anistia
Governo Bolsonaro anula anistias e suspende busca por desaparecidos políticos
BRASÍLIA - O técnico em eletrônica Edson Benigno, hoje com 72 anos, foi perseguido, preso e torturado durante a ditadura militar no Brasil. Então servindo à Marinha, Edson viu os agentes do regime, em 1975, invadirem sua casa, no Rio. Eles o algemaram, encapuzaram e apontaram uma arma para a barriga de sua mulher grávida. Levaram-no junto com o pai, José Benigno, e foram jogados dentro de dois Opalas. Apanharam. Um ano depois, ficou 50 dias preso. Foi submetido a choques elétricos e pau de arara. Teve sequelas.
Apesar da redução: Brasil ainda tem 19 mil grávidas entre 10 e 14 anos
Edson foi detido aos 26 anos pela ação política do pai, antigo militante do Partido Comunista Brasileiro. Mas mesmo com o histórico de perseguição, prisão e tortura, não conseguiu ser anistiado. Seu processo chegou a ser aprovado na Comissão de Anistia, no governo de Michel Temer, mas não teve a portaria publicada até hoje. Ao logo do governo de Jair Bolsonaro, o caso segue parado na comissão, sem previsão de aprovação da anistia e reparação econômica.
— Não tenho qualquer expectativa de que esse governo, que elogia a ditadura, irá reconhecer que fui vítima daquele período — diz Edson.
O governo revisa e reconta a história à sua moda. Nas duas comissões instituídas há mais duas décadas para tratar e julgar as violações cometidas naquele período — de Anistia e de Mortos e Desaparecidos Políticos — os conselheiros, escolhidos a dedo, ignoram os fatos, negam a perseguição política, “desanistiam” militantes já anistiados e abandonam a busca por desaparecidos.
Na gestão Bolsonaro, as comissões são formadas por muitos militares que, além de rejeitar as anistias, têm anulado reparações concedidas no passado. Entre eles, está o general da reserva Rocha Paiva, autor do prefácio do livro “A verdade sufocada”, livro de memórias do coronel reformado Brilhante Ustra, condenado pelo crime de tortura na ditadura.
Os conselheiros desses colegiados entendem que não houve perseguição do Estado a essas pessoas. Em julgamentos, é comum os perseguidos pela ditadura serem chamados de “terroristas” e “foras da lei”. Um antigo militante do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8) teve seu pedido negado, num julgamento em maio deste ano, e o relator escreveu em seu voto: “Ser monitorado por pertencer aos quadros da luta armada ilegal e criminosa não configura perseguição política, pois assim acontecia e aconteceria, hoje, em qualquer investigação policial, máxime, militando em grupos criminosos. Ele não era um militante político em organização legal, pelo contrário, integrava organização fora da lei, que cometia crimes bárbaros e violência”.
O Ministério Público chegou a entrar com uma ação para suspender a nomeação de militares na Comissão de Anistia por terem histórico de postura “incompatíveis” com a missão de reparação das vítimas de violações cometidas nos anos de chumbo. O atual presidente da comissão, João Henrique Freitas, assessor no Palácio do Planalto, é autor de ações contra indenização a 44 camponeses, vítimas de torturas na Guerrilha do Araguaia, e também moveu ação para impedir a reparação à família do ex-guerrilheiro Carlos Lamarca. O comandante da Polícia Militar de Santa Catarina, coronel Dionei Tonet, também integra a comissão. A ação dos procuradores para excluí-los foi rejeitada pela Justiça.
Desde a criação da comissão, em 2001, foram julgados cerca de 75 mil pedidos. A grande maioria — 55 mil —, nos oito primeiros anos dos governos Lula, que aprovou 64,3% dos pedidos.
A comissão, no governo Bolsonaro, aprovou 6% dos casos em tramitação, percentual apenas um pouco maior do que o registrado no governo Temer, quando o índice ficou em 4%. Mas aprovou pouquíssimas reparações econômicas. A diferença principal é que, sob comando do ministério de Damares Alves, da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, a comissão tem anulado anistias aprovadas no passado e adotou medidas que dão poderes à ministra de, monocraticamente, decidir o destino dos anistiandos.
— Não há mais vontade política em conceder novas anistias. Prova disso são os mais 6.500 pedidos indeferidos na atual gestão. Nossa esperança está no Judiciário, já que os recursos na comissão são infrutíferos — diz o advogado Humberto Falrene, que defende perseguidos políticos na comissão.
Entre os casos pendentes está o da ex-presidente Dilma Rousseff, que foi presa e torturada durante o regime. O caso da ex-presidente, que requer a condição de anistiada e reparação econômica, já entrou e saiu da pauta de votação três vezes. Dilma não tem feito questão que essa composição da comissão julgue a perseguição que sofreu.
Sem pedido de perdão
Na Comissão de Mortos e Desparecidos, instituída no governo tucano Fernando Henrique Cardoso, o andamento não é diferente. Além da suspensão de diligências em busca dos restos mortais de opositores de regime, como os que atuaram na Guerrilha do Araguaia, os conselheiros também já revisaram casos de pessoas consideradas mortas nas mãos do Estado. Foram suspensas e revistas as certidões de óbitos de esquerdistas constando a real causa de suas mortes: “morte não natural, violenta, perpetrada pelo Estado brasileiro no âmbito de perseguição sistemática a opositores políticos”. Esse trecho foi abolido no atual governo, assim como, na Comissão de Anistia, desapareceu o ritual do pedido de “perdão” aos familiares. Na Comissão dos Mortos, Vera Paiva, filha do desaparecido e ex-deputado Rubens Paiva, e Diva Santana, irmã de Dinaelza Santana, ex-guerrilheira e desaparecida que atuou no Araguaia, são minoria e resistem aos novos entendimentos do conselho.
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— Infelizmente, isso vai aprofundando o débito que o Estado tem com essas famílias — diz a procuradora Eugênia Gonzaga, que já presidiu a Comissão de Mortos.
As ações de indiferença do governo com os que enfrentaram o regime de exceção são contínuas. O ministério de Damares fez um convênio com o Comando da Aeronáutica que prevê o uso de militares em intimações e notificações pessoais aos perseguidos políticos, em suas residências. Até agora, essa era uma incumbência dos Correios. São documentos sobre andamento e instrução dos processos, decisões, informação sobre prazo para recursos. A iniciativa incomodou militantes da esquerda, estudiosos e professores do assunto, que enxergam na ação uma nova perseguição e um processo de revitimização.
— Imagina a situação: eu entro com um requerimento dizendo que fui perseguida, torturada, barbarizada por militares e peço a declaração de anistiada política e a reparação. Aí, bate na minha porta um militar fardado para dizer que eu tenho que juntar prova disso ou daquilo, senão meu processo será indeferido. Isso é deboche. A Constituição me garante o direito de pedir reparação integral por ter sido perseguida política, e o que recebo é uma nova perseguição. Sou vítima novamente das mesmas Forças Armadas que 50 anos atrás me perseguiram e tornaram a minha vida quase insuportável — diz a historiadora e professora da UnB Eneá Stutz, que dirige um grupo de Justiça de Transição e integrou a Comissão de Anistia no passado.PUBLICIDADE
Damares ‘vira página’
A ministra Damares Alves minimiza as críticas a atuação das comissões e diz ser hora de “virar essa página”. Questionada pelo GLOBO se pretende encerrar as atividades das comissões, ela respondeu que “um dia não terá mais requerimento para analisar”. A ministra disse que baixou portarias com poderes de decisão monocrática porque havia uma “possibilidade eterna de recursos”.
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“A pessoa podia ter seu pedido indeferido dez vezes e ainda assim continuar recorrendo. Lembro que anistia significa esquecimento. A discussão do mesmo caso é uma ferida eternamente aberta. As famílias precisam de uma resposta”, disse Damares, em resposta por escrito, explicando que recebeu um passivo de 11 mil requerimentos para julgar. Hoje, restam cerca de 3 mil.
Sobre o fim das buscas dos desaparecidos, Damares afirmou lamentar que “os governos anteriores não tenham se esforçado mais para realizar essa localização enquanto era tempo, mesmo após investimento de tanto dinheiro público”.
O presidente da Comissão de Anistia, João Henrique Freitas, afirmou que em algum momento será necessário enfrentar a questão do encerramento dos trabalhos do colegiado. Ele conta que nesses 20 anos foram pagos R$ 14 bilhões em reparação, “apesar da realidade vivida pelos brasileiros”.PUBLICIDADE
“Somente este ano foram protocolizados 114 novos requerimentos de anistia solicitando indenização pecuniária. Não me parece razoável, com todo o respeito, considerando que já se passaram 42 anos desde a primeira Lei de Anistia, e a lista total de pessoas beneficiadas até agora inclui cerca de 39 mil nomes”, disse Freitas, em resposta por escrito.
O presidente afirmou que a lei que criou a Comissão de Anistia não impede a participação de militares ou de notórios defensores dos militares, mas disse que a análise dos casos é “justa”.
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O presidente da Comissão de Mortos e Desaparecidos, Marcos Vinícius Carvalho, afirmou que foram realizadas 36 expedições de busca de desaparecidos, que custaram R$ 23 milhões, “e nada se encontrou”. Ele se refere a buscas ocorridas no passado e afirma que irá transportar as ossadas que estão guardadas na Universidade de Brasília (UnB) para a Holanda, e verificar se é possível identificar o material.
Carvalho afirmou que a comissão faz esforços para manter a identificação das ossadas de Perus, um cemitério clandestino da ditadura militar, descoberto nos anos 1990.
Sobre a intimação às vítimas da ditadura, o Comando da Aeronáutica informou que se trata do cumprimento da lei que regula a administração pública, que tem unidades em todo o país para acessar os anistiando e que detém os dados cadastrais dos anistiandos.PUBLICIDADE
“O emprego dos recursos humanos da Força Aérea Brasileira (FAB) para prover as intimações e notificações pessoais que devem ser expedidas no âmbito dos referidos processos em curso na Comissão de Anistia representa importante economia para a Fazenda Nacional, em atenção ao princípio constitucional da eficiência da administração pública. A FAB possui unidades em todo o território nacional, bem como os dados cadastrais dos interessados e dos beneficiários submetidos a processo na Comissão”, informou o Comando da Aeronáutica.
Governo Bolsonaro anula anistias e suspende busca por desaparecidos políticos
Comissões são formadas por militares que têm anulado reparações concedidas no passado e rejeitado novos pedidos
Evandro Éboli / O Globo
BRASÍLIA - O técnico em eletrônica Edson Benigno, hoje com 72 anos, foi perseguido, preso e torturado durante a ditadura militar no Brasil. Então servindo à Marinha, Edson viu os agentes do regime, em 1975, invadirem sua casa, no Rio. Eles o algemaram, encapuzaram e apontaram uma arma para a barriga de sua mulher grávida. Levaram-no junto com o pai, José Benigno, e foram jogados dentro de dois Opalas. Apanharam. Um ano depois, ficou 50 dias preso. Foi submetido a choques elétricos e pau de arara. Teve sequelas.
Apesar da redução: Brasil ainda tem 19 mil grávidas entre 10 e 14 anos
Edson foi detido aos 26 anos pela ação política do pai, antigo militante do Partido Comunista Brasileiro. Mas mesmo com o histórico de perseguição, prisão e tortura, não conseguiu ser anistiado. Seu processo chegou a ser aprovado na Comissão de Anistia, no governo de Michel Temer, mas não teve a portaria publicada até hoje. Ao logo do governo de Jair Bolsonaro, o caso segue parado na comissão, sem previsão de aprovação da anistia e reparação econômica.
— Não tenho qualquer expectativa de que esse governo, que elogia a ditadura, irá reconhecer que fui vítima daquele período — diz Edson.
O governo revisa e reconta a história à sua moda. Nas duas comissões instituídas há mais duas décadas para tratar e julgar as violações cometidas naquele período — de Anistia e de Mortos e Desaparecidos Políticos — os conselheiros, escolhidos a dedo, ignoram os fatos, negam a perseguição política, “desanistiam” militantes já anistiados e abandonam a busca por desaparecidos.
Na gestão Bolsonaro, as comissões são formadas por muitos militares que, além de rejeitar as anistias, têm anulado reparações concedidas no passado. Entre eles, está o general da reserva Rocha Paiva, autor do prefácio do livro “A verdade sufocada”, livro de memórias do coronel reformado Brilhante Ustra, condenado pelo crime de tortura na ditadura.
Os conselheiros desses colegiados entendem que não houve perseguição do Estado a essas pessoas. Em julgamentos, é comum os perseguidos pela ditadura serem chamados de “terroristas” e “foras da lei”. Um antigo militante do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8) teve seu pedido negado, num julgamento em maio deste ano, e o relator escreveu em seu voto: “Ser monitorado por pertencer aos quadros da luta armada ilegal e criminosa não configura perseguição política, pois assim acontecia e aconteceria, hoje, em qualquer investigação policial, máxime, militando em grupos criminosos. Ele não era um militante político em organização legal, pelo contrário, integrava organização fora da lei, que cometia crimes bárbaros e violência”.
O Ministério Público chegou a entrar com uma ação para suspender a nomeação de militares na Comissão de Anistia por terem histórico de postura “incompatíveis” com a missão de reparação das vítimas de violações cometidas nos anos de chumbo. O atual presidente da comissão, João Henrique Freitas, assessor no Palácio do Planalto, é autor de ações contra indenização a 44 camponeses, vítimas de torturas na Guerrilha do Araguaia, e também moveu ação para impedir a reparação à família do ex-guerrilheiro Carlos Lamarca. O comandante da Polícia Militar de Santa Catarina, coronel Dionei Tonet, também integra a comissão. A ação dos procuradores para excluí-los foi rejeitada pela Justiça.
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— Não há mais vontade política em conceder novas anistias. Prova disso são os mais 6.500 pedidos indeferidos na atual gestão. Nossa esperança está no Judiciário, já que os recursos na comissão são infrutíferos — diz o advogado Humberto Falrene, que defende perseguidos políticos na comissão.
Entre os casos pendentes está o da ex-presidente Dilma Rousseff, que foi presa e torturada durante o regime. O caso da ex-presidente, que requer a condição de anistiada e reparação econômica, já entrou e saiu da pauta de votação três vezes. Dilma não tem feito questão que essa composição da comissão julgue a perseguição que sofreu.
Sem pedido de perdão
Na Comissão de Mortos e Desparecidos, instituída no governo tucano Fernando Henrique Cardoso, o andamento não é diferente. Além da suspensão de diligências em busca dos restos mortais de opositores de regime, como os que atuaram na Guerrilha do Araguaia, os conselheiros também já revisaram casos de pessoas consideradas mortas nas mãos do Estado. Foram suspensas e revistas as certidões de óbitos de esquerdistas constando a real causa de suas mortes: “morte não natural, violenta, perpetrada pelo Estado brasileiro no âmbito de perseguição sistemática a opositores políticos”. Esse trecho foi abolido no atual governo, assim como, na Comissão de Anistia, desapareceu o ritual do pedido de “perdão” aos familiares. Na Comissão dos Mortos, Vera Paiva, filha do desaparecido e ex-deputado Rubens Paiva, e Diva Santana, irmã de Dinaelza Santana, ex-guerrilheira e desaparecida que atuou no Araguaia, são minoria e resistem aos novos entendimentos do conselho.
Em Goiás: Médico preso acusado de abusar mulheres já processou jovem que o denunciou no Facebook
— Infelizmente, isso vai aprofundando o débito que o Estado tem com essas famílias — diz a procuradora Eugênia Gonzaga, que já presidiu a Comissão de Mortos.
As ações de indiferença do governo com os que enfrentaram o regime de exceção são contínuas. O ministério de Damares fez um convênio com o Comando da Aeronáutica que prevê o uso de militares em intimações e notificações pessoais aos perseguidos políticos, em suas residências. Até agora, essa era uma incumbência dos Correios. São documentos sobre andamento e instrução dos processos, decisões, informação sobre prazo para recursos. A iniciativa incomodou militantes da esquerda, estudiosos e professores do assunto, que enxergam na ação uma nova perseguição e um processo de revitimização.
— Imagina a situação: eu entro com um requerimento dizendo que fui perseguida, torturada, barbarizada por militares e peço a declaração de anistiada política e a reparação. Aí, bate na minha porta um militar fardado para dizer que eu tenho que juntar prova disso ou daquilo, senão meu processo será indeferido. Isso é deboche. A Constituição me garante o direito de pedir reparação integral por ter sido perseguida política, e o que recebo é uma nova perseguição. Sou vítima novamente das mesmas Forças Armadas que 50 anos atrás me perseguiram e tornaram a minha vida quase insuportável — diz a historiadora e professora da UnB Eneá Stutz, que dirige um grupo de Justiça de Transição e integrou a Comissão de Anistia no passado.PUBLICIDADE
Damares ‘vira página’
A ministra Damares Alves minimiza as críticas a atuação das comissões e diz ser hora de “virar essa página”. Questionada pelo GLOBO se pretende encerrar as atividades das comissões, ela respondeu que “um dia não terá mais requerimento para analisar”. A ministra disse que baixou portarias com poderes de decisão monocrática porque havia uma “possibilidade eterna de recursos”.
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“A pessoa podia ter seu pedido indeferido dez vezes e ainda assim continuar recorrendo. Lembro que anistia significa esquecimento. A discussão do mesmo caso é uma ferida eternamente aberta. As famílias precisam de uma resposta”, disse Damares, em resposta por escrito, explicando que recebeu um passivo de 11 mil requerimentos para julgar. Hoje, restam cerca de 3 mil.
Sobre o fim das buscas dos desaparecidos, Damares afirmou lamentar que “os governos anteriores não tenham se esforçado mais para realizar essa localização enquanto era tempo, mesmo após investimento de tanto dinheiro público”.
O presidente da Comissão de Anistia, João Henrique Freitas, afirmou que em algum momento será necessário enfrentar a questão do encerramento dos trabalhos do colegiado. Ele conta que nesses 20 anos foram pagos R$ 14 bilhões em reparação, “apesar da realidade vivida pelos brasileiros”.PUBLICIDADE
“Somente este ano foram protocolizados 114 novos requerimentos de anistia solicitando indenização pecuniária. Não me parece razoável, com todo o respeito, considerando que já se passaram 42 anos desde a primeira Lei de Anistia, e a lista total de pessoas beneficiadas até agora inclui cerca de 39 mil nomes”, disse Freitas, em resposta por escrito.
O presidente afirmou que a lei que criou a Comissão de Anistia não impede a participação de militares ou de notórios defensores dos militares, mas disse que a análise dos casos é “justa”.
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O presidente da Comissão de Mortos e Desaparecidos, Marcos Vinícius Carvalho, afirmou que foram realizadas 36 expedições de busca de desaparecidos, que custaram R$ 23 milhões, “e nada se encontrou”. Ele se refere a buscas ocorridas no passado e afirma que irá transportar as ossadas que estão guardadas na Universidade de Brasília (UnB) para a Holanda, e verificar se é possível identificar o material.
Carvalho afirmou que a comissão faz esforços para manter a identificação das ossadas de Perus, um cemitério clandestino da ditadura militar, descoberto nos anos 1990.
Sobre a intimação às vítimas da ditadura, o Comando da Aeronáutica informou que se trata do cumprimento da lei que regula a administração pública, que tem unidades em todo o país para acessar os anistiando e que detém os dados cadastrais dos anistiandos.PUBLICIDADE
“O emprego dos recursos humanos da Força Aérea Brasileira (FAB) para prover as intimações e notificações pessoais que devem ser expedidas no âmbito dos referidos processos em curso na Comissão de Anistia representa importante economia para a Fazenda Nacional, em atenção ao princípio constitucional da eficiência da administração pública. A FAB possui unidades em todo o território nacional, bem como os dados cadastrais dos interessados e dos beneficiários submetidos a processo na Comissão”, informou o Comando da Aeronáutica.
Morte de Lamarca completa 50 anos e atuação na guerrilha ainda incomoda militares
Pressões políticas e jurídicas mantêm em suspenso definição sobre a reparação financeira à viúva e aos dois filhos do capitão
Vinícius Valfré, O Estado de S.Paulo
BRASÍLIA - Há exatos 50 anos, em 17 de setembro de 1971, Carlos Lamarca era metralhado sob a sombra de uma baraúna, no sertão da Bahia. A história do capitão do Exército que desertou para participar da luta armada contra a ditadura ainda provoca desconforto. As Forças Armadas não aceitam a anistia concedida em 2007. Até o presidente Jair Bolsonaro tenta inserir na própria biografia uma suposta contribuição decisiva à captura do combatente.
Pressões políticas e jurídicas mantêm em suspenso a definição sobre a reparação financeira à viúva e aos dois filhos de Lamarca, quase dez anos depois da lei criada no governo de Fernando Henrique Cardoso, em 2022, que permitiu o pagamento de indenizações a famílias de perseguidos políticos. O processo que discute a indenização entrou na pauta de uma das turmas do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, nesta semana, mas o julgamento acabou adiado, sem data para ser retomado. A depender do desfecho, o caso ainda pode ir ao plenário e, em seguida, às instâncias superiores.
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Desde 2015 a reparação financeira à família Lamarca está suspensa por decisão do primeiro grau da Justiça Federal do Rio, com determinação para o ressarcimento dos valores recebidos. Duas ações semelhantes, que depois passaram a tramitar unidas, questionam os benefícios. Uma é assinada pelos clubes Militar, da Aeronáutica e Naval, que defendem interesses de militares da reserva. A outra foi movida pelo advogado João Henrique Freitas, hoje chefe da Assessoria Especial de Jair Bolsonaro e presidente da Comissão da Anistia.
A mesma comissão, em 2007, reconheceu como anistiados o capitão Lamarca; a viúva, Maria Pavan; e os filhos César e Cláudia. Determinou o pagamento de R$ 100 mil a cada um deles, a título indenizatório, uma reparação econômica à viúva, de R$ 902 mil, a promoção do capitão a coronel e a fixação da pensão em valor correspondente ao ganho de um general de brigada.
Maria e César vivem hoje em Portugal. Claudia, no Brasil. Procurados, não quiseram comentar a data histórica nem o processo que se arrasta na Justiça. Sem ligação com as bandeiras de Lamarca, os três se exilaram em Cubapouco antes de ele optar por combater a ditadura, em 1969, e foram monitorados pelo Serviço Nacional de Informações (SNI), no exterior e depois do retorno ao Brasil.
Os advogados do Clube Militar esperam a manutenção da decisão de primeiro grau. “A expectativa que a gente tem é a de que seja mantida a sentença. Pelo nosso entendimento, o que ocorreu é que o ex-capitão cometeu deserção e furto de armamento. Não foi afastado das fileiras do Exército por perseguição política, mas por crimes julgados pela Justiça Militar”, comentou Alexandre Fortes da Costa.
Por sua vez, o presidente da Comissão de Anistia em 2007 Paulo Abrão afirma que, independentemente do “juízo de valor” das práticas de Lamarca, é “dever” do Estado promover a reparação. “Me parece muito sintomático que estejamos em pleno 2021 criando obstáculos para complementar o ciclo da reconciliação nacional.”
Caçada. Lamarca é um dos adversários da ditadura mais lembrados por Jair Bolsonaro, para quem a figura histórica não passa de um terrorista da pior espécie que matou um tenente do Exército enquanto fugia de um cerco. Como deputado, dedicou entrevistas e discursos contra o ex-militar. Na disputa à Presidência em 2018, apresentou a versão de que embrenhou-se nas matas de Eldorado, região do Vale do Ribeira, onde cresceu, na caçada a Lamarca. “Eu participei da luta armada no Vale do Ribeira, na caça do Lamarca (...). Esse grupo do Lamarca era o mesmo grupo da Dilma Rousseff”, disse, em entrevista ao Roda Viva, em julho de 2018.
Em 1969, Lamarca fugiu do quartel, no bairro de Quitaúna, em Osasco (SP), numa Kombi carregada de fuzis e metralhadoras. No ano seguinte, ele e mais sete guerrilheiros da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) passaram em fuga por Eldorado. Jair Bolsonaro tinha 15 anos recém completados. O presidente narra que os militares que participaram de confrontos com Lamarca na cidade ganharam prestígio. E foi deles que recebeu recomendações para seguir a carreira militar. Ainda que Bolsonaro tenha oferecido alguma contribuição – algo do que não existe registros, e considerado pouco crível por especialistas –, quase nada adiantou. Lamarca ainda estaria livre por quase um ano e meio.
Anistia. Ministro da Justiça à época em que a anistia foi concedida a Lamarca, Tarso Genro afirma que a condição foi atestada não a partir dos feitos do ex-capitão, mas por conta do tratamento dado a ele pelo Estado. “O assassinato de Lamarca foi feito fora das regras da própria ditadura. Portanto, ele tem que ser anistiado. Sofreu a punição máxima, assassinato a sangue frio”, diz. “Com essa formulação, queríamos criar uma concepção dialógica dentro da transição, para que ocorressem duas coisas: as pessoas que sofreram as agruras da perseguição fossem assistidas e as pessoas que se comportam fora da legalidade do próprio regime fossem responsabilizadas”, ressalta. “O que ocorreu, apesar do nosso esforço, foi o contrário.”
Homenagens na Bahia
O 17 de setembro é feriado em Brotas de Macaúbas e em Ipupiara, cidades vizinhas localizadas no sertão da Bahia, a cerca de 600 quilômetros de Salvador. Foi nessa região que Lamarca escreveu seu último capítulo e entrou para o imaginário local.
Assim como ele, por exemplo, o sindicalista José Campos Barreto também é lembrado e homenageado até hoje. Natural de Brotas, Zequinha, como era conhecido, liderou importantes greves em Osasco (SP) no fim dos anos 1960 e, mais tarde, integrou os quadros da VPR. Ele e Lamarca foram capturados juntos, após dias de fuga pela caatinga à base de rapadura.
Uma grande operação liderada pelo major Nilton Cerqueira foi montada para dar fim a ambos, mortos a tiros em um distrito de Ipupiara e expostos em um campo de futebol da comunidade de Brotas.
Irmão de Zequinha, Olderico Campos, 73, conta que os militares espalharam muitas “fake news” para convencer os locais a darem informações que levassem ao paradeiro de ambos. “A elite da repressão veio toda para Brotas, o ponto central deles foi aqui. Eles colocavam na cabeça das pessoas que Lamarca tinha uma bomba que, se soltasse, não sobraria uma pessoa, uma cabeça de gado, num raio de 20 quilômetros”, lembra.
Sabendo da perseguição ao irmão, Olderico, com 23 anos, chegou a trocar tiros com os militares. Foi ferido na mão e no rosto e torturado na propriedade da família. O irmão Otoniel, de 20 anos, foi morto a tiros. Aposentado e dono de uma pequena propriedade rural, Olderico conta que costuma receber admiradores de Lamarca e Zequinha que visitam a região para reconstituir os últimos passos e render homenagens à dupla. “Eu tenho admiração profunda por aquela força, intelectual e física. Eu não ia brigar com o esquadrão da morte por qualquer coisa, não é? Considero Zequinha como vivo. Nenhum dos dois, nem Zequinha nem Lamarca, a gente chama de finado”, disse.
A principal homenagem anual parte da Igreja Católica. O bispo da Diocese de Barra, Dom Luiz Cappio, 74, que ficou conhecido nacionalmente pelas greves de fome que fez contra a transposição do Rio São Francisco no início dos anos 2000, organiza uma procissão seguida de missa acompanhada por moradores de Ipupiara. Por iniciativa do sacerdote, foi construído no local em que os dois foram mortos o Memorial dos Mártires, em homenagem a Lamarca, Zequinha e outros quatro filhos da cidade que lutaram contra a ditadura. “Fazemos isso há aproximadamente 20 anos. Sempre tem pessoas de fora, a palavra é aberta. As pessoas dão seus testemunhos”, destacou o religioso. “No começo houve resistências, mas hoje já faz parte da opinião pública de toda aquela região o valor dessas pessoas.
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Fonte: O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,morte-de-lamarca-completa-50-anos-e-atuacao-na-guerrilha-ainda-incomoda-militares,70003842886
Afonso Benites: Governo quer fim da Comissão de Anistia em 2022 e nega 90% dos pedidos de reconhecimento
Ex-presidenta Dilma é uma das que tem um pedido de anistia, que deveria ter sido analisado em março. Atual comissão não reconhece a ditadura, enquanto Governo reduz mecanismos do Estado que admitem a violência nos anos de chumbo contra quem discordava do regime militar
O Brasil restaurou a democracia em 1985 sem acertar as contas com a história e a memória das vítimas do regime militar que durou 21 anos. Diferentemente de países como a Argentina ou o Chile, que levaram seus algozes para o banco dos réus antes de virar a página, o país se contentou com a Lei da Anistia, assinada em 1979 pelo general João Batista Figueiredo, que presidia o Brasil. A lei ‘perdoava’ militantes de esquerda, bem como militares acusados de crimes. Em 2002, durante o governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB), uma outra pequena vitória para quem sofreu os abusos dos militares, com a criação do regime do anistiado político. O sistema indeniza quem sofreu perseguição e tortura do Estado durante a ditadura militar. A ex-presidenta Dilma Rousseff, por exemplo, é uma das que pleiteia hoje esse benefício após ter passado dois anos sob tortura na prisão durante o regime militar.
Mas, depois de quase 20 anos, sob um Governo entusiasta da ditadura, os benefícios de reparação da memória estão ameaçados. Houve uma queda exponencial nos deferimentos dos pedidos de anistia e um endurecimento das regras para solicitar o benefício durante a gestão Jair Bolsonaro (sem partido). Somente10% dos pedidos feitos até o momento foram deferidos. A queda nas aprovações vem desde o Governo Michel Temer (MDB), quando 13% dos requerimentos foram aprovados.
O status de anistiado político é concedido às pessoas que tenham sofrido perseguição por órgãos ou indivíduos ligados ao Estado brasileiro entre os anos de 1946 e 1988. A maioria dos reconhecidos como anistiados foi alvo de perseguição durante a ditadura entre os anos de 1964 e 1985. “Desde a gestão Temer, o Estado brasileiro nem pede mais perdão a quem a Comissão de Anistia entende que tem de receber uma reparação”, diz a professora de direito da Universidade de Brasília (UnB), Eneá Stutz e Almeida, conselheira da comissão entre 2009 e 2018. O pedido de desculpas era um importante gesto simbólico, no qual, após analisar minuciosamente os processos em que os requerentes solicitavam a anistia e avaliar que o pedido era justo, os membros do Conselho da Comissão da Anistia anunciavam: “Em nome do Estado brasileiro nós pedimos perdão”.
De 2016 para cá, alguns conselheiros passaram a insultar quem requisita o reconhecimento de que foi perseguido pela ditadura, conta a pesquisadora Stutz e Almeida. A afirmação é referendada por outras testemunhas. “Em uma das sessões, um conselheiro que é militar disse que os anistiados eram terroristas. Me revoltei e falei que os militares eram tarados porque eles tinham o prazer de dar choques em testículos ou em mamilos dos presos e presas, como fizeram com meu pai”, diz Rosa Cimiana, que hoje, aos 61 anos, é servidora pública. O pai de Rosa, Arthur Pereira da Silva, era um líder sindical do setor ferroviário e membro do Partido Comunista no Rio Grande do Sul. Eram credenciais suficientes naqueles anos de chumbo para ter seus 23 anos de direitos trabalhistas cassados. Ele foi preso em 1964, juntamente com outros dez companheiros. Alguns perderam os direitos políticos.
Quando foi solto, Silva passou a viver na clandestinidade porque ainda era perseguido. Chegou a enviar os filhos temporariamente para Argentina para fingir que tinha deixado o país, mas se mudou com a esposa para Goiânia e, depois, para Brasília.
Foi em 1979, quando Rosa, então com 20 anos, teve a alegria de testemunhar o primeiro passo para que a memória do seu pai fosse reconhecida. Em outubro daquele ano, com a ajuda do então deputado Ulysses Guimarães (MDB) ela conseguiu entrar na Câmara, pela primeira vez, para acompanhar a sessão que aprovou a Lei da Anistia. Desde então, passou a ser uma militante da causa e testemunhou todas as movimentações que se seguiram sobre as famílias prejudicadas pelo regime militar. Viveu a alegria, quando em 2003 seu pai, foi oficialmente anistiado – 21 anos após a sua morte. Também acompanhou quando os Governos Lula da Silva e Dilma Rousseff (ambos do PT) reconheceram 40.548 pessoas como perseguidas políticas – cerca de 62% dos requerimentos de anistia apresentados foram aprovados no período.
Agora, o Governo do ex-capitão do Exército caminha a passos largos na sua tentativa de reescrever a história, negar a existência de uma ditadura que usou da perseguição política e de tortura, embora muitos ainda lutem para ter familiares mortos naquele tempo reconhecidos como vítimas do Estado. O objetivo, conforme relatado por interlocutores do Governo, é até o fim de 2022 extinguir a Comissão de Anistia, que é o colegiado responsável por analisar a documentação de todos os pedidos de reparação histórica feitos pelos perseguidos políticos. “É um revisionismo histórico que não pode ocorrer. Mas não dava para esperar nada diferente de quem já defendeu torturador da ditadura militar em discursos públicos”, ponderou Diva Santana, do Grupo Tortura Nunca Mais da Bahia.
Os primeiros passos já foram dados. Inicialmente, Bolsonaro retirou a comissão do guarda-chuva do Ministério da Justiça e o transferiu ainda em 2019 para o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. Assim, a deixou sob o comando da representante da ala ideológica do Governo, a pastora e advogada Damares Alves. Esse colegiado tem caráter consultivo e a decisão final sobre quem deve receber ou não reparações financeiras cabe à ministra.
Como um de seus primeiros atos, Damares decidiu que entre os 27 membros da comissão, sete seriam militares ou teriam algum vínculo direto com a família Bolsonaro. Dentre eles, o atual presidente da comissão, o advogado João Henrique Nascimento de Freitas, que já assessorou Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) quando ele era deputado estadual no Rio e atualmente é assessor-chefe adjunto no gabinete do vice-presidente Hamilton Mourão (PRTB). Também já advogou para o presidente Bolsonaro.
Em sua atuação independente da família Bolsonaro, Freitas foi o autor de pedidos polêmicos envolvendo anistiados. Foi ele quem pediu e conseguiu na Justiça por meio de uma ação popular a suspensão do pagamento da pensão à viúva do guerrilheiro de esquerda e antirregime militar Carlos Lamarca (1937-1971), assim como a do veto às reparações dadas a 44 camponeses, torturados na Guerrilha do Araguaia (1967-1974). Procurado pela reportagem, ele não se manifestou. Tampouco o fez o ministério, apesar de ter pedido mais tempo para levantar os dados solicitados.
“Em nenhum momento a atual comissão admite que houve ditadura. Nas composições anteriores não era assim. Havia divergência entre os conselheiros, mas até mesmo quem era militar reconhecia o regime de exceção”, disse a professora Stutz e Almeida, que no último dia 31 lançou o livro “Justiça de Transição e Democracia”, obra que também aborda a anistia.
Desde o início da Gestão Bolsonaro, a ministra Damares Alves assinou 3.572 portarias que tratam de anistiados. Ela indeferiu o pedido de 2.402 (65%) requerentes, deferiu 363 (1,3%) e anulou 807 (33%) anistias que já haviam sido concedidas em outros Governos. As anulações são os que mais preocupam os ativistas. Vários dos atingidos por ela são idosos, com mais de 75 anos, que, muitas vezes tem como sua principal fonte e renda as prestações mensais que recebem da União — os valores são bastante variáveis, a reportagem identificou pagamentos de 135 reais até 22.000 reais. “Vivemos um momento de perdas de direitos. Primeiro foram os trabalhistas, depois os previdenciários, agora nem a memória é respeitada”, diz o advogado Humberto Falrene, que atua em casos envolvendo anistiados.
Caso Dilma Rousseff
Os números de indeferimentos poderiam ser maiores, caso não houvesse a pandemia. Desde o ano passado, a comissão permitiu que os requerentes que não se sentissem à vontade para viajar a Brasília ou enviar seus advogados poderiam solicitar o adiamento do julgamento que estivesse pautado. Uma das que usou dessa prerrogativa foi a ex-presidenta Dilma Rousseff, que já tivera o julgamento de seu caso adiado em 2019 a pedido de um dos conselheiros que analisava o processo.
Rousseff entrou com pedido de anistia em 2002. Ex-militante antirregime militar, ela foi presa e torturada quando era estudante universitária. Quando foi ministra do Governo Lula e quando presidiu o país ela pediu que seu processo ficasse parado. Ele retornou à pauta em fevereiro passado, mas a ex-presidenta e sua advogada, Paula Febrot não quiseram viajar para o julgamento em Brasília e pediram o adiamento por temor de exposição à pandemia. Uma nova sessão deveria ocorrer na última semana de março, mas não ocorreu e o ministério não justificou por que ela não aconteceu. A petista solicita uma prestação mensal no valor de 10.700 reais.
No seu requerimento, Rousseff alega que depois de ficar presa entre 1970 e 1972 ela foi expulsa da Universidade Federal de Minas Gerais, teve de prestar um novo vestibular para a Universidade Federal do Rio Grande do Sul e enquanto trabalhou na Fundação de Economia e Estatística do Rio Grande do Sul foi pressionada a se demitir. A ex-presidenta já recebeu três reparações em prestações únicas dos Estados do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, que totalizam 72.000 reais. Ela afirma que doou parte desses valores à ONG Tortura Nunca Mais.
Além de Dilma há outros anistiados que pretendem postergar o quanto podem a análise de seus processos, na esperança de que haja uma mudança na mentalidade da comissão ou da ministra Damares. Conforme advogados ouvidos pela reportagem, é comum ouvir relatos de seus clientes que preferem pagar para ver se a comissão resistirá até 2023, quando pode haver um novo Governo eleito, do que gastar seu tempo com processos que dificilmente terão sucesso, já que a comissão tem mais vetado ou anulado anistias do que aprovado.
“O problema é que nossa lei foi de anistia capenga, anistiou os torturados e os torturadores. Por isso, temos de ficar brigando para defender o óbvio e contra o revisionismo histórico”, reclama Rosa Cimiana, que mesmo não tendo mais benefício financeiro algum, segue na luta pela memória das vítimas da ditadura.
Luiz Carlos Azedo: Operação champanhe
A famosa Operação Mãos Limpas, na Itália, foi deflagrada após a prisão, em 1992, de Mario Chiesa, ligado ao PSI, que ocupava a diretoria de uma instituição filantrópica e era acusado de receber propina de uma empresa de limpeza. O PSI tentou isolar Chiesa, mas o político resolveu falar e incriminar colegas. Como aqui no Brasil, empresários pagavam propinas aos políticos para vencer licitações de construção de ferrovias, autoestradas, prédios públicos, estádios e na construção civil em geral. Delações do ex-espião da KGB Vladimir Bukovsky e do ex-mafioso Tommaso Buscetta também revelaram licitações irregulares e o uso do poder público em benefício particular e de partidos políticos.
Sob apoio e pressão da opinião pública, as investigações levaram à prisão industriais, políticos, advogados e magistrados, 12 pessoas se suicidaram e alguns dos envolvidos fugiram da Itália. No curso das investigações, a máfia siciliana matou os juízes Paolo Borsellino e Giovanni Falcone, que obteve a delação de Buscetta. Foram 2.993 mandados de prisão; 6.059 pessoas investigadas, sendo 872 empresários, 1.978 administradores locais e 438 parlamentares, entre os quais quatro ex-primeiros-ministros.
A partir de Milão, a capital mundial da moda, descobriu-se que a Itália havia submergido na corrupção, com o pagamento generalizado de propinas para obtenção de contratos com o governo. Os grandes partidos no governo em 1992, a Democracia Cristã, o Partido Socialista Italiano, o Partido Social-Democrata Italiano desapareceram completamente; o antigo Partido Comunista, então denominado partido democrático de esquerda, e o Movimento Social Italiano mudaram de nome. Somente o antigo Partido Republicano sobreviveu.
Um dos envolvidos na Operação Mãos Limpas era o empresário e então primeiro-ministro da Itália, Sílvio Berlusconi, considerado o maior beneficiado pela corrupção e principal acusado em processos de fraudes, como nos casos All Iberian, SIR (empresa petroquímica privada), IMI (Instituto Mobiliare Italiano) e Lodo Mondadori.Em 2009, porém, senadores governistas aprovaram uma reforma do Judiciário, que beneficiou Berlusconi com a extinção de dois processos, nos quais era acusado de fraude contábil na compra de direitos de TV para seu império de comunicação Mediaset e de ter subornado um advogado britânico para prestar falso testemunho, em 1997.
Anistia
Aqui no Brasil, está em curso no Congresso uma operação semelhante, que foi abortada na segunda-feira, mas ainda não morreu. Trata-se da criminalização do caixa dois de campanha, que é considerado uma infração eleitoral. Numa manobra abortada pelos deputados fluminenses Miro Teixeira e Alexandre Molon, da Rede, parlamentares de diversos partidos tentaram aprovar uma emenda ao projeto anticorrupção do Ministério Público, em discussão na Câmara, para livrar de responsabilidade penal quem praticou caixa dois antes da aprovação da lei, sem embargo da punição por crimes conexos, tipo lavagem de dinheiro, enriquecimento ilícito, desvio de recursos públicos, etc.
A sessão foi presidida pelo primeiro-secretário, Beto Mansur (PRB-SP), porque o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), exercia interinamente a Presidência da República, em razão da viagem de Michel Temer aos Estados Unidos. A nova lei anticorrupção estava sendo negociada com o Ministério Público, por Maia e alguns líderes da Casa, mas entrou na pauta sem prévia comunicação e de forma muito confusa, com uma emenda que anistiava todos os políticos acusados de receber dinheiro de caixa dois, ou seja, não declarado à Justiça Eleitoral. Muitos já tinham até mandado gelar a champanhe para as comemorações.
A razão de tanta pressa é a iminente delação premiada de Marcelo Odebrecht e outros executivos da empresa que leva o nome da família, que está sendo negociada com o Ministério Público Federal. Cerca de 100 senadores e deputados estariam citados na delação, além de ex-presidentes, governadores e prefeitos, tanto pelo recebimento de contribuições legais provenientes de dinheiro público desviado pela empreiteira, quanto de propina e doações não contabilizadas. A cúpula do Congresso e pelo menos oito ministros do governo Temer estariam citados na delação, além dos ex-ministros petistas.
Há duas questões em jogo na operação frustrada. A primeira é o avanço irreversível das investigações da Operação Lava-Jato em direção à elite política do país, em razão das delações premiadas; a segunda, a crise de financiamento das campanhas eleitorais, com o fim das doações de pessoas jurídicas, que coloca em xeque o atual sistema eleitoral. A resposta urdida no Congresso é conter a Lava-Jato, zerando as investigações do caixa dois, e blindar os grandes partidos, com a cláusula de barreira e o monopólio do fundo partidário e do tempo de rádio e televisão. (Correio Braziliense – 22/09/2016)
Fonte: pps.org.br