Antonio Carlos do Nascimento

Antonio Carlos do Nascimento: Nosso adoecimento democrático

Presenciamos um extremismo desmedido, que pensávamos ter ficado na década de 40

Em 28 de março de 2020 o governo de São Paulo estampou em seu portal o recorde histórico de imunização contra a gripe no Estado, com 2,3 milhões de pessoas vacinadas em quatro dias. A ação foi executada pela estrutura do SUS, cabendo elogios às gestões estadual e municipais na coordenação das ferramentas de nosso Sistema Único de Saúde. Virtualmente, nesse ritmo o País inteiro seria vacinado em um ano ao menos com uma dose, de qualquer imunizante.

Em 10 de junho de 2020, o governo de São Paulo assinava acordo com a biofarmacêutica chinesa Sinovac Biotech, envolvendo o Instituto Butantan no desenvolvimento tecnológico da vacina Coronavac; 17 dias depois o governo federal chancelava pacto semelhante entre a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e o projeto desenvolvido pela Universidade de Oxford em parceria com o laboratório AstraZeneca.

Causou enorme entusiasmo o anúncio feito pelo Butantan, em 7 de janeiro, apontando a eficácia da Coronavac em 78% na prevenção de casos leves de covid-19 e 100% nos casos graves. Esses dados sustentaram que 78 em 100 pessoas imunizadas pela Coronavac evoluíram sem sintomas ou com sintomas leves, mas sem necessidade de internação, enquanto a totalidade foi protegida da forma grave da doença, dispensando cuidados de terapia intensiva.

Quatro dias depois, em novo pronunciamento, a mesma instituição informou que a eficácia global é de 50,3%, no que nos assegura que 50 em cada 100 indivíduos vacinados não desenvolvem nenhum sintomatologia, sem invalidar as informações anteriores. No quanto se mostraram sem didática, os porta-vozes devem admitir as críticas, mas no que a vacina representa, são vítimas de imensa injustiça.

Um monitorado e ideológico desprezo foi destinado à parceria firmada pelo governo paulista com a farmacêutica chinesa, durante todo o processo. Em suas origens a depreciação tem cunho político, mas nos seus destinos seu compartilhamento é inconcebível, seja pela ingratidão reservada ao Butantan e ao Estado de São Paulo, ou pela incoerência, no que me refiro ao desdém aos produtos chineses.

Em tempos em que nem o futebol nos notabiliza fora de nossas fronteiras, deveria fazer-nos muito bem saber que o mundo tem o Instituto Butantan como uma das instituições mais importantes e respeitadas na produção de vacinas. O Estado de São Paulo merece respeito, não fosse pelo que representa em seus 33% de participação no PIB brasileiro, ao menos por ser o maior investidor em pesquisas cientificas no País, albergando cérebros de todas as unidades federativas em seus centros de estudos.

Por outro lado, a imensa maioria de todos nós, se não possui, ao menos sonha adquirir um aparelho eletrônico de vanguarda, para o que não aponto novidade ao afirmar que a quase totalidade desses artigos é proveniente de território chinês, assim como a maioria dos insumos e maquinários hospitalares utilizados em todo o mundo. Seria legítimo, não fosse dissimulado, questionar o estímulo que tal comércio promove na perpetuação de uma relação empregado-empregador que não aceitamos no Ocidente.

O Reino Unido e os Estados Unidos iniciaram a vacinação em 8 e 14 de dezembro de 2020, respectivamente. Mas estávamos em 8 de janeiro de 2021 e os britânicos contabilizavam 1,5 milhão de doses administradas, enquanto os americanos alcançavam 6 milhões, número distante dos prometidos 20 milhões de vacinas antes que o último ano findasse. Não vou pormenorizar as dificuldades enfrentadas pela União Europeia em sua marcha vacinatória anticovid-19.

A OMS define saúde como um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas a ausência de doenças. Talvez isso possa explicar como uma fração substancial de brasileiros deixa de contemplar a possibilidade real de fazermos história. Com o SUS somos capazes de efetivar campanha de vacinação de qualquer dimensão, com resolutividades sem precedentes em âmbito nacional. Além de devolver nossa gente à reconstrução econômica brasileira, apagando para os olhos do mundo a mancha que o negacionismo irracional nos impregnou.

Porém estamos presenciando devoções cegas, obediências incondicionais, um extremismo desmedido que pensávamos ter ficado na década de 1940, com o colapso do fascismo e do nazismo. Os insurgentes de agora já não despontam pela fome e pela desigualdade, emergem unidos em suas incapacidades de diálogo e aceitação da ciência.

A invasão do Capitólio por manifestantes apoiadores de Donald Trump mutila, pelo menos por algum tempo, a (aparente) sólida democracia americana, talhando ferida de cicatrização incerta. Entretanto, pior que isso é o exemplo democrático sonhado por grande parte do planeta apresentar suas suscetibilidades.

Por aqui, preocupam os entraves provocados na saúde pública por desinformação orientada. Mas também entristece a perspectiva de que nosso jovem processo democrático possa estar adoecendo gravemente.

DOUTOR EM ENDOCRINOLOGIA PELA FACULDADE DE MEDICINA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO (USP), MEMBRO DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE ENDOCRINOLOGIA E METABOLOGIA (SBEM)


Antonio Carlos do Nascimento: Shakespeare, Einstein, SUS, covid-19 e o futuro

Planeta precisou da expectativa dizimatória para pôr o que importa em seu devido lugar

Nós nos reinventamos diante das catástrofes e não o fazemos pelo bom senso. Fosse isso, as evidências escandalosas de um planeta que esquenta e se intoxica nos abririam os olhos e partiríamos em missão para defendê-lo. A iminência da morte provoca o pânico e Shakespeare retrata o quadro ao reduzir o inescrupuloso Ricardo III a “meu reino por um cavalo” numa de suas cultuadas peças.

Quando eu era menino ouvi uma amiga de minha mãe dizer que chegaria o dia em que teríamos o dinheiro, mas não encontraríamos o que comprar. Pouco tempo depois li a dedução de Einstein para os desdobramentos bélicos futuros: “Como vai ser a terceira guerra mundial eu não sei, mas a quarta será com paus e pedras”. Tais impressões futuras, apocalípticas, enquanto sejam apenas possibilidades, nunca se desgarraram daquilo que imagino possível e talvez provável para a humanidade.

Aqui e ali suicidas derrubam arranha-céus, estouram bombas em seus corpos, mergulham carros com explosivos em meio a multidões e lá se vão muitas vidas, às vezes milhares. O mundo decidiu globalizar, especialmente utilizando mão de obra barata, notadamente asiática, e a qualquer barulho por lá faltam componentes de toda sorte por aqui. Por outro lado, imensidões de terras são utilizadas para o cultivo de algum produto agrícola e não é raro após alguma safra o produtor não conseguir arrecadar para pagar o financiamento bancário, a depender de quanto a sua commodity variou no globalizado “mercado”.

Em Splendor in the Grass (título brasileiro, Clamor do Sexo), filme com Natalie Wood e Warren Beatty, vê-se a América na queda da bolsa de 1929 inutilizando milhões de papéis que passavam a não valer mais nada e alguns de seus proprietários mergulhavam em voos derradeiros dos altos prédios em Wall Street. Bud (Warren Beatty), filho de um daqueles barões da bolsa de valores, finda a película cultivando terreno numa área rural, no que havia restado do império familiar.

A lógica da sobrevivência passa por nutrição orgânica e antes da guarida do alojamento precisamos ainda não ser retirados do ciclo por predadores, contexto bem demonstrado pelos moradores de rua. Mas o planeta em que uma metade de sua população não dispõe de vaso sanitário, enquanto a outra projeta a desnecessariedade dela mesma na substituição por aplicativos, precisou dessa expectativa dizimatória para momentaneamente colocar as importâncias em seus devidos lugares.

Então agora alimentação é prioridade, no papel de predador um invisível vírus para o qual nos defendemos com higiene e neste momento não prescindimos de alojamentos que nos separem do entorno. Induzidos ou não, ainda que apenas provisoriamente, estamos acordados com o tráfico, milícias, facções... com uma só palavra de ordem: sobreviver - com protocolos que são mais ou menos obedecidos de acordo com as facetas e a força com que o virtual caos se apresenta.

Nós nem sabemos se a covid-19 conseguirá em mesmo espaço de tempo ter números maiores que os feminicídios, ou daqueles que morrem no trânsito pela ação de motoristas embriagados, nos semáforos por terem sidos lentos em entregar bolsas e carteiras, ou nas alcovas por overdoses. Mas estamos cientes de que podemos morrer indistintamente, independentemente de raça, religião ou classe social, e incrivelmente isso nos une, porém não pelo bom senso.

A depender da dimensão do desastre, e infelizmente não do quanto fomos capazes de impedi-lo, talvez restemos pouco modificados. Isso é ruim, por outro lado fazem bem algumas brasileiras certezas.

A valorização da imprensa profissional e séria, que ao menos por enquanto foi desobrigada por nós de dizer aquilo que queremos e a aceitamos com a função que sua maior parte nunca deixou de exercer: nos informar.

O SUS, nosso Sistema Único de Saúde, tratado tantas vezes com desdém e descaso, mostra seu gigantismo na capacidade de cuidar. E provavelmente a exposição proveniente de tantas ações realizadas por essa instituição produzirão o entendimento popular de seus mecanismos. O órgão atua em todas as faixas de cuidados e não se omite nas observações preventivas que passam ao largo dos ouvidos de nossa gente. É provável que um revigorado perfil gestor do SUS e uma nova métrica de envolvimento do usuário com as linhas de cuidado oferecidas fortaleçam esse que é um dos maiores e mais justos programas de saúde pública do mundo.

Guardaremos as palmas que se derramaram tantas vezes das sacadas dos prédios às 20 horas em homenagem aos profissionais de saúde e outros importantes grupos. Esqueceremos o barulho de colheres encontrando fundos de panelas para criar trilha sonora inapropriada de um longa-metragem que ficará para a história como exemplo de uma das lutas humanas em seu instinto de preservação, e não de um vírus com ideologia política.

DOUTOR EM ENDOCRINOLOGIA PELA FACULDADE DE MEDICINA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO (USP), É MEMBRO DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE ENDOCRINOLOGIA E METABOLOGIA (SBEM)