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BBC Brasil: A disputa por trás da saída de bispos e pastores brasileiros da Universal em Angola

Anúncio é parte do embate entre direção brasileira, liderada por Edir Macedo, e bispos e pastores angolanos que se rebelaram no fim de 2019

Gilberto Nascimento, BBC NEWS BRASIL

Cinquenta religiosos brasileiros da Igreja Universal do Reino de Deus radicados em Angola foram comunicados por autoridades locais para deixar o país nos próximos dias.

Os vistos de permanência desses missionários venceram e não serão renovados, segundo o Serviço de Migração e Estrangeiros de Angola.

O anúncio é parte de mais um capítulo do embate entre a direção brasileira da Universal (fundada e liderada pelo bispo Edir Macedo) e bispos e pastores angolanos que se rebelaram, desde o final de 2019, passando a contestar o comando geral da igreja.

O Instituto Nacional para Assuntos Religiosos (Inar), órgão do governo angolano, deu parecer favorável aos líderes locais para assumir o controle da Universal no país. A ala brasileira tenta reverter essa decisão na Justiça.

Os bispos e os pastores brasileiros da Universal que não aceitam a chamada "reforma" angolana na igreja foram orientados, então, a deixar o país. Um primeiro grupo —formado por sete casais de pastores— recebeu o comunicado na sexta-feira (9). O pastor brasileiro Valdir de Sousa divulgou a informação.

"Recebemos a notificação de abandono do país e temos oito dias para sair de Angola", disse Souza à Rádio Nacional de Angola, explicando que a nova direção local da igreja não irá mais renovar "as cartas de chamada para missionários brasileiros".

A direção brasileira da Universal, por meio de sua porta-voz em Angola, Ivone Teixeira, e do Jornal da Record, da TV Record, emissora pertencente ao bispo Edir Macedo, confirmou a "expulsão" dos brasileiros.

De acordo com a Record, o número de missionários afetados pela medida chega a cem. A emissora, em seus telejornais, tem feito ataques ao grupo rival da Universal. Para a Record, a igreja de Edir Macedo é "vítima de um golpe religioso, há mais de um ano, por parte de ex-pastores, bispos dissidentes e pessoas que não fazem parte da instituição, mas têm interesses financeiros, religiosos e até políticos". A emissora acusa líderes angolanos da igreja de "roubo, extorsão, adultério e atentado contra menor de idade".

Edir Macedo recorreu ao presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, para tentar reverter a situação em Angola, mas sem resultado. Bolsonaro, que teve o apoio do bispo em sua campanha à Presidência, enviou uma carta, em julho do ano passado, ao seu colega de Angola, João Lourenço, manifestando preocupação com os conflitos entre os religiosos no país e pedindo proteção aos brasileiros.

O deputado federal e filho do presidente, Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), postou a carta no Twitter. Sem citar a Universal ou o Brasil, o presidente angolano João Lourenço criticou recentemente, em um pronunciamento, tentativas de ingerências em decisões internas de Angola.

O embaixador brasileiro em Angola, Rafael Vidal, disse à Agência Lusa que os problemas da Universal no país não são uma questão entre os Estados. "A Iurd em Angola é uma igreja angolana que conta com cidadãos brasileiros. É uma grande instituição que tem presença no mundo inteiro. E, em Angola, é uma igreja sujeita aos regulamentos e normas das instituições religiosas previstas pelo Estado angolano, que é um Estado de direito", afirmou.

Para o embaixador brasileiro no país, a polêmica envolve "uma instituição brasileira que vem sofrendo uma crise interna e que, em função dessa crise, tem gerado decisões de órgãos reguladores como o Inar, em relação ao funcionamento da igreja".

São questões relacionadas "ao ordenamento jurídico de Angola e à regulamentação da atividade religiosa" e "não entram na agenda bilateral entre os governos e os estados", explicou. Rafael Vidal afirmou, entretanto, que o Brasil "acompanha com atenção todas as questões que envolvem cidadãos brasileiros".

A rebelião dos bispos e pastores angolanos da Universal começou em novembro de 2019, com a divulgação de um manifesto com críticas à direção brasileira.

Os líderes locais acusaram os brasileiros por supostos crimes como evasão de divisas, expatriação ilícita de capital, racismo e discriminação. As denúncias foram encaminhadas à Procuradoria Geral da República de Angola e aguardam decisão da Justiça.

Em junho do ano passado, bispos e pastores locais assumiram o comando dos templos da Universal no país e romperam definitivamente com o antigo chefe Edir Macedo.

O grupo elegeu uma nova direção, em assembleia geral, e afirma ter o controle da quase totalidade dos 300 templos da igreja em Angola. A ala brasileira, em uma nota assinada pelo bispo Antonio Miguel Ferraz, disse que os novos líderes não são os "legítimos representantes" da igreja.

Afirmou ainda que membros da chamada "reforma" teriam sido expulsos "devido à prática de atos ilícitos e à violação do código de conduta moral".


Demétrio Magnoli: Bispos, dinheiro e ‘africanidade’

Igreja Universal passou a ser vista, em Angola, como potencial ameaça

Há uma guerra em curso, em Angola, entre o poder terreno e o poder espiritual. Dias atrás, o governo angolano ordenou o fechamento de diversos templos da Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd), sob as acusações de evasão fiscal e lavagem de dinheiro. Atrás do véu das aparências, ocultam-se tensões políticas profundas, que envolvem o Brasil, além dos múltiplos usos do discurso da “africanidade”.

A Universal construiu um império com cerca de 300 templos, 500 mil fiéis e receitas anuais de US$ 80 milhões no país lusófono africano. No passado recente, a influência dos bispos de Edir Macedo não assustava o regime autoritário de José Eduardo dos Santos. A Iurd era aliada dos governos petistas — que, por sua vez, operavam como parceiros econômicos e diplomáticos do homem forte angolano, especialmente pela concessão de financiamentos do BNDES a obras da Odebrecht.

Mas tudo mudou, nos dois lados do Atlântico. Do lado de lá, João Lourenço tomou o lugar de José Eduardo dos Santos, deflagrando expurgos no MPLA, o partido dirigente, eliminando os dirigentes ligados ao antecessor. Do lado de cá, Bolsonaro substituiu o PT, rompendo a parceria com Angola. A única coisa que não mudou foi o “governismo de resultados” de Edir Macedo, que estabeleceu aliança com o presidente brasileiro de extrema-direita. Daí, a Iurd passou a ser vista, em Angola, como potencial ameaça ao sistema de poder de João Lourenço.

Regimes autoritários incomodam-se, sempre, com a presença de focos alternativos de influência. A ofensiva contra a Iurd inscreve-se nessa moldura genérica. Contudo as formas singulares que assume oferecem uma pequena aula sobre a narrativa da genuína “africanidade”.

Ano passado, sob a liderança do bispo Valente Bezerra Luiz, um vasto grupo de pastores angolanos cindiu com o comando brasileiro da Iurd, representado na África pelo bispo Honorilton Gonçalves. Os dissidentes formaram um centro dirigente local, a “comissão reformada”, e lançaram dois tipos de acusações contra a direção “universal”. De um lado, emergiu o tema do dinheiro: transferência ilegal de recursos angolanos ao Brasil. De outro, surgiu o da “africanidade”: o predomínio “racista” dos pastores brasileiros sobre os de Angola.

A igreja “universal” viu-se diante da questão nacional, uma encruzilhada que, ao longo da história, atormentou os partidos e movimentos internacionais. A guerra esquentou no fim de junho, durante a quarentena da Covid, quando os seguidores da “comissão reformada” invadiram templos vazios em quatro províncias, hasteando bandeiras angolanas nos púlpitos. Então, o grupo dissidente atacou residências de bispos brasileiros, enquanto os dirigentes oficiais organizaram uma milícia para recuperar os templos.

A cisão religiosa acompanha, como uma sombra, tanto a campanha de João Lourenço contra a facção de seu antecessor quanto o distanciamento geopolítico de Angola em relação ao Brasil. Valente e os seus ofereceram ao governo angolano os pretextos legais para deflagrar a ofensiva contra a Iurd. Repentinamente, as práticas financeiras habituais dos bispos “universais” chamaram a atenção de um regime que, antes, fingia nada saber.

O discurso da “africanidade” desempenha, mais uma vez, seu papel legitimador. Desde as independências africanas, regimes autoritários o utilizam para calar opositores, rotulados como “antiafricanos”, “imperialistas” ou “neocolonalistas”. Em nome da “africanidade”, a Aids foi ignorada por duas décadas na África do Sul e, sempre em nome dela, diversos países africanos aplicam leis de origem colonial para reprimir os LGBTs. Agora, em Angola, o argumento identitário funciona como ferramenta para uma reforma religiosa: a estatização disfarçada do neopentecostalismo.

“Todos nós fazíamos parte do sistema”, admitiu João Lourenço, referindo-se à ditadura cleptocrática de José Eduardo dos Santos, na qual ocupou o Ministério da Defesa. A Iurd fazia parte do “sistema”, que a considerava suficientemente “africana” para participar da repartição do butim. Hoje, o “sistema” mudou — e a Iurd tornou-se “estrangeira”.


José Casado: Um lobby de alto risco

Bolsonaro interferiu em disputa da Universal em Angola

Jair Bolsonaro deu impulso a um lobby assumindo o risco de criar uma crise nas relações com Angola.

Ele pediu a interferência do presidente João Lourenço na disputa local da Igreja Universal do Reino de Deus, uma sociedade angolana de direito privado. Lourenço respondeu-lhe na semana passada: “(O caso) terá o tratamento cabível na Justiça”.

A Universal enfrenta um cisma em Angola. Mês passado 85 templos foram assumidos por pastores angolanos em rebelião contra a liderança brasileira. Há sete meses 320 deles justificaram a separação com denúncias de delitos da hierarquia brasileira. As investigações seguem.

Rupturas fazem parte da paisagem da Universal nos EUA, Reino Unido, Bélgica e Zâmbia. Ela emergiu no Rio no vigor do movimento evangélico, que cresceu 540% em três décadas, para 42,2 milhões (Censo de 2010). Floresceu no televangelismo da teologia da prosperidade, num amálgama de interesses entre igreja, partido, banco e rede de rádio e televisão.

Aportou em Angola há 28 anos, na expansão africana iniciada por Marcelo Crivella, prefeito do Rio, coordenador do partido Republicanos e visto como herdeiro do tio, Edir Macedo, líder nos negócios da igreja. Candidato à reeleição, trouxe ao partido da Universal um par de filhos de Bolsonaro. O pai, sem partido, hesita na adesão por incerteza sobre a reação de outras alas evangélicas como a Assembleia de Deus.

Bolsonaro usou o cargo e o Itamaraty para intervir no cisma da Universal. Justificou a Lourenço sua “preocupação” — legítima —com 65 brasileiros. Mas foi além. Tomou parte na briga da sociedade privada angolana. Classificou a disputa nos templos como “invasões” e qualificou dissidentes como “ex-membros” da igreja.

Inflou um lobby em Brasília, que já prepara uma comitiva do Senado a Luanda em defesa dos interesses da Universal. Desta vez, ao usar organismos de Estado para defender negócios de aliados, Bolsonaro pôs em risco um legado diplomático de 45 anos na África, consolidado pelo Itamaraty no regime militar, quando o Brasil foi o primeiro a reconhecer a independência de Angola.