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Alon Feuerwerker: Quando vamos acordar?

O país onde a doutrina liberal deu mais certo quando levada à prática foram os Estados Unidos da América. Do outro lado do mundo, um caso em que os mecanismos de mercado tiveram resultado expressivo é a República Popular da China. Convém olhar o que funcionou nesses dois exemplos, para copiar acertos. De erros, temos portfólio próprio.

Esse é um exemplo de narrativa. Verdade que existem sempre hiatos, gaps, entre narrativas e fatos. De vez em quando, ou quase sempre, narrativas são instrumento útil para simplificar e embelezar uma realidade, com o propósito de construir argumentos para a disputa ideológica. Assim foi e continuará sendo a humanidade. Para todo o sempre.

Mas narrativas são importantes sim. Elas ajudam a forjar coesão social e política, sem o que nenhum agrupamento humano alcança objetivos. Disputas sobre valores e rumos não são jogos retóricos vazios. Constituem armas, especialmente quando as ideias nascidas da reflexão sobre os fatos conseguem elas próprias transformar-se em força material.

Dois pilares são estruturantes na ideia que a sociedade norte-americana faz dela própria: 1) não aceitar passivamente o apetite crescente do Estado por impostos. E 2) dar grande importância ao império da lei, que ali chamam de “rule of law”. E o grande programa social da China, responsável por tirar mais de um bilhão de seres humanos da pobreza, é o emprego.

Emprego criado especialmente na, e pela, iniciativa privada.

Por aqui, talvez nunca as ideias liberais tenham enfrentado tão pouca resistência quando neste Brasil de Jair Bolsonaro. E nunca houve entre nós tanto consenso majoritário de que cabe aos capitalistas ser o motor principal da retomada da prosperidade. Há debates em torno disso, mas nenhuma visão realista consegue apresentar alternativa com o mínimo de viabilidade.

Mas o discurso fica diferente quando se passa à fase de tirar as ideias do papel. Não sei se há algum outro lugar em que economistas liberais estejam propondo aumento de impostos em meio à recessão econômica provocada pela Covid-19. E num aspecto, reconheço, não somos originais: no apoio a episódios de manipulação da Justiça com objetivos político-eleitorais.

Por aqui a “rule of law”, como dizem, ainda está devendo. Aos amigos, tudo; aos inimigos, a lei.

E o emprego, o esquecido? Qual é a iniciativa real para fazer avançar a indústria, única capaz de produzir bons postos de trabalho em quantidade para absorver o estoque excedente de mão de obra, especialmente a mais jovem? O que estamos fazendo para aproveitar, neste ponto, o real desvalorizado e dar um grande salto também na exportação de manufaturados?

Os Estados Unidos chegaram onde chegaram com a “rule of law” e a poupança privada. Há alguma mitologia nisso? Sim, mas a narrativa reflete algo da realidade. A China construiu o maior programa social do mundo, e se apresenta como a nova superpotência do século 21, gerando empregos principalmente pela exportação de bens manufaturados.

E nós, vamos acordar quando?

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Publicado originalmente na revista Veja 2.695, de 15 de julho de 2020

Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Alon Feuerwerker: Um pouco de criatividade

Dois elementos têm destaque entre as causas da nossa crônica turbulência institucional. 1) O presidente vitorioso na urna nunca consegue eleger com ele uma maioria partidária na Câmara dos Deputados. E, combinada a isso, 2) a prerrogativa de o Executivo legislar por medida provisória vem se tornando um foco de instabilidade. Para acrescentar, conforme passa o tempo o Judiciário fica progressivamente tentado a se oferecer como poder moderador. Tudo meio fora de lugar.

Vai aqui uma primeira ideia para consertar o primeiro problema: as cadeiras obtidas pelo partido em cada estado para a Câmara deveriam ser calculadas não pela votação dos candidatos a deputado, mas pela votação do candidato a presidente no estado. A mesma lógica valeria para Assembleias e Câmaras Municipais. As coligações para o Legislativo já estão proibidas. Essa medida simples eliminaria as coligações para o Executivo. Se o partido não lançasse candidato a presidente, governador ou prefeito não elegeria deputado federal, estadual ou vereador.

Os votos nos candidatos ao Legislativo continuariam valendo, mas só para definir a ordem de preenchimento das vagas conquistadas pela legenda.

Jair Bolsonaro (então no PSL) e Fernando Haddad (PT) tiveram juntos pouco mais de 75% dos votos válidos no primeiro turno. Os dois partidos elegeram somados apenas 21% da Câmara dos Deputados. A diferença é autoexplicativa. Quem hoje está na oposição vai torcer o nariz para um cenário em que Jair Bolsonaro teria maioria sólida na Câmara. Mas fica a pergunta: como lá na frente um governo de quem hoje é oposição conseguirá governar e ter alguma estabilidade mantidas as atuais regras do jogo?

E o segundo problema? Antes, uma recapitulação. A medida provisória, herdeira do decreto-lei usado no regime militar, entrou na Constituição de 1988 também por ser parte da arquitetura planejada para o parlamentarismo. Com uma maioria permanente, o chefe do gabinete governaria por MPs. Se alguma delas caísse, abrir-se-ia a crise de governo. Solucionável ou por rearranjo congressual ou por uma nova eleição. Mas o parlamentarismo não passou nem na Constituinte nem no plebiscito após a revisão da Carta.

Para oferecer uma solução mais abrangente de estabilidade sem despotismo talvez seja adequado dar outro passo e acabar também com as medidas provisórias. Cortar o nó górdio. Hoje elas oferecem a sensação e alguma possibilidade de poder, mas são, a cada dia mais, buracos no casco da autoridade do governante. Ele tenta governar por MPs para contornar seus problemas com o Legislativo, apenas para adiante bater no muro do protagonismo dos presidentes do Congresso e dos ministros do Supremo Tribunal Federal.

E num modelo em que o presidente eleito elegesse com ele uma maioria parlamentar o fim das MPs atenuaria os impulsos despóticos presidenciais. E sempre haveria a possibilidade, já prevista na Constituição, de o governo propor projetos de lei em regime de urgência.

Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação

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Publicado originalmente na revista Veja 2.693, de 1o. de julho de 2020


Alon Feuerwerker: A útil maquiagem do passado

Idealizar e embelezar o passado é um método útil para construir narrativas cujo objetivo é alicerçar propostas políticas no presente. A última moda na oposição é reescrever a história das Diretas Já, movimento político que deu um gás na transição do último general a ocupar a presidência da República, João Figueiredo, para o governo civil de Tancredo Neves (que morreu antes de assumir) e José Sarney.

O tema costuma ser introduzido nos debates como se em certo momento o conjunto dos líderes oposicionistas tivesse deixado as diferenças de lado para juntar forças pelo objetivo comum de restaurar a democracia. É uma maneira de ver. Outra: numa certa ocasião, todos os potenciais candidatos da oposição a suceder Figueiredo uniram esforços para que o sucessor fosse escolhido não no Colégio Eleitoral mas na urna.

Parece a mesma coisa, mas a diferença existe, apesar de sutil. Uma sutileza que esconde o essencial. O que move os políticos profissionais não é principalmente um idealismo programático, mas a busca (ou manutenção) do poder. Quando têm sorte, esse objetivo converge para a onda do momento. A sabedoria está em saber surfar a onda certa no momento certo. Ou evitar a onda agora para tentar pegar uma mais favorável adiante.

Raramente a narrativa lembra que quando as diretas pararam no plenário da Câmara dos Deputados foi cada um para um lado. Leonel Brizola lançou no ar a prorrogação por dois anos do mandato de Figueiredo, e diretas em 1986. Luiz Inácio Lula da Silva caiu fora e o PT não votou a favor de Tancredo na indireta. Os deputados que votaram ou saíram ou foram saídos. Sobraram na aliança, de expressivos, o PMDB e a dissidência do PDS (ex-Arena).

Pouco menos de cinco anos depois, Lula e Brizola disputaram a vaga no segundo turno para enfrentar Fernando Collor. Os candidatos herdeiros da Aliança Democrática vitoriosa em 1985 ficaram literalmente na poeira. Todos vitimados pelo fracasso de Sarney na luta contra a inflação e pelas acusações de corrupção e “fisiologismo”, expressão celebrizada na época por quem pretendia ganhar músculos explorando o ódio à “Porex” (política realmente existente).

Não se trata aqui de comparar momentos históricos. Há diferenças claras. Ali a ideia de ditadura sofria uma natural fadiga de material. Hoje ela é introduzida com alguma desenvoltura no debate, apesar de ainda enfrentar barreiras difíceis de transpor: a oposição da opinião pública e da maioria da sociedade, conforme evidenciam todas as pesquisas que procuram saber o que acha o eleitor sobre o assunto.

Mas é o caso de comparar sim a motivação dos personagens. Os líderes que precisariam ser reunidos para a formação de uma frente ampla contra Jair Bolsonaro estão todos amarrados ao próprio cálculo. Para uns o melhor é o impeachment. Para outros a cassação da chapa pelo TSE. Para Lula nada disso adianta se ele permanecer inelegível. Para os demais não interessa de jeito nenhum Lula elegível. É o gato da “luta contra os extremismos” escondido com o rabo de fora.

E para o presidente da Câmara, que tem na mão a chave da largada do impeachment, o destino dos antecessores que comandaram impeachments de sucesso (Ibsen Pinheiro, cassado; Eduardo Cunha, cassado e preso) não chega a ser propriamente estimulante.

Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Alon Feuerwerker: O trunfo e a fragilidade

O presidente da República opera a política de um jeito fixo, na ofensiva o tempo todo. Mais ainda agora quando entende que as instituições ensaiam cercá-lo. Para romper a tentativa de cerco ele mira no elo mais fraco, o desgaste delas junto à sociedade. E apoia-se na figura mais preservada da demolição institucional dos anos recentes: as Forças Armadas. Vai dar certo?

Depende também de como será executado. Mas é uma tentativa, sem dúvida.

Ganha a guerra não necessariamente quem tem mais recursos, ganha quem sabe empregá-los com mais eficiência. Algo que funciona é concentrar o fogo no ponto mais débil da linha de defesa adversária. Para um governo e um presidente acossados por subestimar o SARS-CoV-2 é ouro em pó ver introduzida a variável da corrupção nas iniciativas destinadas a enfrentar a pandemia.

Jair Bolsonaro vem acumulando pontos na sacola. Livrou-se do festejado ministro da Saúde e do festejadíssimo ministro da Justiça. O custo de imagem foi baixo. O custo político foi próximo de zero. E decepou uma perna da resistência congressual quando dividiu o dito centrão e atraiu o presidente do Senado. O da Câmara dá sinais de entender a nova situação.

Quem tem o poder só perde a iniciativa por distração ou imperícia. Mas de vez em quando os súditos rompem a barreira do ponto crítico e passam a não mais suportar a dominação, se o custo de enfrentar o poder é menor que o de continuar passivo. As medições de popularidade nem sempre conseguem calcular isso. Muitas vezes o problema cresce silenciosamente. Você só percebe quando é tarde.

Uma coisa que ajuda é olhar sempre para o ponto futuro, para onde caminham as tendências. A favor de quem opera a inércia. Se nada acontecer, acontece o quê? Se ninguém introduzir o fato novo relevante, no final dá em quê?

A inércia está em parte a favor do presidente. Os governadores, alguns disfarçando, organizam a reabertura das atividades econômicas mesmo na subida da Covid-19. Pois não há mais condições políticas de segurar, especialmente na população que ganha menos e na turma que depende das atividades informais. Só quem continua podendo ficar em casa são os de renda garantida.

E os governadores e prefeitos têm um encontro marcado com o calendário eleitoral. Pode até atrasar umas semanas, mas vai acontecer.

Mas a inércia também joga contra. O exercício do poder faz acumular descontentamentos, mágoas, ressentimentos, insatisfações. Em última instância é sempre o governo quem acaba organizando e engrossando a oposição. Acontece novamente agora na Praça dos Três Poderes.

Por enquanto, a dificuldade momentânea de os insatisfeitos juntarem-se todos contra ele ajuda Bolsonaro.

O governo supõe que capturar um punhado de votos congressuais vai ser suficiente para neutralizar o cerco e a tentativa de aniquilamento. Ou que vai conseguir intimidar todos os potenciais inimigos o tempo todo, ou por tempo suficiente. Ou que as barreiras que separam os inimigos entre eles serão para sempre mais fortes que o desejo, de todos e de cada um, de se livrar de Sua Excelência.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação

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Publicado originalmente na revista Veja 2.689, de 03 de junho de 2020


Alon Feuerwerker: Saindo? Não, entrando

Articulação política é o nome pomposo dado ao ministério, ou à secretaria, que faz a divisão de poder entre os aliados do presidente da República, no que aqui se convencionou chamar de presidencialismo de coalizão.

Se os nomes das cadeiras federais deixassem de lado eufemismos, deveria chamar-se Ministério, ou Secretaria, da Repartição de Cargos e Verbas Orçamentárias. Sua missão em todos os casos é evitar que o presidente veja formar contra ele uma maioria parlamentar.

A opinião pública não chega a ter posição, digamos, de princípio sobre o assunto. A complacência da opinião pública (não confundir com sociedade ou eleitorado) diante da articulação política depende dos objetivos do governo.

Se estão alinhados a essa opinião pública, o viés pejorativo ou morre ou vegeta ou é repaginado. Como aconteceu nos meses anteriores à reforma da previdência, quando a opinião pública era só lamentos por o presidente não ter uma maioria. E, por isso, colocar em risco a reforma.

A reforma da previdência social nunca esteve realmente em risco, mas isso é outro assunto. O fato: aqueles meses foram ricos em demandas por mais articulação política. Para que a ausência de uma base parlamentar não ameaçasse a agenda do ministro da Economia.

Agora, quando Jair Bolsonaro precisa formar alguma base parlamentar para sobreviver no cargo, e a “nova política” é bananeira que já deu cacho, quem deseja remover o presidente da cadeira desenterra antigas terminologias, sempre úteis em ocasiões assim.

Voltam as acusações de fisiologismo, de toma lá, dá cá. Antigos prontuários policiais que não deram em nada são desenterrados com ar de escândalo.

E pode-se ter certeza: se houver uma substituição presidencial, a mesma opinião pública que hoje se escandaliza amanhã apoiará a divisão de poder. Talvez em nome das reformas, ou de uma interessada união nacional.

Tudo isso é previsível, e chega a ser entediante, mas no Groundhog Day (filme traduzido para o Brasil como Feitiço do Tempo; deveria ser Dia da Marmota) da política nacional não há como escapar das repetições. Não inventaram ainda criatividade que dê conta.

Bolsonaro precisa de maioria parlamentar para enfrentar eventuais pedidos de impeachment, se o presidente da Câmara finalmente ceder às pressões. Ou para barrar a abertura de processos criminais contra ele no Supremo Tribunal Federal.

Só há um caminho para isso. Distribuir poder.

Fernando Collor fez assim com o chamado ministério ético. Deu errado. Itamar Franco abdicou da caneta em favor de Fernando Henrique Cardoso. Deu certo. FHC cedeu ao PMDB quando flagraram a compra de votos para a reeleição. Deu certo.

Lula fez assim quando acossado pelas acusações inauguradas por Roberto Jefferson. Deu certo. Dilma tentou a manobra para escapar do impeachment. Deu errado.

Se vai dar certo ou errado com o atual ocupante da cadeira presidencial, só acompanhando em tempo real. Mas, cuidado: base parlamentar é um troço perigoso. Mais ou menos como o tempo (meteorológico) em certas regiões extremas do planeta. Muda de repente.

Vai depender dos fatos, sempre eles. Para monitorá-los, de vez em quando é útil colocar a política no mudo. Em vez de concentrar-se no que os políticos dizem, prestar atenção no que fazem. Por enquanto, não estão querendo um outro governo.

Preferem entrar neste mesmo.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Alon Feuerwerker: O abacaxi para descascar

Há algo errado num país onde a taxa de mortalidade política dos presidentes eleitos é de estonteantes 50%. Mais de dez vezes a da Covid-19 (e ainda tem a subnotificação). Jair Bolsonaro é o quinto presidente saído da urna desde a volta das eleições diretas para o Palácio do Planalto em 1989, e agora começa a sofrer, como a maioria, o cerco e a tentativa de aniquilamento. Vamos ver como ele se sai.

Não que os substitutos estejam imunizados contra o problema. Viram alvo instantaneamente quando sentam na cadeira. O vice de Fernando Collor, Itamar Franco, só escapou da liquidação quando finalmente aceitou ser um presidente decorativo e nomeou Fernando Henrique Cardoso para a Fazenda. Ou primeiro-ministro. Saciou ali a sede de poder dos que sempre querem muito mandar mas só de vez em quando têm os votos para tal.

Para cruzar a correnteza, Michel Temer precisou usar todo o repertório de ás da hoje estigmatizada velha política. Foi ajudado por um fato singular, que Dilma Rousseff não conseguiu manobrar para ela própria: como estava quase todo mundo meio encrencado com a Lava Jato, estabeleceu-se no mundo político um certo espírito de corpo e Temer foi usado de boi de piranha. Para dar tempo de pelos menos um punhado de bois atravessarem.

Qual é então o problema? Algum deve mesmo haver, porque definitivamente os índices brasileiros de perecimento político presidencial não são normais. Uns dirão que o povo não sabe votar bem. Hipótese não verificável. Outros, que o presidencialismo é um sistema bichado. Contra isso, observem-se as dificuldades mundo afora para formar e manter governos estáveis em parlamentarismos onde o bipartidismo colapsou.

O xis da questão é outro. O sistema aqui está organizado para impedir que o presidente da República escolhido pelo povo consiga governar com quem o elegeu. Isso seria possível apenas se o presidente trouxesse com ele, da mesma urna, uma maioria parlamentar. As regras brasileiras forçam exatamente o contrário: desde a Constituinte, nunca um presidente eleito levou à Câmara dos Deputados e ao Senado maiorias orgânicas.

Notem, caro leitor e cara leitora, que quando a opinião pública encasqueta com um governo essa ingovernabilidade potencial é apresentada como algo bom, e o governante que tenta formar base parlamentar é acusado de “comprar votos”. Já quando o governo é, digamos, bem visto, lamenta-se a fragmentação e surgem os apelos pelo aperfeiçoamento da articulação política. E a distribuição de cargos e verbas adquire verniz algo republicano.

Jair Bolsonaro está em xeque principalmente porque 1) resolveu surfar na conversa de que haveria uma nova política e subestimou a necessidade de sustentação parlamentar e 2) trouxe para dentro do governo em posições de poder potenciais opositores da reeleição dele em 2022. Ingenuidade. Quer (precisa) corrigir a rota agora em condições mais desfavoráveis, no meio de uma pandemia e com a economia ameaçada de ir a pique.

Um abacaxi não trivial de descascar.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Alon Feuerwerker: Os riscos e a prudência

Tentar decifrar o que vai no pensamento alheio é sempre meio estrambótico. Tipo aquelas especulações “o presidente pensou em nomear fulano, mas acabou nomeando sicrano”. Um exemplo de afirmação indesmentível. Quem poderá mesmo garantir que o sujeito pensou em algo, ou deixou de pensar? E assim segue a vida.

Outra excentricidade é imaginar que todas as ações de governos e governantes são previamente pensadas e planejadas para atingir determinados objetivos, e sempre obedecendo a um bem elaborado e pré-estabelecido cenário. Parte do pressuposto, em geral, de que o governante é um gênio.

Esses dois mecanismos mentais derivam em parte da necessidade compulsiva de que tudo tenha uma explicação lógica, necessidade que é irmã siamesa do desejo de acreditar que as decisões de quem nos lidera têm sempre um fundo racional. O paralelismo mais comum, usado à exaustão, é com piloto de avião e comandante de embarcação.

Pululam as teorias sobre a razão da saída de Sérgio Moro. Todas merecem ser jornalisticamente investigadas. Então eu vou participar também com algum “especulol”. E se Jair Bolsonaro forçou a demissão para evitar que um potencial adversário em 2022 continuasse se criando e ganhando musculatura política de dentro do governo?

Perguntei aqui em janeiro: “E se Moro virar o candidato do ‘centro’?”. Sabe-se que 1) a principal oposição ao presidente desde o início do mandato é a busca de um “bolsonarismo sem Bolsonaro”; e 2) até agora os candidatos a liderar esse bloco potencial não demonstram musculatura suficiente, pelo menos nas pesquisas.

A demissão de Moro abre-lhe a possibilidade de disputar o posto agora sem amarras. Mas depende de ele conseguir provocar a amputação do mandato presidencial. Por meio do Congresso ou da Justiça. E depende de um segundo fator: caso Bolsonaro saia, impedir que o vice se consolide na cadeira rumo a 2022.

É um jogo em que tudo tem de dar muito certo. Nada pode dar errado. Uma jogada de alto risco.

Talvez por raciocínio, talvez por intuição, Bolsonaro leva jeito de ter forçado mesmo a demissão de Moro. Poderia eventualmente ter seguido a dança e não feito publicar logo pela manhã no Diário Oficial a exoneração do chefe da Polícia Federal. Imagino que soubesse: ficar nesta circunstância seria humilhante demais para o ex-juiz da celebrada Lava-Jato.

E já que estamos falando em risco, o de Bolsonaro é o impeachment ou alguma outra modalidade legal de afastamento. Neste momento, são bem minoritárias as forças políticas que desejam isso de coração. Exatamente porque não são elas que comerão o bolo se organizarem a festa. Ou vai ser Moro, ou vai ser (Hamilton) Mourão.

A resistência dos políticos nunca é garantia, mais ainda quando a chamada opinião pública entra em modo de campanha para supostamente salvar o Brasil, algo que se dá de tempos em tempos. Entretanto, pensando bem, é um processo que já vinha sendo ensaiado. Então é possível que Bolsonaro tenha decidido limpar a área, mesmo que à beque de fazenda.

Ainda falando em risco, um adicional para Moro é sua onda ser surfada por quem deseja tirar o presidente e depois o ex-ministro ser simplesmente abandonado em favor de quem estará na cadeira com a caneta na mão e isento de culpa na confusão. Sobre isso, cumpre notar que o retrospecto do destino dos heróis dos recentes impeachments recomenda alguma prudência.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Alon Feuerwerker: Ela vem aí

Neste planeta infestado pelo SARS-CoV-2, o Brasil deve ser o país mais mergulhado em guerras políticas com jeito de insolúveis. O país em que as diversas facções estão mais longe de alguma espécie de trégua. Talvez atrás do Iêmen. Um armistício aqui ajudaria não apenas contra a Covid-19, mas também a achar um caminho para retomar a economia de modo coordenado e combinado entre os entes federados. Sem isso, pagaremos todos um preço ainda maior.

O Brasil é mesmo uma federação, fato bem estabelecido no papel pela Constituição de 1988. O recente federalismo foi a diástole depois da sístole vivida nos anos do regime militar (1964-1985). E a redemocratização trouxe outro componente: a possibilidade de o Congresso ter voz na elaboração do orçamento, algo que vem sendo progressivamente hipertrofiado, tanto no volume dos recursos alocados às emendas quanto na crescente obrigatoriedade delas.

A crise da Nova República, cujos primeiros três atos foram junho de 2013, o impeachment de Dilma Rousseff e a eleição de Jair Bolsonaro, é uma crise em progresso. A Covid-19 apenas catalisou a etapa atual da reação química. A chamada nova política, que em última instância supõe concentrar no presidente da República poderes quase absolutos para derrotar a velha, precisa agora, para sobreviver, neutralizar o federalismo e o poder do Parlamento.

Fosse Bolsonaro mais convencional, estaria aproveitando melhor a oportunidade de avançar sobre os demais poderes da República em nome da união nacional e da necessidade de somar esforços para enfrentar as crises da saúde e da economia. Seria uma fagocitose pacífica. Mas o presidente criado e cultivado no conflito prefere fazer as coisas ao modo dele. Tornando permanente e elevando a um novo patamar a pressão pela retomada do poder moderador.

Claro que isso iria produzir uma reação, bem de acordo com aquela Lei de Newton. Os governadores e o Congresso reagem a Bolsonaro emparedando-o. E a única certeza sobre essa queda de braço é que as coisas não ficarão como estão agora. Ou bem o presidente consegue neutralizar as forças centrífugas, ou, como temem seus eleitores mais fiéis, terá definitivamente amputada parte vital do poder a ele atribuído pelas urnas.

E como será o desfecho? Mas a pergunta que interessa é um pressuposto desta. Desfecho do quê? O que caracteriza nosso tempo? Se abrirmos os olhos notaremos já estar em pleno processo constituinte, resultado da caducidade daquele texto de 1988. A vida real já o ultrapassou. A dúvida agora é se a corda vai arrebentar para um lado ou para o outro. Por enquanto, quem avança são as tropas centrífugas. Mas convém não subestimar as centrípetas.

No Brasil já tivemos processos, e desfechos, constituintes de várias modalidades. Eles podem grosso modo ser agrupados em dois grandes tipos: os mais e os menos democráticos. Num extremo, 1988. No outro, 1937. E o que vai definir o grau de democracia embutido na próxima ruptura? As características do poder político encarregado pela sociedade de convocar e garantir os trabalhos da Constituinte que vem aí.

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Publicado originalmente na revista Veja 2.683, de 22 de abril de 2020

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação

 


Alon Feuerwerker: A inércia opera a favor de quem?

O presidente da República vive uma situação contraditória. Nunca o apoio a ele foi tão sólido na sua base fiel. Todas as pesquisas mostram entre 25% e 35% do eleitorado acompanhando-o mesmo nas polêmicas em que está sozinho contra o resto da política e a opinião pública. Mas a faca tem dois gumes, e nunca como nesta crise da Covid-19 Jair Bolsonaro esteve tão próximo do isolamento. Na sociedade, nas instituições e mesmo dentro do próprio governo.

As falas e ações de Bolsonaro deixam claro que os movimentos dele com acenos à conciliação são apenas manobras táticas para ganhar tempo e reagrupar forças com o objetivo de retomar a ofensiva. Ele joga com a atitude dos que confiam plenamente na vitória final, ou dependem excessivamente dela para sobreviver. E também por isso não têm maior interesse num acordo de paz. Ou mesmo num armistício mais duradouro, que possibilite a estabilização do front.

Em política, é sempre importante levar em conta a inércia. Responder à pergunta “se não acontecer nada, acontece o quê?”. É a outra forma de perguntar a favor de quem joga o tempo. E a análise desse fator deve ser sempre pontual, pois o vento pode mudar de sentido de uma hora para outra. Então cabe perguntar: se persistir à esquerda e ao dito centro a rejeição a enveredar pelo caminho do confronto final contra o presidente, qual será o desfecho?

Para recuperar a expressão popularizada pelo técnico da Seleção na Copa de 1978 (faz tempo...), Cláudio Coutinho, Bolsonaro mostra jogar de olho no ponto futuro. Na crise provocada pelo SARS-CoV-2, apesar de ajustes táticos aqui e ali, parece confiar que a fortaleza dos adversários, particularmente os governos estaduais, vai cair diante da inevitabilidade de alguma hora as pessoas precisarem voltar ao trabalho para garantir a subsistência.

Não chega a ser uma aposta tão arriscada. O tema começa a ganhar espaço em todo o mundo mesmo sem o vírus da Covid-19 estar neutralizado. Até porque fica cada vez mais evidente que isso talvez demore. E bastante. Então trata-se de planejar a executar a volta à atividade mais dia menos dia, tomando as providências necessárias, ou possíveis, para reduzir a transmissão do patógeno quando as pessoas voltam de algum modo à vida social.

Um governo convencional teria assumido cedo a liderança do lockdown, e agora estaria liderando o planejamento da operação para sair dele. E saborearia os píncaros da popularidade. E a completa imobilização da oposição. É o que acontece, por exemplo, na Argentina. Onde está a diferença? Talvez ela esteja em Alberto Fernández ter um partido institucional hegemônico e vertebrado, enquanto Bolsonaro não tem nenhum.

Talvez essa diferença leve o presidente brasileiro a acreditar que se decidir enveredar pelo caminho da conciliação com o establishment acabará imobilizado, se não terminar derrubado. Na ausência de um partido institucional para chamar de seu, Bolsonaro precisa manter em movimento o partido bolsonarista extra-institucional, exatamente para bloquear o movimento de adversários políticos, especialmente dos que se apresentam como possíveis aliados.

Entrementes, disputa espaço nas manchetes com a contabilidade de mortes.

E fica a pergunta: “Se não acontecer nada, acontece o quê?”

Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Alon Feuerwerker: O samba de uma nota só

Neste curso coletivo de dimensões planetárias sobre epidemias, aprendemos que a curva epidêmica tem um trecho exponencial ascendente, logo no começo. Depois a subida inverte a curvatura, conforme algumas pessoas se imunizam e outras, infelizmente, vão a óbito. Uma hora chega o pico. E quando o fator “R”, o número de indivíduos que cada indivíduo contaminado contamina, cai abaixo de um, a curva começa a trajetória descendente. Numa imagem que é quase o espelho de quando subiu.

O enigma para o analista político é tentar decifrar se haverá correlação entre as idas e vindas da curva epidêmica e uma parente dela: a curva de aprovação/desaprovação dos políticos que lidam com a epidemia em cada país. Ou em cada estado. Ou em cada cidade. Quem disser que tem certeza provavelmente falta com a verdade. Ao final deste pesadelo (haverá um “final”?) poderemos ter certeza. Mas aí será trabalho para historiadores, os privilegiados que podem se dar ao luxo de fazer previsões só depois que tudo já aconteceu.

Políticos agem por instinto, e movidos principalmente (unicamente?) pelo humor do eleitorado do qual dependem. Donald Trump decidiu proibir exportações de produtos médicos necessários para ajudar pacientes da Covid-19 e profissionais da saúde. E mandou comprar/pegar tudo que fosse necessário comprar/pegar mundo afora. Para tristeza dos fãs da “globalização”, cada um só vota nas eleições de seu próprio país. E a contabilidade de mortos que interessa a Trump no ano eleitoral é a dentro das fronteiras dos Estados Unidos.

Por isso, ele combina bem o “blame game” (o esforço, por enquanto pouco produtivo apesar da propaganda, de emplacar a expressão “vírus chinês”) com uma versão mais tosca do “big stick”, versão que dispensa aquela parte de “fale macio”. E os índices mostram o presidente candidato à reeleição navegando em meio à curva crescente da epidemia nos Estados Unidos. No momento, o povo americano parece mais preocupado em sobreviver, e menos em discutir se lá atrás Trump subestimou o problema.

Por aqui, Jair Bolsonaro sofre algum desgaste por ser talvez mais teimoso. O ocupante da Casa Branca mudou o discurso e a linha de ação quando foi necessário, sem se preocupar em explicar por que alterou a rota. Assim funcionam os líderes. Bolsonaro já teve inúmeras oportunidades de ajustar o leme para indicar que se preocupa sim com o impacto da epidemia para a saúde e a vida, mas não aproveitou. Continua no samba de uma nota só, de que os efeitos econômicos da paradeira podem ser tão ou mais daninhos que os da Covid-19.

As pesquisas mostram por enquanto um desgaste para ele apenas na margem. Não está bem avaliado no combate à epidemia, mas mantém perto dele o eleitorado fiel desde a reta final do primeiro turno em 2018. Por cálculo, ou por instinto, ou por convicção, tanto faz, ele parece achar que isso será suficiente para concluir o mandato e brigar para continuar em 2022. Pode ser. Mas também pode estar subestimando o papel que o cansaço com o belicismo presidencial pode desempenhar para juntar gente contra ele até lá.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Alon Feuerwerker: A política e os amigos

Todas as pesquisas mostram alguma corrosão da imagem do presidente da República, mas na margem. O público mais fiel continua firme. Mostram também que os governadores estão em alta. Isso é consistente com a preocupação central das pessoas neste momento: a saúde.

O risco imediato para o governo federal não está na popularidade, mas numa certa propensão ao isolamento político. Alimentar permanentemente a base numa guerra eterna contra os inimigos, reais ou virtuais, junta gente mas também ajuda a formar uma frente anti.

Até semanas atrás eram impensáveis gestos mútuos de respeito entre João Doria e Luiz Inácio Lula da Silva. Houve alguma reação agora quando aconteceu, mas nada perto do que seria se tivesse acontecido antes da pandemia da Covid-19.

É por isso que convém nunca esquecer do valioso conselho. Nunca rompa com seu amigo por causa de política. Depois os políticos se entendem e só quem ficou no prejuízo foi você, que perdeu um amigo.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação

 


Alon Feuerwerker: Não é porque o governo mandou

A economia não é o conjunto das “coisas”. É preciso acrescentar as pessoas. Não é a reunião apenas das máquinas, matérias-primas, mercadorias e do dinheiro, nas suas variadas formas. É a reunião disso e, mais importante, dos seres humanos que estabelecem relações materiais de produção e troca no mercado.

Impor uma contradição definitiva entre “a saúde” e “a economia” tem utilidade para fins propagandísticos, é útil para criar mistificações políticas, mas traz um problema: supõe que a segunda pode ser analisada abstraindo aspectos subjetivos e até objetivos da força de trabalho.

Não à toa as modernas abordagens econômicas levam cada vez mais em conta os vetores subjetivos, que pedem equações mais complexas.

Qual será então o melhor caminho para evitar que a retração econômica trazida aqui, como em todo lugar, pela chegada da pandemia da Covid-19 vire um “L”, sem retomada vigorosa visível? O ideal seria o “V”, mas até um “U” vai ser aceitável. É melhor dar prioridade ao combate da pandemia ou deixar ela cobrar maior custo em vidas em troca de menos queda na atividade?

Quem defende esta segunda visão poderá argumentar que se toda a população britânica tivesse passado a Segunda Guerra Mundial escondida em bunkers era certo que teriam tido grande dificuldade para prevalecer contra o inimigo ao final. E o outro lado poderá contrapor que se todos tivessem morrido, também. Onde estará o ponto ótimo de equilíbrio na Covid-19?

Parece variar em cada país.

É bom observar o que acontece em Wuhan, o epicentro da epidemia na China. Aprender com os erros e acertos alheios é sinal de inteligência. Ali, após hesitações iniciais, as autoridades impuseram medidas duríssimas de isolamento social para conter o avanço da doença. Mas não esperaram a completa eliminação da circulação do vírus para tentar voltar a alguma normalidade.

Se é que algum dia se poderá, lá como aqui, falar ainda em “normalidade”.

O mais importante? A economia só reagirá mesmo quando as pessoas se sentirem novamente algo confiantes para retomar o papel de produtores e consumidores. Na Itália, fábricas que tentaram voltar prematuramente enfrentaram greves. E adianta pouco reabrir o comércio e os shoppings se a confiança do consumidor continua no chão.

Ele simplesmente não comparecerá, ou não comprará.

Fica uma dica: as pessoas não estão em casa principalmente porque algum governo mandou. Estão em casa porque têm medo.

A volta da confiança será função direta de acreditar que as autoridades reduziram bem os riscos à saúde, e são capazes de dar conta das tarefas que restam. Por isso, o maior entrave à retomada da nossa economia são a irracionalidade e a continuidade da guerra política. Que já deu o que tinha de dar.

Só observar: os danos à saúde e à economia provocados pela Covid-19 em cada país são função direta da desorganização política interna.

Deveria ser um alerta para nós.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação