceticismo e pessimismo transparentes levam-no a elaborar uma ideia de que a “revolução passiva” do século precedente se reapresente após a Guerra Mundial sob a forma da supremacia do americanismo em escala global e do fascismo na Europa, enquanto a nova ordem ligada à “construção do socialismo” luta para emergir. O campo de possibilidades aberto pela “revolução contra o Capital”, a menos de 20 anos de distância, parece enfraquecido e circunscrito, vinculado à interação de forças complexas, limitado pela capacidade efetiva das subjetividades pós-revolucionárias.
Assim, a escrita dos Cadernos revela a distância que se estabeleceu entre Gramsci e o mundo ideal e político a que ele pertencia, que é documentada por diversos aspectos na sua correspondência, nos testemunhos póstumos e em outros documentos (Vacca, 2012). A angústia pela libertação fracassada e as crescentes suspeitas em relação à possibilidade de que os seus companheiros de partido o tenham condenado uma segunda vez ao cárcere de Mussolini exercem um peso opressor que os biógrafos não podem deixar de avaliar. Ao mesmo tempo, sua dissensão sobre a estratégia política do Comintern e a doutrina do “social-fascismo” apresenta reflexões nos Cadernos. Todavia, isso não esgota de modo algum as motivações e o espaço problemático das notas dedicadas à experiência soviética e comunista. Os traços de continuidade e de (prevalente) descontinuidade visíveis entre o período pré-carcerário e os anos da prisão nos induzem a desenvolver mais uma consideração.
O olhar retrospectivo de Gramsci no cárcere implica a exigência de se confrontar com uma derrota histórica. Em 1924 ele havia estigmatizado a experiência dos comunistas italianos como uma derrota, um argumento que depois do outubro alemão podia se estender a todos os comunistas europeus. Em 1926, ele advertira a maioria do partido russo acerca do perigo de destruir a unidade do grupo dirigente e com ela a herança revolucionária, separando os interesses do Estado soviético do movimento mundial. A ruptura entre os sucessores de Lenin tinha se realizado no modo mais traumático que, dadas as premissas gramscianas, não podia não constituir uma perda de perspectiva. No início dos anos 1930, a sua reflexão solitária emana essa preocupação e ele chega a elaborar uma categoria política que é metáfora da derrota sofrida pelos revolucionários no pós-guerra, a “revolução passiva”. Aqui se pode entrever a dupla face da noção gramsciana de hegemonia. A hegemonia é nos Cadernosum conceito voltado a iluminar a complexidade das estratégias das classes dirigentes que não podem se reduzir a mero exercício de poder, mas implicam uma concepção sofisticada da autoridade, da soberania, da relação entre governantes e governados. Ao mesmo tempo, constitui uma lente para ler os motivos da derrota sofrida pelo “partido mundial da revolução” na Europa e para medir as características e os limites do socialismo soviético, sua autêntica capacidade de incorporar e construir consenso, sua legitimidade doméstica e internacional, seu lugar no mundo.
Essa ótica distingue radicalmente Gramsci dos outros comunistas da época. Ele não pode ser inserido em nenhuma das principais tendências do bolchevismo e do comunismo dos anos 1920, ainda que compartilhe amplamente suas linguagens (começando pelas metáforas militares) e a cultura política. Mas isso não nasce simplesmente de uma posição política peculiar, nem mesmo de uma trágica condição psicológica. Nasce de uma dimensão intelectual e cultural que lhe permite reconhecer e pensar sobre a derrota fora dos cânones do drama necessário e providencial ao longo do caminho irreversível em direção ao futuro socialista, que marca a mentalidade comunista do seu tempo (Hobsbawm, 2003). A experiência da derrota leva Gramsci a pensar na multiplicidade das possibilidades históricas e a interrogar-se sobre as inadequações da própria instrumentação conceitual e política: um antídoto às formas de identificação que ele mesmo praticara e que atingem o ápice dogmático nos anos 1930. No panorama do comunismo da época seria vão procurar uma abordagem dessa natureza, não somente no mundo oficial staliniano e no Comintern, mas até mesmo na dissensão de matriz trotskista. Nesse sentido, é mais fácil aproximar a visão gramsciana, com todas as óbvias diferenças do caso, à dos intelectuais caracterizados por uma ética da responsabilidade mais do que por uma militância política, como Walter Benjamin e a sua concepção da história como possibilidade, ou como o Marc Bloch da “estranha derrota”.
Gramsci mantém firme uma compreensão dos eventos contemporâneos em termos antideterministas, dirigindo-se a uma posteridade que ele sabe não lhe ser dada, muito provavelmente, a conhecer. A sua é uma visão ao mesmo tempo dilemática e analítica, que continua a ver a cesura da Guerra Mundial e da Revolução e deixa abertas possibilidades diversas ao futuro, mas se faz consciente dos vetores e das forças historicamente determinantes. Essas considerações podem contribuir para iluminar o sentido último da relação entre Gramsci e a Revolução de 1917, mas também para explicar a longa duração das categorias de pensamento político por ele criadas na sua prisão.
REFERÊNCIAS
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2A visão gramsciana do Estado bolchevique foi bem analisada, em relação aos anos 1918-1919, por RAPONE, 2011, p.375-379.
6Gramsci a Roma, Togliatti a Mosca. Il carteggio del 1926, doc. 42, DANIELE, 1999, p.404-412.
Luiz Sérgio Henriques: O terceiro fantasma
A falta de protagonismo de uma esquerda forte e responsável pode se arrastar por vários anos
Espectros e assombrações, de acordo com sua natureza evanescente, costumam rondar cenários de terra devastada, como é o caso da política brasileira, trazendo presságios e reminiscências mais ou menos distantes e, no entanto, úteis para nossa ponderação. De fato, a devastação é grande demais: líderes e partidos, de governo ou da oposição, parecem dissolver-se no ar, arruinados por denúncias às vezes imprevistas ou transformados em alvo de acusações que os tratam, respectivamente, como delinquentes ou “organizações criminosas” imprestáveis para o funcionamento de uma democracia normal.
Tendo em vista as prosaicas malas abarrotadas de dinheiro ou os sofisticados softwares de propina, não se pode dizer que se trata de calúnias saídas do nada. Mas o fato é que, ao lado do aspecto investigativo-judicial, é preciso voltar os olhos para toda a imensa crise de representação que assim se estabelece, dando ouvidos à assombração italiana dos anos 90 do século passado e à argentina da virada de século. A evolução política daqueles dois países é o que nos interessa de perto; judicialmente, respeitado o processo legal, que os mortos enterrem os mortos. De todo modo, não haverá muito a fazer se e quando condenados, sejam eles quem forem e seja qual for a narrativa persecutória que preferirem.
O impacto da Mãos Limpas na história italiana foi de tal monta que assinalou o ocaso da Primeira República, estruturada em torno de dois grandes partidos de massa, a Democracia Cristã e o Partido Comunista. O primeiro deles ainda tentaria reviver com o nome de seu longínquo antecessor, o Partido Popular, mas sem muito sucesso. E deixaria o campo da centro-direita livre para o surgimento fulminante de um personagem egresso do mundo dos negócios, Silvio Berlusconi, a seduzir cidadãos-consumidores, numa peculiar telecracia, com a retórica da antipolítica. Empresário, estaria comprometido só com a eficiência; rico, não precisaria valer-se da corrupção intrínseca à atividade política.
Em síntese extrema, o que levou à ruína a Democracia Cristã – e o Partido Socialista de Bettino Craxi, morto no exílio – foi a construção de um complexo sistema de poder, que excluía por definição a alternância. Impensável um partido comunista chefiar um governo nacional na Itália daquele tempo. Excluído do poder central e, portanto, só marginalmente atingido pelas investigações, o PCI, já mudado em partido de esquerda democrática, se lançara havia alguns anos em busca de uma identidade distinta da matriz bolchevique, busca evidentemente necessária para a formação de governos alternativos ao de Berlusconi.
Esta função cumprida pelos pós-comunistas italianos é algo que hoje nos falta à esquerda, se for verdade – do ponto de vista estritamente político – que o comportamento do petismo terá significado pelo menos o início da constituição de estruturas de poder avessas à alternância e voltadas para a cooptação bruta de aliados, chamados para ocupar predatoriamente, em posição subordinada, os lugares disponíveis em órgãos de Estado e empresas públicas. E esta falta de protagonismo de uma esquerda forte e responsável pode se arrastar por vários anos, penalizados que seremos pelas contradições e ambiguidades do lulismo e do petismo.
O fantasma argentino também traz sua mensagem para nós. Após a década neoliberal de Menem, uma das mais surpreendentes metamorfoses do peronismo, e do fracasso de seu sucessor “radical”, Fernando de la Rúa, as praças do país vizinho foram invadidas por intensos protestos populares. E até houve quem os tomasse, confundindo a nuvem com Juno, por um processo revolucionário à moda de Lenin, no qual uma eventual invasão da Casa Rosada significasse, quem sabe, a tomada do Palácio de Inverno.
Também aqui a antipolítica ressurgiu com virulência. O lema que se vayan todos, que no quede uno solo, condenatório de toda a “classe política”, correu mundo como expressão da vontade popular de fazer tábula rasa de representantes e instituições representativas. Alguns terão sonhado novamente com a “democracia direta”, a ser exercida nas praças, dispensando mediações e dando voz ao verdadeiro soberano. A ilusão de começar do zero, em meio à instabilidade provocada pela sucessão alucinante de governos brevíssimos, haveria de desembocar paradoxalmente na era Kirchner, manifestação desta feita do peronismo de esquerda, cujo apelo “nacional-popular” nem sempre, ou quase nunca, ocultou o desígnio de uma democracia iliberal e tendencialmente carente de contrapesos republicanos.
Pode ser que um terceiro fantasma tenha, agora, aparecido em nosso relato. Ambíguo, multiforme, o populismo será um espectro capaz de variadas encarnações e, por isso mesmo, de difícil apreensão conceitual. Há mesmo um bom argumento que rejeita seu uso por causa destas suas múltiplas figuras, que vão dos governantes “nacional-populares” da América Latina até Berlusconi ou mesmo Trump. O fato é que, em nossos dias, importantes teóricos voltaram a pôr em circulação a “razão populista”, que invariavelmente tenta desagregar, segundo a lógica feroz de amigos versus inimigos, o consenso em torno das instituições democráticas. O que diferenciaria o populismo progressista daquele reacionário seria a escolha atilada dos inimigos: as elites em vez dos imigrantes, por exemplo.
Em tempos difíceis, como os que temos vivido aqui e agora, o que se requer é uma esquerda que majoritariamente não pense só na afirmação de suas próprias razões, mas seja capaz de levar em conta o conjunto da sociedade, aceitando a espinhosa – e interminável – missão da persuasão permanente. E reconheça, por isso, que apostar na cisão simplória entre o povo e seus inimigos pode acarretar tragicamente “a ruína comum das classes em luta”. Como temos visto, construir esse tipo de esquerda não é nada fácil.
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Alberto Aggio: A disjuntiva gramsciana
De um lado, o Gramsci da ‘política democrática’ e, de outro, o Gramsci da ‘política revolucionária’
Neste ano relembramos os 80 anos da morte de Antonio Gramsci, líder político comunista, reconhecido como um dos mais importantes pensadores da Itália. Depois da derrota do fascismo e do fim da 2.ª Guerra, suas ideias ajudaram a fertilizar o terreno que redundaria na construção da moderna República Italiana. Encarcerado por Mussolini em 1926, Gramsci não pôde ver essa tarefa realizada. Sem ter nunca publicado um livro, a difusão do seu pensamento se deve a seus editores, depois do resgate das notas que escreveu na prisão. Desse resgate resultaram as diversas edições dos famosos Cadernos do Cárcere, editados no Brasil desde a década de 1960.
Bastante conhecido no Brasil, o texto gramsciano presta-se a infindáveis polêmicas em torno da interpretação e dos usos dos seus conceitos. Muitos o veem como um ameaçador seguidor de Marx e Lenin, um revolucionário comunista sem mais. Outros o admiram por sua capacidade de perceber as mudanças de sua época, anunciando os traços da complexidade social que viria a se edificar com mais vigor bem depois de sua morte.
O pertencimento de Gramsci ao marxismo e ao comunismo é patente, ainda que ele seja reconhecido como um formulador original e considerado um “clássico da política”. Inicialmente, foi visto como um “pensador da cultura nacional-popular” e um “teórico da revolução nos países avançados”, de cuja obra se extraíram os conceitos que o tornaram um autor assimilado em grande escala. Recentemente, a partir de uma “historicização integral” da sua trajetória, visando a apanhar simultaneamente vida e pensamento (Giuseppe Vacca), aliada à recepção e ao tratamento de fontes inéditas ou até ignoradas, vem emergindo uma nova inserção de Gramsci na política do século 20. Essa perspectiva analítica tem permitido a superação dos diversos impasses e bloqueios que marcaram por longos anos os estudos gramscianos.
Mesmo na prisão, Gramsci continuou sendo um homem de ação. Tudo o que escreveu, das reflexões anotadas nos cadernos à correspondência com familiares e amigos, indica que ele permaneceu atuando como um dirigente político. Nessa condição, procurou fazer chegar à direção do Partido Comunista Italiano (PCI) suas avaliações do cenário italiano e mundial, bem como seus questionamentos a respeito de algumas orientações do PCI que lhe pareciam equivocadas. É desse comprometimento que emergem os termos de uma “teoria nova”, hoje reconhecida no mundo da política e dos intelectuais.
Nos Cadernos do Cárcere foi se sedimentando um novo pensamento, com o qual Gramsci imaginava poder mudar as orientações do movimento comunista. Do texto de Gramsci se pode apreender uma superação clara do bolchevismo, notadamente em relação à concepção do Estado, à análise da situação mundial, à teoria das crises e à doutrina da guerra como parte intrínseca da revolução.
Não foi por acaso que dessas reflexões emergiu a proposta de luta pela convocação de uma Assembleia Constituinte. Isso implicava deslocar o PCI da preparação da revolução proletária para a conquista da Constituinte. Em outras palavras, estrategicamente a luta pela democracia deixava de ser pensada apenas como fase de transição para o socialismo e assumia autonomia plena. No mundo do comunismo da década de 1930 tratava-se de um ato de ruptura. Assim, o ponto de chegada dos Cadernos foi a elaboração de uma nova visão da política como luta pela hegemonia, o que, em termos objetivos, representaria a adoção de um programa reformista de combate ao fascismo e, com ele, a reconstrução da nação italiana.
Essa nova teoria, dramaticamente elaborada no interior das prisões fascistas, resultava do enfrentamento dos impasses que o atormentavam como dirigente político: a derrota para o fascismo e a perda de propulsão do movimento comunista soviético, bloqueado pelo “estatalismo” e pelo autoritarismo. Os conceitos de Gramsci, tais como “hegemonia”, “guerra de posições”, “revolução passiva”, “transformismo” e “americanismo”, entre outros, evidenciam uma linguagem própria, não mais bolchevique ou leninista, de quem, mesmo na prisão, pensava de maneira inovadora os desafios que estavam postos diante da construção política da modernidade no Ocidente.
Em meio às lutas pela democracia, diversas gerações de intelectuais brasileiros que se aproximaram do pensamento de Gramsci buscaram uma tradução dos seus conceitos para nossas circunstâncias. Da década de 1970 para cá, parecia haver consenso na assimilação dos conceitos do pensador sardo, mas a realidade não confirmou essa tese.
Hoje há uma disjuntiva explícita: de um lado, o Gramsci da “política democrática”, ou seja, da política-hegemonia, enquanto “hegemonia civil”, não mais “proletária” ou “socialista”; de outro, o Gramsci da “política revolucionária”. Na primeira “leitura”, a revolução não é mais o centro da elaboração política e a perspectiva se deslocou no sentido de exercitar o conceito de revolução passiva até seus limites, isto é, acionar permanente e intransigentemente a política democrática visando a inverter a longa “revolução passiva à brasileira” (Werneck Vianna), de marca autoritária e excludente, e dar-lhe novo direcionamento.
Aqui estamos diante de uma tradução do Gramsci que se descolou da sua originária demarcação revolucionária e se distanciou de um marxismo que ainda tem como referência uma época histórica de revoluções. É isso que lhe dá o viço ainda hoje. Inversamente, o “outro” Gramsci permanece prisioneiro de uma representação construída a partir de um duplo sentido: representação de classe, como o fora anteriormente, numa perspectiva revolucionária, e, noutro sentido, como representação da conservação e difusão de um imaginário revolucionário do qual se querem resguardar os signos e significados de uma época revolucionária terminada há décadas.
Marcus Oliveira: O sujeito cosmopolita de Gramsci, segundo Vacca
As leituras de Giuseppe Vacca em torno da figura de Antonio Gramsci não são recentes, de modo que o filósofo italiano, ex-presidente da Fondazione Gramsci, se coloca como um dos principais intelectuais, tanto na Itália quanto no exterior, que se dedicam à hercúlea tarefa de se debruçar sob o pensamento gramsciano. As primeiras reflexões de Vacca acerca de Gramsci ocorrem no final dos anos 1980 e início dos anos 1990. Consequentemente, a obra em questão, publicada no final de 2016 no Brasil, é fruto de um denso percurso investigativo construído por Vacca. Deste modo, Modernidades alternativas se configura, concomitantemente, como aprofundamento e conclusão de um ciclo de produções iniciado anteriormente.
Diante disso, a presente obra não pode ser apreendida em si mesma, não apenas porque fruto desse intenso processo de pesquisas, mas também porque se propõe como complemento de uma produção anterior, publicada no Brasil em 2012 também pela Fundação Astrojildo Pereira [1]. Tal publicação girava em torno de uma proposta de reconstrução de Gramsci a partir de sua historicização integral, centrada nos nexos necessários entre os contextos históricos e biográficos que atravessam o pensamento político gramsciano. Modernidades alternativas figura como complemento a essa discussão mais marcadamente biográfica, uma vez que pretende, em primeiro lugar, desenvolver um percurso interpretativo das notas carcerárias para, posteriormente, revelar as possibilidades de utilização dessas notas no mundo contemporâneo.
Em Modernidades alternativas não abandona a proposta de uma historicização integral do pensamento de Gramsci. Todavia, apropria-se mais intensamente do método filológico e diacrônico desenvolvido a partir dos anos 1980 por Gianni Francioni. Esse método consiste na percepção de uma temporalidade interna inerente à escrita dos Quaderni, que denota a existência de um determinado ritmo de pensamento subjacente ao processo de trabalho de Gramsci, de modo que os conceitos desenvolvidos ao longo do cárcere só podem ser apreendidos a partir de sua mutabilidade temporal. Assim, ao se apropriar desse método filológico e diacrônico, Vacca procura perscrutar os principais conceitos desenvolvidos por Gramsci, observando suas transformações no tempo no intuito de auferir sua força heurística para a interpretação dos rumos da política contemporânea.
O primeiro conceito no qual Vacca se detém é o de hegemonia, uma vez que considera a teoria da hegemonia como o centro sobre o qual gravitam as outras reflexões desenvolvidas nos Cadernos. Nestes, a teoria da hegemonia é constituída a partir de experiências históricas específicas que envolvem as principais questões políticas das primeiras décadas do século XX. Tais experiências, em virtude de sua intensidade, alteram as formas com as quais se pensava a política e a história, gerando a necessidade de criação de novos instrumentos teóricos e metodológicos capazes de captar a política diante dessas novas configurações históricas. Em razão disso, nos Cadernos, o conceito originalmente elaborado por Lenin ganha uma nova leitura, deixando de ser compreendido a partir de um corte classista referente à direção do proletariado para se tornar uma ferramenta ao mesmo tempo analítica e estratégica capaz de compreender questões referentes à conquista e ao exercício do poder.
O cerne dessa redefinição do conceito de hegemonia, para Vacca, reside em seu vínculo necessário com aquilo que o autor nomeia por teoria da interdependência [2]. Essa teoria implica a consideração das relações de forças, fundamentais para a compreensão da hegemonia, a partir de nexo essencial entre as dimensões nacional e internacional, central na contemporaneidade em razão do avanço do processo de globalização impulsionado pelo movimento da economia capitalista. O problema, nesses termos, é que a política, ainda vinculada à figura do Estado-nação, se mostra incapaz de acompanhar o movimento da economia, de modo que há um certo atraso da primeira em relação à última. Para Gramsci, esse contraste entre o cosmopolitismo da economia e o nacionalismo dos Estados se configura como o cerne das crises experimentadas nas primeiras décadas do século XX.
Nesse contexto, a construção da hegemonia não deve ser apreendida pelo viés estatal ou nacional, mas a partir do equilíbrio das correlações de forças operadas entre os diversos Estados. Por isso, Vacca procura apontar que a validade do conceito gramsciano de hegemonia está para além das fronteiras dos Estados, uma vez que parte exatamente do diagnóstico da crise dessa forma política, estando inserido na complexidade das relações internacionais. Deste modo, não se trata de perceber a hegemonia como um conceito unívoco e estável, mas de captar sua mobilidade nos processos formativos daquilo que o autor nomeia como constelações hegemônicas.
Em termos políticos, isso significa uma transformação significativa nas formas de ação. Na medida em que o movimento histórico caminha para a superação da centralidade do Estado, as lutas políticas também devem ocorrer em um nível cosmopolita. Vacca pretende demonstrar que a estratégia delineada por Gramsci se orienta para a construção de uma regulação econômica e política operacionalizada mundialmente a partir de um equilíbrio de compromisso entre as forças antagônicas. Nesses termos, o autor distancia a proposta cosmopolita de Gramsci daquela própria à cultura política bolchevique. Enquanto a última se encontra marcada pela iminência da catástrofe bélica, a primeira se assenta em uma rede intricada de forças políticas que não se anulam.
Todavia, a centralidade que a teoria da hegemonia assume nas reflexões de Vacca termina por reduzir o potencial interpretativo do conceito de revolução passiva, ainda que não o elimine. Nos termos do autor, a revolução passiva também obedece ao mesmo movimento histórico que perpassa a hegemonia, operando uma revisão na concepção marxista da história ao relativizar seu corte classista. Nesse sentido, o conceito de revolução passiva passa a figurar como um corolário historiográfico do conceito de hegemonia, não podendo ser manejado para a compreensão internacional.
Isso ocorre, na visão de Vacca, em razão do caráter assumido pelo processo histórico naquele momento. Nessa leitura, a visão de Gramsci acerca das primeiras décadas do século XX se encontra marcada pelo diagnóstico de uma crise de hegemonia, caracterizada pela incapacidade de construção de uma constelação hegemônica em nível global. Consequentemente, a revolução passiva, encarada como conceito responsável por apreender as modalidades pelas quais os equilíbrios de compromisso se constroem, se mostra insuficiente para interpretar as relações internacionais desse momento.
Esse amplo processo de revisão do marxismo culmina, para Vacca, na construção da filosofia da práxis. Essa construção, marcada pela transformação do materialismo histórico em filosofia da práxis, se encontra condicionada por uma mudança fundamental na concepção de sujeito, bem como por uma historicização integral da política e da economia. Ao se afastar das hipóteses causais e deterministas do marxismo de sua época, Gramsci logrou construir uma teoria da constituição dos sujeitos no mundo contemporâneo, na qual a questão da formação de uma vontade coletiva emerge como um dos aspectos centrais para a formação de um mundo unitário, regulado globalmente a partir da hegemonia. Assim, na leitura de Vacca, a filosofia da práxis aparece como uma teoria da “constituição dos sujeitos políticos baseada gnosiologicamente no conceito de hegemonia e historiograficamente no de revolução passiva” (Vacca, 2016: 263).
Com isso, a filosofia da práxis se baseia em um princípio imanente da história responsável por superar o caráter geralmente mecânico e determinista que as relações entre estrutura e superestrutura assumiram no interior do marxismo. Ao historicizar a própria noção de mercado, Gramsci pôde rever também as perspectivas liberais que consideravam de modo orgânico a separação entre Estado e sociedade civil, apontado como tais dimensões se solidificam a partir de um intrincado jogo de forças que se chocam historicamente.
Nessa leitura, a noção da história própria da filosofia da práxis se baseia em jogo antagônico de forças imprevisível em razão de sua regulação política. Nos termos de Vacca, a dialética gramsciana aparece como um movimento no qual a formação do par amigo-inimigo se torna impossível, uma vez que o choque das forças em questão não significa anulação de uma das forças, mas um processo de síntese que caminha para um equilíbrio em movimento perpétuo. Como consequência dessas noções de história e política, a filosofia da práxis se encontra intimamente vinculada à política democrática, visto que só a democracia pode garantir a instauração desses conflitos sem a anulação das forças em confronto. Portanto, a democracia para a qual Gramsci pretende apontar é profundamente calcada no cosmopolitismo, com vistas à produção de formas democráticas supranacionais.
Assim, o Gramsci de Vacca se configura como um pensador essencialmente cosmopolita, habilitado para enfrentar as questões contemporâneas, sobretudo aquelas ligadas aos impactos políticos e econômicos da globalização. Nesse cenário cada vez mais mundial, Gramsci pretende abarcar o mundo como um todo, não abandonando a perspectiva universalista, essencial à tradição comunista. Todavia, esse universalismo se mostra distante daquele bolchevique ou mesmo liberal, uma vez que se fundamenta em uma democracia supranacional capaz de regular o mundo pela ótica da política, a partir da ação fundamental de sujeitos também constituídos no interior desse cosmopolitismo, aptos a regularem uma democracia global.
Com Gramsci, pois, Vacca pretende, em meio aos escombros da contemporaneidade, repropor a questão fundamental do sujeito dentro da política, colocando a possibilidade de pensar um sujeito universal e cosmopolita longe de uma versão de totalidade incapaz de perceber a divergência, mas a partir de um universalismo capaz de instituir o conflito e a divergência.
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Marcus Vinícius Furtado da Silva Oliveira é doutorando em história e cultura política pela Unesp/Franca. Escreveu Em um rabo de foguete: trauma e cultura política em Ferreira Gullar (Fundação Astrojildo Pereira/ Contraponto, 2016); membro da incubadora cultural Cupim Literário (Uberaba – MG).
Fonte: http://www.acessa.com/gramsci/?page=visualizar&id=2102
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Notas
[1] Vacca, Giuseppe. Vida e pensamento de Antonio Gramsci. Brasília/ Rio de Janeiro, FAP/ Contraponto, 2012.
[2] Os apontamentos de Vacca em torno da teoria da interpendência em Gramsci se mostram como aprofundamento de reflexões anteriores que remontam o início dos anos 1990. Para consultar tais reflexões ver: Vacca, Giuseppe. Pensar o mundo novo – rumo à democracia do século XXI, São Paulo, Ática, 1996.
Luiz Werneck Vianna*: Retomar o moderno, retomar a modernização
Não sairemos desta barafunda infernal com os apertados nós que nos atam ao passado
O denso nevoeiro que até há pouco tempo embaçava a linha do horizonte e nos interditava prever o dia de amanhã começa a desanuviar. Passada a borrasca já se podem contar os perdidos e os salvados, mesmo que os mais estropiados dentre esses não devam esperar uma sobrevida sem sobressaltos. A Olimpíada está conosco e espanta os maus presságios com a festa de confraternização entre povos, que traz consigo o espírito de concórdia de que tanto estamos precisados.
O processo eleitoral se anuncia – esse santo remédio de eficácia comprovada em nossas crises políticas –, e com ele o retorno da política, da discussão sobre que rumos devem ser empreendidos na administração de nossas cidades, que valores e princípios queremos para nortear nossa vida em comum, hora da persuasão de eleitores e de alianças entre os afins. E, quando couber, até entre contrários, do que a eleição para a presidência da Câmara dos Deputados consistiu num auspicioso primeiro sinal.
Velhos timoneiros de volta a seus postos de comando entoam o velho lema de que navegar é preciso e, lentamente, ainda com destino incerto, tateia-se em busca de uma saída desta barafunda infernal em que fomos envolvidos. Não sairemos dela, contudo, enquanto estivermos prisioneiros dos apertados nós que nos atam ao passado.
O mundo mudou e nós mudamos com ele, e não há caminho fácil pela frente neste século 21 que resiste em começar, como neste episódio regressivo do Brexit, com a maré montante da direita e a ressurgência dos temas da xenofobia, do nacionalismo autárquico e a candidatura presidencial de Donald Trump nos EUA no surrado estilo populista de um Mussolini, inventário de horrores que nos vem do que houve de pior no século passado.
Para o começo do alívio desses nós torna-se necessário reafirmar a velha lição de que somos parte do Ocidente, um outro Ocidente, na caracterização de José Guilherme Merquior em belo ensaio esquecido (Revista Presença, n.º 15, 1988), e de que não devemos cultivar ressentimentos em razão do nosso atraso porque seríamos, de fato, “uma modificação e uma modulação original e vasta da cultura ocidental”. Uma das marcas da nossa originalidade residiria no fato de não termos compartilhado com os europeus o etos da antimodernidade quando a História moderna foi vista como um pesadelo por muitos dos seus intelectuais. Ao contrário, segundo Merquior, o modernismo brasileiro foi percebido em chave otimista, longe da Kulturpessimismus europeia, como um “modernismo da modernização”, tal como presente em Mario de Andrade e confirmada com a ascensão de Juscelino Kubitschek – da prefeitura de Belo Horizonte com a obra da Pampulha à Presidência da República com a criação de Brasília –, quando as agendas do moderno e da modernização caminharam juntas.
O golpe militar interrompeu esse processo benfazejo. Com o novo regime a modernização apartou-se do moderno, que passou a ser reprimido com a intensificação da tutela estatal sobre os sindicatos, com o abafamento das tendências que se vinham acumulando em favor da auto-organização da vida social e com as severas limitações impostas à criação cultural e artística no País, cujos altos preços ainda pagamos. A democratização do País, consolidada com a Carta de 88, concedeu alento ao moderno, mas, a essa altura sem o embalo dos trilhos que antes percorria, ele não teria como se reencontrar com a modernização em razão da pesada herança de desacertos econômicos deixada pelo regime militar.
Sanear a economia foi obra do Plano Real e caberia ao governo do PT levar à frente a agenda do moderno presente nas suas lutas de fundação, respaldadas por importantes intelectuais críticos da modernização autoritária com que se tinha imposto o capitalismo no País, como, entre tantos, Sérgio Buarque de Holanda, Raimundo Faoro e Florestan Fernandes. Partido com origem na moderna sociedade civil brasileira, ao se tornar governo, de modo surpreendente e sem apresentar suas razões, o PT logo se converteu em partido de Estado.
Essa conversão coincidiu com a adoção da obra do marxista italiano Antonio Gramsci – desde os anos 1960, influente em círculos da esquerda – como referência por alguns dos seus quadros dirigentes, embora numa versão antípoda das suas concepções originais, ironicamente caracterizada pelo sociólogo Francisco de Oliveira como hegemonia às avessas. Ao invés de os partidos e movimentos sociais dos seres subalternos buscarem a conquista da hegemonia na sociedade civil em nome de suas concepções políticas e ético-morais, credenciando-se assim ao exercício de papéis dirigentes, pela prática levada a efeito pelas lideranças do PT caberia ao Estado (às avessas) instituí-la por cima.
Nessa reviravolta, mais do que abdicar da agenda do moderno, que pressupõe a autonomia dos seres sociais e de suas organizações, o PT alinhou-se sem alarde à tradição da modernização pelo alto que nos vinha da era Vargas, reanimada pelo ciclo do regime militar, em especial sob o governo Geisel, com as escoras do tipo de presidencialismo de coalizão bastarda que praticava e de suas políticas de cooptação dos movimentos sociais.
Sob a presidência de Dilma Rousseff, menos por sua imperícia nas coisas da política, mais pela exaustão da modelagem herdada do seu antecessor, tanto a agenda do moderno se rebelou contra ela – como se constatou nas manifestações massivas de junho de 2013 em favor da autonomia do social – como se lhe escapou das mãos a da modernização com a economia do País parando de crescer.
Estamos não num fim de caminho, mas no da sua retomada. Se o direito ao moderno não pode mais ser arrebatado da animosa sociedade brasileira de hoje, temos também um compromisso inarredável com a modernização que faz parte do nosso DNA.
*Luiz Werneck Vianna: *SOCIÓLOGO, PUC-RIO
Fonte: estadao.com.br