Ana Carla Abrão
Ana Carla Abrão: Brasil tem tanta vida que faz valer a pena buscar uma saída
Com a pandemia e a assimetria dos seus impactos por renda, gênero e raça, não haverá o que se comemorar nos próximos anos
O Brasil é Severino. Severino de Maria, do finado Zacarias. A obra-prima de João Cabral de Melo Neto nunca foi tão nossa, tão real, tão ampla como em 2021. Como o retirante de Morte e Vida Severina, que vai da Serra da Costela ao Recife no extraordinário poema regionalista publicado em 1955, hoje vivemos a vida que não se vive, mas que se defende.
A realidade se estampa nos números da nossa tragédia social, a começar pela triste marca de mais de 350 mil mortos por covid-19. Na mesma esteira, seguem-se outros tristes números. O PIB per capita (que funciona como um indicador de riqueza da população) encolheu em média 0,6% ao ano na última década, segundo o Ibre/FGV. Quando comparado ao PIB per capita dos Estados Unidos, voltamos ao início dos anos 2000, com nosso PIB per capita equivalendo de volta ao mesmo ¼ do norte- americano de então. Ou seja, em termos absolutos e relativos, ficamos mais pobres.
Também corremos o risco de sermos menos pessoas ativas economicamente no futuro. Não só porque se morre muito hoje, mas também porque o desalento leva a menos nascimentos. Isso significa um risco de termos menor capacidade de produzir riqueza e de financiar aqueles que não são produtivos – crianças e aposentados – lá na frente. Não só o País já perdeu a oportunidade de se beneficiar do bônus demográfico, que reduziu a razão de dependência entre os segmentos economicamente dependentes e o segmento classificado como produtivo a 44% (44 brasileiros com menos de 15 e mais de 64 anos dependentes de 100 pessoas em idade de trabalhar), como podemos vir a ter uma aceleração adicional dessa razão. Pela primeira vez na nossa história, conforme noticiado pelo Estadão no último domingo, algumas regiões do Brasil registraram mais mortes do que nascimentos. Os dados se referem aos primeiros dias de abril e, embora preliminares e explicados pelo elevado número de mortes, expõem a inversão de uma relação que mostrava nascimentos superando em mais que o dobro os óbitos. A depender dessa tendência, da sua intensidade e duração, o desafio da produtividade – já tão grande – será ainda maior no futuro.
Nessa esteira de números de tristeza e de piora nas perspectivas futuras, a educação surge como mais uma grande tragédia. O impacto da pandemia sobre a aprendizagem e sobre o aumento na evasão escolar pode significar o comprometimento de uma geração de crianças e jovens. Esse, sim, é o mais grave dos tristes legados, pois significa enraizar ainda mais a pobreza e a desigualdade que já tanto castigam. Os dados do IBGE mostravam um retrato ruim em 2019. Ali, mais da metade dos adultos brasileiros não havia concluído o ensino médio, segundo a Pnad Contínua, divulgada em meados do ano passado. Dentre os nossos 50 milhões de jovens entre 14 e 29 anos, 10 milhões abandonaram ou nunca frequentaram a escola. Desses, 71,7% são pretos ou pardos. Com a pandemia e a assimetria dos seus impactos por renda, gênero e raça, não haverá o que se comemorar nesse campo nos próximos anos. Ao contrário, contrata-se assim a manutenção da pobreza, além de subemprego, criminalidade e aumento da desigualdade social.
Outros números se juntam para compor esse triste mosaico. Desemprego elevado – em particular, mais grave entre mulheres, pretos e pardos; aumento na concentração de renda (acentuada pela discrepância na trajetória de salários nos setores público e privado) e nos níveis de pobreza; agravamento da situação fiscal dos Estados e municípios e o consequente enfraquecimento da sua capacidade de provisão de serviços públicos de qualidade. Dentre outros que se misturam com a agenda populista e fisiológica que há muito nos tomou de assalto.
Mas não quero aqui deprimir ainda mais meu leitor. Afinal, a esperança, última a morrer e única ainda viva quando até o otimismo já se foi, vem em outra esteira. Paralela à esteira da morte, ela surge em reação à atual distopia e celebra a vida. É o Mestre Carpina de João Cabral, que responde a esse Brasil retirante ser o espetáculo da vida a melhor resposta para a morte.
Ao mesmo tempo que o Brasil sucumbe, abre-se na urgência o espaço para uma agenda que, ainda franzina, deverá fazer convergir ao centro uma alternativa que trará de volta o País dos brasileiros. Essa agenda deverá colocar a justiça social e a redução das desigualdades no topo das suas prioridades, e buscá-las por meio de políticas públicas que carregarão não a marca da ideologia, mas, sim, a da ciência e a do rigor. Isso, sim, é convergência. Isso, sim, será recolocar o Brasil nos trilhos. Afinal, somos todos, como em Morte e Vida Severina, irmãos das almas num País que hoje chora suas mortes. Mas que tem tanta vida que faz valer a pena buscar uma saída.
*ECONOMISTA E SÓCIA DA CONSULTORIA OLIVER WYMAN. O ARTIGO REFLETE EXCLUSIVAMENTE A OPINIÃO DA COLUNISTA
Ana Carla Abrão: Novos riscos globais expõem as fraturas sociais da pandemia
Não foi o coronavírus que gerou nossa desigualdade social. Mas ele a ampliou
Há 50 anos, o Fórum Econômico Mundial (WEF, da sigla em inglês) foi fundado. Desde então, governantes, agentes públicos e empresários do mundo todo se reúnem anualmente em Davos. A pequena cidade suíça tem seus dias de glória nos meses de janeiro, quando o mundo acompanha seu inverno frio e branco emoldurando discussões sobre o desenvolvimento econômico e social global. Este ano, como em tantos outros casos, Davos ficará vazia. Mas os debates não deixarão de acontecer. De outra forma, mas com grande ênfase.
É durante o WEF que se publica o Relatório de Riscos Globais (RRG). Já são 16 edições que anualmente busca apontar os maiores riscos e seus potenciais impactos sobre o mundo. O relatório veio a público esta semana trazendo a perspectiva de líderes públicos e privados sobre o que pode comprometer a prosperidade global em áreas como economia e meio ambiente, mas também geopolítica, questões sociais e tecnologia. Em 2021, o desafio nesse mapeamento foi maior. Afinal, não é fácil falar de riscos após o inesperado tsunami da covid-19. Não que esse risco estivesse completamente fora do radar. Mas sua ocorrência, severidade e impactos superaram as previsões do mais adverso dos cenários possíveis.
Neste ano, o RRG identificou sete grandes riscos, classificados em ordem de probabilidade de ocorrência e de impacto. No primeiro grupo, riscos climáticos continuam se destacando, com eventos climáticos extremos, falhas nas ações de proteção ambiental e danos ambientais causados pela ação humana ocupando as três primeiras posições.
Na sequência, temos os riscos de doenças infecciosas assumindo lugar que perda de biodiversidade ocupava em 2020. Esse vem adiante e é seguido por um novo e recentemente reconhecido temor relacionado à concentração do poder digital em grandes empresas de tecnologia.
A lista se encerra com a desigualdade digital ocupando a 7.ª posição dentre os riscos globais mais prováveis. Na classificação por impacto, sem surpreender, o risco de doenças infecciosas ocupa o topo da lista e dois novos riscos são incorporados: i) as dificuldades de manutenção dos meios de sobrevivência, ligadas, por exemplo, ao desemprego – em particular da população jovem que chega ao mercado de trabalho – e à erosão das condições de emprego; e ii) a ameaça das armas de destruição em massa, reafirmando os temores presentes no topo das listas do RRG desde 2013.
Em 2021, segue o RRG, o cenário continuará marcado pelo impacto e pela severidade da pandemia. Certamente por menor espaço de tempo naqueles países que conseguirem avançar rapidamente com a vacinação em massa. Mas a covid-19 deixará marcas profundas em função das barreiras individuais e coletivas que a maior crise sanitária de todos os tempos nos legará. Esse é o alerta que emerge na escolha das quatro áreas centrais de preocupação: desigualdades digitais, privação de direitos pelos jovens, tensões geopolíticas e o aumento das pressões sobre os negócios.
Na digitalização, a aceleração motivada pelo isolamento social ampliou as diferenças entre indivíduos e países, com impactos duradouros sobre desigualdade por meio do seu canal mais poderoso: o acesso à educação – interrompido para tantas crianças e jovens. Além disso, polarização política e incertezas regulatórias acompanham o desenrolar de um mundo mais digital e mais conectado.
Ainda para os jovens, o desafio se ampliou com a ausência de oportunidades de trabalho se juntando às angústias que se traduzem em revolta e descontentamento. Para as mulheres, anos de avanços de representatividade foram perdidos, na esteira de pressões culturais e oportunidades mais estreitas. No campo geopolítico, o fechamento de fronteiras, a luta pela vacina e os desafios diplomáticos exacerbaram tensões preexistentes e criaram novas. Não menos importante são a pressão sobre os negócios num mundo mais incerto, mais concentrado, mais consciente e em grande transformação.
Tudo isso se traduz em novas fraturas sociais, agora ainda mais expostas. Não só entre nações, mas principalmente dentro de cada país, as diferenças sociais se exacerbaram, ampliando as fendas existentes e impondo desafios maiores para o futuro.
A mobilidade social, já baixa em tantos países, deverá ser ainda mais reduzida com o impacto da pandemia na educação, refletido no aumento da evasão escolar, na ausência de capacitação adequada e na consequente redução na empregabilidade. A falta de infraestrutura tecnológica continuará alijando famílias do acesso à informação de qualidade, assim como a falta de infraestrutura básica negará a elas condições de vida melhores. A pressão sobre os sistemas de saúde definirá caminhos e probabilidades distintas para camadas diferentes da população, numa separação cruel que se faz na partida da sua condição social.
No Brasil, tudo isso é pior – e continuará sendo. Afinal, não foi a pandemia que gerou nossa desigualdade social. Mas ela a ampliou, agravando essa fratura que divide o País em dois e engrossando o lado da pobreza com mais um bocado de brasileiras e brasileiros.
*Economista e sócia da Consultoria Oliver Wyman.
Ana Carla Abrão: Antes tarde
Além da autorregulação é preciso regras que inibam lá e cá atitudes como as de Trump
Numa decisão polêmica, mas acertada, o Twitter decidiu encerrar em caráter definitivo a conta do presidente americano Donald Trump. O motivo alegado foi o risco potencial de incitamento à violência dado o uso da plataforma pelo presidente para disseminar falsas notícias (fake news) e promover as mobilizações que levaram à invasão do Capitólio por manifestantes pró-Trump. Tardia, a decisão reflete uma reação que deverá aquecer as discussões já em curso sobre a necessidade de se regular as grandes empresas de tecnologia, em particular as plataformas de mídias sociais e seus algoritmos de curadoria.
Ao contrário do que querem fazer crer os defensores do presidente americano ou os críticos às ações do Twitter – e também do Facebook, Snapchat e Instagram – lá e aqui, é a defesa da democracia o pano de fundo nessa discussão. Muito além das questões antitruste ou dos temores legítimos em relação ao tamanho (e ao poder de mercado) que as plataformas digitais adquiriram ao longo do tempo, é a capacidade de desinformar e de serem usadas como ferramenta de manipulação em massa a grande preocupação.
Não surpreende, portanto, que os mais indignados e vocais contra as ações de banimento sejam os mesmos que se posicionam em favor dos nossos tristes anos de ditadura, marcados pela censura e pela tortura, negada por eles. Parece paradoxal, mas não é. Afinal, a capacidade de produzir fake news e de disseminá-las de forma rápida e em grande escala são o caminho para a manipulação e, consequentemente, para se colocar em xeque o regime democrático. A história – atual e pregressa – está cheia de exemplos analógicos de situações semelhantes.
Não são poucos os estudos e artigos acadêmicos que têm se debruçado sobre o tema. Um deles foi divulgado há cerca de um mês pelo Centro de Filantropia e Sociedade Civil da Universidade Stanford. Elaborado sob o um programa que estuda “Democracia e a Internet” o relatório, que tem como um dos autores o cientista político Francis Fukuyama, faz uma ampla discussão sobre a escala e o papel das plataformas digitais. Ao final, o trabalho sugere um caminho inovador – e de implementação mais rápida. Fugindo (sem eliminar sua necessidade) das receitas tradicionais de fomento à competição, emerge a proposta de abertura dessas plataformas para que empresas independentes de tecnologia possam acessá-las diretamente e fazer a curadoria de notícias, sob orientação do próprio usuário e em contraposição aos algoritmos internos de inteligência artificial que hoje fazem essa escolha de forma automática. Devolve-se assim ao cidadão o controle sobre aquilo que ele lê.
A urgência dessa agenda vem dos efeitos da escala e do poder de alcance dessas empresas, que vão muito além dos aspectos econômicos. Eles são também políticos. A curadoria de notícias, via amplificação ou supressão de mensagens – e a consequente possibilidade de alavancar e rapidamente disseminar a desinformação – pode ter efeitos diretos sobre as escolhas políticas, influenciando as decisões e o comportamento dos cidadãos. Daí o impacto deletério sobre a democracia, que deixa de ter como eixo a decisão livre e informada dos eleitores e passa a ser subjugada por processos pouco transparentes – senão falsos – e reações dirigidas. Mais, conforme definido por David Lazer e autores no artigo A ciência das fake news, a disseminação de notícias falsas por um presidente da república que toma emprestada a credibilidade – não a sua (quando a tem), mas a da instituição (a Presidência da República) – para distribuir como verdade aquilo que não é, valida a desinformação e garante sua amplificação.
Sim, a decisão de banir o presidente Trump e evitar que ele continue a manipular cidadãos por meio da desinformação é uma decisão correta do Twitter. Fazê-lo só agora corrobora que ele foi longe demais e esteve livre demais para usar as plataformas digitais (e seu posto de presidente dos Estados Unidos) para desinformar, incitar o ódio e avançar contra as instituições americanas. Mas isso também significa que precisamos, além da autorregulação que agora surge, de uma regulação que iniba de forma estrutural atitudes como essas – lá e cá.
A maior das motivações não é a econômica e tampouco o combate a uma eventual afronta à liberdade de expressão, argumento falacioso de bolsonaristas órfãos de seu guru abjeto. A motivação principal para a regulação e a abertura dessas plataformas é a necessidade de se definir critérios que vão muito além das atuais boas intenções das empresas. Elas hoje podem estar se guiando pela premência de interromper um processo nefasto e inaceitável de ameaça à democracia. Mas há que se lembrar que boas intenções não são substitutos para uma boa regulação e menos ainda para as instituições que a defendem.
Essa é uma constatação que pode ter vindo tarde nesse campo. Mas tarde é sempre melhor do que nunca.
*Economista e sócia da consultoria Oliver Wyman.
Ana Carla Abrão: O dia seguinte
Precisamos de uma ação coordenada e planejada para lidar com esta crise
Mesmo com sorte e acesso à vacinação, ainda teremos de enfrentar os efeitos da pandemia sobre a economia ao longo de todo o ano de 2021. Isso significa um esforço de políticas públicas e ações de enfrentamento por algum tempo e, consequentemente, a necessidade de se focar em iniciativas de apoio que estejam direcionadas aos setores e às camadas da população mais atingidos. Essas deverão substituir os amplos programas de socorro que foram o padrão na primeira fase de enfrentamento e que foram tão importantes para minimizar os efeitos primários da interrupção da atividade econômica. A provisão de liquidez foi fundamental. Agora é hora de olhar para a solvência.
Essa é a conclusão de um relatório recém divulgado pelo Grupo dos 30, grupo consultivo para assuntos de economia internacional e monetários. O G-30 é composto pelos atuais e ex-chefes dos bancos centrais da Argentina, Brasil, Grã Bretanha, Canadá, China, França, Alemanha, Índia, Israel, Itália, Japão, México, Polônia, Cingapura, Espanha e Suíça, além dos presidentes do Federal Reserve Bank de Nova York, do Banco Central Europeu, do Comitê de Supervisão Bancária de Basileia, do Bank for International Settlements (BIS), dos economistas-chefes do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial. Participam também representantes de grandes bancos privados e membros de instituições acadêmicas e internacionais.
Ressuscitando e Reestruturando o Setor Corporativo Pós-Covid – Desenhando intervenções de política pública (Reviving and Restructuring the Corporate Sector Post-Covid - Designing public policy interventions) é o título do estudo. Ele visa a alertar formuladores de políticas públicas sobre os riscos de, passado o primeiro momento de enfrentamento e realizada a expectativa de vacinação da população, se buscar restabelecer o status quo pré-pandemia, ignorando as transformações que em boa parte se manterão ao longo deste ano, senão de forma perene, sobre o mundo corporativo. Agora é hora de permitir uma realocação de recursos e garantir que as economias sairão melhores das transformação ocorridas nesses últimos tempos. Nesse processo, instituições financeiras e o mercado de capitais terão papel fundamental e precisarão estar prontos para apoiar essas transformações e os impactos delas sobre as empresas. Mais desenvolvido e profundo o mercado financeiro, maiores as chances de recuperação econômica – e mais rápida ela será. Além disso, alertam os membros do grupo de trabalho liderados pelos ex-banqueiros centrais Mario Draghi e Raghuram Rajan, caberá aos governos estabelecer as condições para que isso aconteça, se afastando cada vez mais das ações amplas de apoio e se concentrando em iniciativas mais focalizadas e de maior eficácia.
Na medida em que as ações emergenciais vão sendo retiradas, segue o relatório, há que se antecipar um conjunto de problemas que deverão emergir e que exigirão respostas de políticas públicas adequadas. Esses problemas vão desde as distorções geradas pelas políticas de apoio à liquidez (que não necessariamente atuaram de forma proporcional aos impactos diversos sobre diferentes setores), passam por eventuais problemas de sobreendividamento, gerados pelo estímulo ao crédito num ambiente de fraca atividade econômica e vão até uma intervenção excessiva do setor público, causando alocações subótimas de recursos.
Não menos importante e particularmente grave no Brasil, são os impactos fiscais das medidas de enfrentamento e a falta de sustentabilidade dessas ações no longo prazo. Para guiar o enfrentamento desses problemas o relatório avança com recomendações baseadas em princípios e instrumentos de política pública e acompanhados de um processo de decisão que leva em conta as particularidades locais. Não os exponho aqui pelas restrições de espaço, mas também para deixar ao leitor curioso a possibilidade de se aprofundar nas possibilidades e nos detalhes ali apresentados.
A mensagem principal que fica desse trabalho é a de que precisamos de uma ação coordenada, planejada e focalizada para lidar com esta que é uma crise sem precedentes na História. Dados os efeitos – temporários e permanentes – da pandemia, há que se criar as condições para que a economia se recupere, protegendo vidas, entendendo as limitações de cada país, mas também minimizando o custo para a população e para as gerações futuras. Para isso será necessário garantir que o setor privado assuma seu papel com ações de política pública que restaurem a confiança, garantam a solvência (em particular a do setor público) e tragam resultados estruturais.
Sem dúvidas, um grande desafio para um país como o Brasil, que tem um governante que nega a pandemia e um governo que demonstrou baixa, senão nenhuma, capacidade de coordenação e planejamento. Mas sempre é tempo de sair da paralisia e apresentar um plano de recuperação que possa nos trazer esperança de que dias melhores virão quando o dia seguinte da pandemia chegar.
*Economista e sócia da Consultoria Oliver Wyman.
Ana Carla Abrão: Novos mandatos, velhos problemas
Problemas estruturais continuam presentes em todos os municípios – e os novos prefeitos precisarão enfrentá-los
Há o que comemorar nos resultados das eleições municipais. Se comparadas às eleições anteriores, tão marcadas pela intolerância e pela agressividade, fica claro que uma brisa de temperança dominou. Com ela, ressurgiu a ideia de que há caminho no centro e uma sensação de que a população se vê menos inclinada a mitos, radicalismos e extremos. Tudo isso a conferir, mas algum alento veio das notícias da última noite de domingo.
Mas isso infelizmente não significa que a vida será mais fácil para os novos prefeitos. Apesar das folgas de caixa geradas pelos socorros do governo federal, cujos números foram levantados pelo economista Marcos Mendes e publicados pelo Estadão em matéria de Adriana Fernandes, problemas estruturais de sempre continuam presentes (e maiores) em todos os municípios – e precisarão de coragem dos novos prefeitos para enfrentá-los.
O tamanho do desafio se reflete no Ranking de Competitividade dos Municípios, recém divulgado pelo Centro de Liderança Pública – CLP e elaborado em parceria com a Gove. O relatório com indicadores de 405 municípios serve de guia para os novos gestores entenderem onde estão e o quanto há para fazer se quiserem melhor atender e servir a população das suas cidades. E é o que se espera deles. Afinal, toda nova eleição tem algo de otimismo, de expectativa de melhora, de uso de capital político recém-conquistado para que se faça o que é preciso. Quiçá seja assim desta vez.
O ranking de municípios é um filhote do ranking dos Estados, há anos publicado pelo CLP em conjunto com a Tendências Consultoria e a The Economist Intelligence Unit. A avaliação abrange municípios com população acima de 80 mil habitantes e se baseia em 55 indicadores, organizados em 12 pilares e 3 dimensões. As informações coletadas se referem a 2019, não incorporando, portanto, os efeitos da pandemia nem tampouco dos recursos recebidos e aplicados ou não no seu combate.
A primeira dimensão analisa as instituições do município, focando nos pilares de sustentabilidade fiscal e funcionamento da máquina pública. A segunda olha para o atendimento à sociedade, composta pelos pilares de saúde e educação, avaliando tanto acesso quanto qualidade, além de saneamento e meio ambiente. Por fim, indicadores de inserção econômica, inovação, dinamismo, capital humano e serviços de telecomunicação compõem o terceiro pilar, de avaliação econômica.
A concentração no Sudeste é consequência do corte mínimo de 80 mil habitantes, mas quase 60% da população brasileira está abrangida pelo conjunto de municípios avaliados. Os resultados dizem o que já sabemos – e sentimos no dia a dia: há cidades brasileiras cujas avaliações relativas são positivas e que apresentam bons indicadores. Mas, no absoluto, a totalidade delas tem uma agenda de avanços a cumprir se de fato os novos gestores quiserem melhorar a vida dos seus eleitores e munícipes. O ranking atual mostra o município de Barueri no topo da lista, seguido de perto por São Caetano do Sul (SP) e na sequência as capitais São Paulo, Florianópolis e Curitiba. Na lanterna surgem cinco municípios do Pará: Marituba, Tucuruí, Abaetetuba, Tailândia e Moju. Os destaques dos primeiros são as mazelas dos últimos, com educação, saúde e saneamento como os grandes heróis e também os maiores vilões.
São Paulo, maior e mais rico município do País, se encontra em posição de destaque graças a alguns dos indicadores que medem as dimensões de economia e a qualidade das suas instituições. Nas avaliações de funcionamento da máquina pública e desempenho fiscal, como tudo é relativo, a capital paulista figura na 4.ª posição na primeira, mas está medianamente posicionada na segunda, ocupando a 31ª colocação. Essas dimensões representam, respectivamente, 10,7% e 8,0% de peso no índice geral e medem questões como dependência fiscal, taxa de investimento, despesas de pessoal e endividamento na dimensão fiscal e custo da função administrativa, tempo para abrir uma empresa e qualificação do servidor como critérios de avaliação da máquina. Em alguns desses, como taxa de investimento e nível de endividamento, a capital não brilha.
Mas é na dimensão de atendimento à sociedade que a capital surpreende negativamente – e muito. São Paulo não só não aparece entre os cinco melhores avaliados em nenhum dos indicadores de educação, saúde, segurança ou saneamento, como ocupa uma injustificável 72.ª colocação no ranking geral dessa categoria.
Esse é um excelente ponto de partida para o prefeito eleito, Bruno Covas, cujas juventude e renovadas energias poderão levar adiante esse que é o maior dos mandatos conquistados nas urnas: o de cuidar das pessoas. Para isso, há pedras a serem quebradas, dentre elas uma mudança estrutural no funcionamento da máquina municipal, cujas qualidades têm de estar voltadas para o cidadão e não para si própria.
Ana Carla Abrão: O longo prazo é hoje
Apesar da pandemia, o mercado de capitais reagiu e chega ao fim de 2020 acumulando números muito positivos
Em um ano tão turbulento e tão difícil, era de se esperar que o mercado de capitais tivesse, na melhor das hipóteses, andado de lado. Não foi assim o ano todo. Esse mercado viveu, até antes da abrupta interrupção da atividade econômica pela pandemia, um período de notável expansão. Mas sofreu, em março e abril deste ano, o baque que todos nós sofremos, se retraindo como reação à esperada recessão econômica, ao aumento da volatilidade e da aversão ao risco como no resto do mundo. Mas reagiu e chega ao fim de 2020 acumulando números muito positivos.
Somos mais de 3 milhões de investidores individuais em renda variável na B3, nossa Bolsa de Valores. Após a paralisia dos primeiros meses, que interrompeu a tendência crescente de emissões que vinha ainda de 2019, vimos os números de operações de abertura de capital baterem recordes, com 18 novas estreias na B3 (mais do triplo do que vimos em todo 2019) e R$ 22 bilhões em ofertas públicas individuais (IPOs), o que equivale a mais do que o dobro dos R$ 10 milhões observados no ano passado. Somem-se a essas, as ofertas subsequentes (follow-ons) – quando a empresa volta ao mercado para ofertar mais ações – que aconteceram a partir de agosto e chegamos a R$ 78 bilhões em operações até setembro de 2020, equivalente a 87% do total registrado no ano de 2019.
No mercado de renda fixa não foi diferente. Devemos fechar o ano com uma participação recorde dos instrumentos de financiamento privado na matriz de financiamento de longo prazo das empresas. Aqui o crédito bancário público (majoritariamente BNDES, com volumes generosos e juros subsidiados) chegou a representar 48% de toda a carteira de crédito de longo prazo das empresas no Brasil. Ao final do primeiro trimestre de 2020 esse número representava 36%. Uma queda expressiva cuja tendência deverá se manter, devolvendo ao mercado de capitais a posição que ele deveria sempre ocupar.
Se olharmos outra métrica, a dos volumes de emissões mobiliárias públicas em comparação com emissões no mercado de capitais, o movimento de expansão se mostra igualmente consistente e vem de mais longe. Enquanto em 2016 as emissões privadas representavam apenas 18% do que foi emitido pela União, ao fim de 2019, elas chegaram a representar 58%. Este ano, a vida foi mais dura, ainda assim, o número se manteve em 38%, consolidando a tendência de maior representatividade do mercado privado.
Ou seja, apesar da pandemia e dos seus consequentes reflexos sobre a atividade econômica no mundo e no Brasil, o mercado de capitais local seguiu uma lógica própria em 2020. o contexto adverso afetou a trajetória de expansão que se desenhava forte em 2019, mas não interrompeu a tendência de ampliação que acompanha um ambiente que se beneficia de uma combinação de taxa de juros baixas, melhoras regulatórias e importantes correções de distorções que se acumulavam e limitavam o seu crescimento.
Mas há uma agenda a ser perseguida para que possamos consolidar de forma definitiva essa tendência positiva que, sabemos, deverá enfrentar as dificuldades de um país com grandes incertezas fiscais e enormes desafios estruturais. E essa é uma agenda fácil, se comparada com as grandes reformas necessárias em outros campos. Nesse contexto vale chamar a atenção para um conjunto de propostas que vem sendo discutidas desde 2018 pela Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (Anbima) em conjunto com a B3. O objetivo aqui é garantir continuidade ao processo de aprofundamento e desenvolvimento do mercado de capitais brasileiro.
A agenda Anbima/B3, cuja atualização acaba de ser apresentada, traz os quatro desafios que deverão nortear o fomento e o desenvolvimento do mercado de capitais nos próximos anos: i) a diversificação da base de investidores; ii) a ampliação da base de emissores; iii) o impulsionamento do mercado secundário de renda fixa; e iv) o fomento à negociação de títulos de dívida privada, a chamada securitização que hoje se vê concentrada nos setores imobiliário e agrícola. Temos ali um conjunto de contribuições que farão parte das discussões com governo, reguladores e legislativo e deverão nortear os avanços que se somarão ao que vimos observando recentemente.
Seguindo a definição da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), o mercado de capitais, juntamente com os mercados de crédito primário, de câmbio e o monetário, formam o que conhecemos como mercado financeiro. Neste, é o mercado de capitais aquele que exerce a função de viabilizar recursos de longo prazo para empresas, canalizando a poupança dos investidores para instrumentos privados de captação de recursos, ou seja, dando liquidez a títulos que são emitidos por empresas para viabilizar seus projetos de investimento e a expansão dos seus negócios.
Logo, é fundamental lembrar que quando falamos de crescimento e mais ainda de desenvolvimento econômico, o mercado de capitais emerge como protagonista e precisa, como tal, ser foco de constante evolução. A agenda está colocada e precisa avançar, apesar ou em função das enormes dificuldades que o Brasil enfrenta e ainda enfrentará – no curto, médio e longo prazos.
*Economista e sócia da Consultoria Oliver Wyman
Ana Carla Abrão: Fraternidade
‘A tristeza tem sempre uma esperança de um dia não ser mais triste não’
Quando escreveu o Samba da Bênção, há mais de meio século, Vinicius de Moraes, o branco mais preto do Brasil, não imaginaria um mundo tão cheio de ódio e divisão como o atual. Menos ainda uma situação como a que vivemos hoje, em que o isolamento e distanciamento físico se impõem, empurrando a alegria das noites boêmias para o campo de uma memória quase distante.
Mas de tudo, a maior das distâncias entre o Rio de Janeiro de então e o atual que agoniza, afundado em um mar de corrupção e violência, é a da desigualdade social. Mas o Brasil é o Rio de Janeiro. Entre os altos e baixos nos índices de concentração de renda e de redução da pobreza nesses tantos anos, voltamos a piorar e pioramos muito. Exclusão, marginalização e ausência de oportunidades para tantos são as características do Brasil de hoje. Temperadas por intolerância, polarização e a desinformação propagada por fake news.
É sobre tudo isso, ou melhor, sobre o combate a tudo isso que versa a nova encíclica papal. Não por coincidência, a 3.ª encíclica do papa Francisco foi tornada pública no dia em que se celebra São Francisco de Assis, o mais fraterno dos santos cristãos. Fratelli Tutti, a encíclica social recheada de conceitos econômicos, busca mobilizar não só os católicos, mas todas as pessoas do bem, em torno do que há de melhor nas nossas capacidades humanas: o encontro, a convergência, a empatia, a união, a compreensão, a inclusão e a fraternidade. Num mundo tão marcado pelo desencontro, nela o Samba da Bênção ressurge, lembrando-nos que, apesar disso, a vida é a arte do encontro – entre pessoas, entre povos, entre nações. E é desse encontro que um mundo melhor surge.
Embora cometa o erro de usar o termo neoliberalismo de forma excessivamente dogmática, o capítulo V da encíclica destaca a importância de termos políticas melhores. Políticas melhores são aquelas que permitem a geração de emprego, uma melhor distribuição de renda, a inclusão das minorias e o fim das injustiças. Contrapõem-se às ações populistas que visam à perpetuação de grupos no poder e ao interesse individual, lideranças transformadoras que pensam no bem comum e no desenvolvimento econômico e social. Aqui, segue o texto, a grande questão é o trabalho. Ser popular de verdade é dar condições para que todos possam se desenvolver e viver das suas capacidades, iniciativas e forças. Sem negar a importância das redes de proteção social nas sociedades genuinamente fraternas, seu caráter provisório e a necessidade de focalização são um destaque. Da mesma forma, o texto chama a atenção para a degeneração do termo “popular”, por líderes populistas em busca do interesse imediato. Tendo como única finalidade a garantia de votos, responde-se às exigências populares, sem que se avance na árdua tarefa de proporcionar às pessoas as oportunidades e os recursos para o seu desenvolvimento, de forma perene e sustentável.
Não, Fratelli Tutti não foi escrita para o Brasil em resposta à falta de apetite que vemos no governo atual em avançar numa agenda de reformas estruturais que nos devolva a capacidade de crescer e de gerar emprego e renda para uma população que empobrece a cada dia. Não, ela não foi escrita para colocar luz na incapacidade do governo e dos agentes públicos de atacar os privilégios e enfrentar grupos de interesse que jogam o País num impasse diário. Impasse que gera como resultado uma opção distributiva sempre cruel. Ela também não foi escrita para mostrar que a principal motivação para a ampliação do programa universal de renda básica, sem desenho e sem fonte clara de financiamento, é a eleição de 2022 e à custa de um país ainda mais pobre e capturado pelo clientelismo. Ela tampouco visa ao Brasil quando cita a importância da abertura entre os países, do acolhimento dos povos, da importância da sustentabilidade ambiental. O mesmo vale para o horror crescente que são a intolerância, o fomento ao ódio ou à agressividade que tomaram conta do debate. Não, ela não foi escrita para o Brasil, mas foi.
Fratelli Tutti clama por fraternidade e método. Fraternidade com método significa estabelecer relações pessoais, institucionais e de política pública que tenham por objetivo o bem comum e a proteção da democracia. Incluir, tolerar, reduzir as diferenças sociais, gerar oportunidades para todos e trabalhar por um mundo melhor é ser fraterno. No Brasil, infelizmente nunca estivemos tão distantes disso. Hoje somos mais intolerantes, menos fraternos e também mais desiguais. E por isso mesmo, mais tristes. Que o Samba da Bênção, que é só fraternidade, continue nos lembrando que “a tristeza tem sempre uma esperança de um dia não ser mais triste não”.
*Economista e sócia da Consultoria Oliver Wyman
Ana Carla Abrão: Como furar o piso
Deveríamos estar discutindo como redefinir nossa trajetória de gasto
Se fôssemos um país normal, estaríamos hoje discutindo – como o Reino Unido fez em 2008, pós-crise financeira que ameaçou jogar a Inglaterra na insolvência – como redefinir nossa trajetória de gastos públicos. Como lá, o governo brasileiro estaria apresentando um amplo projeto de cortes de gastos e realocação de despesas de forma a garantir a normalidade da economia, o apoio aos mais pobres e a reversão da trajetória de colapso fiscal que a manutenção da tendência atual certamente nos destina.
Paralelamente, também como lá, estaríamos discutindo uma ampla reforma administrativa para modernizar a máquina pública, torná-la mais eficiente, menos cara e muito, muito mais voltada para o cidadão – e não para a sua autoperpetuação. Para quem acha que isso tudo é contraditório, basta lembrar que o programa de reequilíbrio fiscal inglês partia do princípio de que havia como cortar e realocar gastos de forma a preservar os mais pobres e melhorar os serviços públicos. E assim foi feito. A premissa (que se verificou verdadeira) era que havia desperdício, falta de foco, privilégios e gastos públicos (muitos!) com baixo ou nenhum impacto econômico e social. Não só soa familiar como é.
Na Inglaterra de Cameron, o programa de reequilíbrio fiscal foi definido, apresentado e implementado com objetividade e clareza. A conta foi feita de trás para frente, definindo-se o tamanho do ajuste de acordo com patamares de endividamento que eliminassem as desconfianças quanto à solvência da dívida inglesa.
Parte do sucesso na execução do ajuste inglês se deve ao estabelecimento de uma “star chamber”, um comitê em que os membros do governo eram obrigados a justificar seus orçamentos para um grupo ministerial e de servidores escolhidos a dedo. Ali, os gastos eram desafiados para que cada área do governo explicasse suas linhas de despesa e justificasse os valores. Além disso, cada um deveria avaliar como poderia fazer mais com menos – e melhor. Daí para uma ampla reforma administrativa que diminuiu em 25% o número de servidores foi um pulo. Era o único caminho para chegar a melhores serviços públicos gastando menos e valorizando o bom servidor.
Algumas lições emergem do programa inglês. A primeira delas se refere à irrefutabilidade dos dados. A Inglaterra chegou ao final da crise com um déficit de quase 10% do PIB e com trajetória de gastos crescente. Não havia outro caminho senão agir. As ações poderiam se traduzir em aumento de impostos ou corte de gastos. Optou-se pelo segundo, com transparência e comunicação claras. Não se desperdiçou a oportunidade da crise e entendeu-se que momentos de mudança estão aí para que mudanças profundas de curso sejam feitas.
Mas no Brasil, em vez de fazermos essa ampla discussão, explicitando a alocação dos gastos públicos, desafiando o Orçamento que tende a ser sempre a repetição do número do ano passado acrescido de algum porcentual, e definindo prioridades com o objetivo de buscar o desenvolvimento econômico e a redução da desigualdade social, o que fazemos é pressionar pelo fim do teto de gastos. Como se aumento de gastos fosse diminuir – e não ampliar – a atual ineficiência.
E a pressão vem também de dentro do governo, num diapasão que conhecemos muito bem: fura-se o teto para gastar com investimento público em infraestrutura e para criar um programa de transferência de renda universal e, porque ninguém é de ferro, para manter a trajetória crescente de despesas de pessoal e os benefícios fiscais intactos por mais alguns anos. E, claro, para garantir também a reeleição do presidente daqui a dois anos e meio, certo? Errado, porque o Brasil vai quebrar e todos terão uma conta para pagar. Os pobres mais que os ricos.
Mais gasto, no meio de tanto desperdício, significa que tudo continuará como está. Ou seja, os canais de distribuição estão aí para garantir que os recursos adicionais chegarão ao mesmo destino de sempre: aos mesmos grupos que se apropriam do Orçamento há décadas e que resistem bravamente à discussão distributiva e à correção de injustiças que levariam, invariavelmente, à redução dos seus privilégios.
Voltando à Inglaterra dos anos 2008 e aproveitando a discussão orçamentária deste ano, o governo brasileiro deveria seguir o exemplo britânico. Poderia estabelecer uma meta de ajuste fiscal de longo prazo, criar uma “star chamber” que rediscuta a divisão do Orçamento e exigir que cada área do governo defenda a sua parcela de gastos e explique como esses vão gerar mais emprego, mais renda e menos desigualdade social no Brasil.
Numa discussão como essa seria difícil defender que a Defesa deve receber mais recursos que a Educação, ou que salários de servidores devam representar 13% do PIB. Mas é numa discussão como essa, feita de forma clara, que se criam as condições para que as medidas fura-piso ganhem o espaço que hoje está sendo ocupado pelos fura-teto.
*ECONOMISTA E SÓCIA DA CONSULTORIA OLIVER WYMAN
Ana Carla Abrão: Negacionismo
A forma escapista do presidente de ignorar a realidade tem nos feito perder tempo – e vidas
Números são um problema. Eles insistem em expor a realidade, em particular, quando queremos negá-la. Na atual crise de saúde tem sido assim. O Brasil se aproxima da triste marca de 65 mil mortos pela covid-19. A epidemia, ao mesmo tempo que amaina em alguns Estados, avança de forma impiedosa em outros, revelando a verdade: não se trata apenas de uma “gripezinha”. Haveremos de conviver com ela por muito tempo ainda e a administração dessa convivência será determinante no nosso futuro.
Na economia, os números também assustam. A atividade interrompida, por receio da contaminação ou por medidas de restrição, mostra seus reflexos nos números do trimestre que se encerrou. A algum vigor dos primeiros meses do ano, contrapõem-se a realidade do desemprego e da quebra de empresas pequenas, médias e grandes. Trabalhadores formais sofrem com o fechamento de vagas. Os informais sofrem duas vezes mais, conforme cálculos do professor Hélio Zylberstajn, publicado em matéria do Estadão de ontem. Como consequência do enfraquecimento do mercado de trabalho e do aumento dos pedidos de recuperação e falência, o mercado de crédito reage com volumes menores e custos maiores. Afinal, o risco aumentou.
No campo fiscal, quer seja pelo lado do gasto (aumento), quer seja pelo lado do Produto Interno Bruto – PIB (queda), as perspectivas para a relação dívida/PIB não são nada alvissareiras. Devemos beirar os 100% neste ano, renovando a tendência de crescimento pela próxima década segundo a Instituição Fiscal Independente (IFI). Essa trajetória coloca pressão sobre outro número: o juro básico. O ineditismo de uma taxa Selic baixa pode estar comprometido por um descontrole fiscal que só não acontecerá se houver consenso em torno de uma agenda de ajuste e responsabilidade fiscais.
Essa é a realidade. O desafio está em saber enfrentá-la e a sabedoria em admiti-la, tanto no campo da saúde, quanto no da economia. Para isso, a prioridade é, e continuará sendo, o controle da epidemia e a garantia de atendimento de saúde aos cidadãos. Ao menos até que uma das aclamadas vacinas nos salve. Na economia, assim como na saúde, não se pode esperar de braços cruzados que também a “gripezinha” da recessão seja curada pelas cloroquinas fiscais e monetárias. Aqui, nem o argumento da boa forma sobrevive.
Na saúde o governo federal já perdeu o pé – e o timing. Coordenação de esforços, definição clara de protocolos, eficiência na administração de distribuição de medicamentos, de equipamentos de proteção individual (EPIs) e de ventiladores e a implementação de uma estratégia de testagem maciça deveriam ter sido prioridades. Não foram. O negacionismo custou e ainda custará vidas que à história caberá mostrar responsabilidades e demonstrar o heroísmo de governadores e prefeitos que não cederam às falácias federais.
Na economia, ao contrário, ainda há tempo. As prioridades aqui são claras, os diagnósticos estão feitos e boa parte das propostas está colocada. Assim como as emergenciais saíram do papel, há que se pensar agora nas agendas estruturais de recuperação econômica e social. A começar pela revisão da rede de proteção social, visando à redução da pobreza e ao apoio à população da base da pirâmide. A epidemia escancarou aquela que é nossa principal mazela e que deveria, a partir daqui, ser a prioridade primeira: a redução da nossa vergonhosa desigualdade social.
Na sequência, e no mesmo tom, vem a reforma administrativa. Melhorar a qualidade dos serviços públicos não é só melhorar a alocação de recursos. Educação, saúde e segurança públicas de qualidade e maior eficiência da máquina salvam vidas, geram oportunidades e aumentam a produtividade. Isso ficou ainda mais claro agora que, infelizmente, tantas vidas foram perdidas e tantos empregos ficaram pelo caminho pela ineficiência de processos burocráticos, pela incapacidade de execução e monitoramento das políticas desenhadas ou da falha em fazer o recurso chegar onde e a quem precisa. Há ainda a reforma tributária, corrigindo a regressividade de uma taxação perversa, buscando eficiência e eliminando tratamentos tributários diferenciados e de efeitos distributivos indesejados. Além dessas grandes reformas – e do inadiável atendimento à crise dos subnacionais, há um conjunto de microrreformas voltadas ao ambiente de negócios, ao fortalecimento institucional e de contratos e à redução do Estado via privatizações e concessões que precisam avançar.
Não falta o que fazer, nem tampouco se ignora a direção. Mas o negacionismo presidencial, essa forma escapista de ignorar a realidade, tem nos feito perder tempo – e vidas. Fechar os olhos para os números da economia equivale a negar as evidências. Tão negacionista – e irresponsável – quanto vetar a obrigatoriedade do uso de máscaras em locais públicos ou dizer que é culpa dos governadores os números que aí estão, é acreditar que a economia vai se recuperar sem que uma agenda clara de reformas seja colocada a público e pactuada com o Congresso e com a sociedade.
*Economista e sócia da Consultoria Oliver Wyman.
Ana Carla Abrão: Paciência
Na ausência de planejamento, a recuperação no Brasil deverá frustrar as expectativas
O mundo parou, o Brasil parou. A atividade econômica foi desligada pela pandemia e agora começa a ser religada – de forma mais ou menos organizada, a depender da existência ou não de um plano estruturado de gestão das medidas de isolamento.
Nesse processo de volta, várias pesquisas estão sendo feitas com o objetivo de se entender o que mudou no comportamento das pessoas e qual será a intensidade da retomada econômica. Há algo de boa notícia em boa parte delas. Assim como há uma clara alteração nos padrões de comportamento das pessoas. Essas alterações deverão afetar de forma relevante as decisões econômicas dos agentes.
Pelo lado da boa notícia, há alguns sinais de recuperação da confiança. Eles estão presentes, por exemplo, no Observatório da Febraban, um tracking nacional realizado entre 1.º e 3 de junho, com uma amostra de 1.000 entrevistados que visa a representar a população adulta brasileira bancarizada. Os resultados não deixam de surpreender positivamente ao sugerirem que 49% dos entrevistados acreditam que suas finanças voltarão ao que eram antes da pandemia no prazo de até 1 ano. Desses, 21% acham que isso acontecerá ainda este ano. Quando a pergunta se volta para o Brasil, percebe-se um otimismo menor, mas algo positivo se considerarmos que 24% acreditam numa recuperação da economia brasileira em até 1 ano e outros 43% em 2 anos, ou seja, até 2022. Homens e jovens se mostram mais otimistas nas duas dimensões. Certamente porque também foram menos impactados pela crise que reforçou as desigualdades sociais, em particular as de gênero.
O Observatório segue com outras informações onde também surgem sinais de que há uma demanda que os meses de isolamento não fez sumir. Dentre os entrevistados, 14% afirmam que seu volume de compras vai crescer e 15% pretendem buscar financiamento para adquirir um imóvel residencial. Outros 14% declararam intenção de comprar um carro ou uma moto financiados. O crédito consignado aparece como a linha de desejo para 15% dos entrevistados. Desejo que certamente deixará de ser atendido se prosperar o Projeto de Lei 1.328/2020 de autoria do senador Otto Alencar (PSD-BA) e aprovado no Senado Federal na última semana. Assim como serão afetados todos os demais que indicaram a intenção de buscar linhas de financiamento e os outros 16% que demonstram intenção de recorrer a empréstimos bancários. Sim, o populismo sai muito caro e prejudica a população.
Na dimensão comportamental, segue o Observatório, 46% da população bancarizada tende a priorizar as soluções digitais, ante apenas 14% que vão se manter fiéis ao atendimento presencial. No consumo, as respostas apontam na direção de manutenção ou aumento de hábitos, como as idas ao supermercado (78%), a salões de beleza (66%) ou a comércios de rua (55%). O resultado é contudo ambíguo quando a pergunta se volta a bares e restaurantes ou shoppings, com parcelas quase iguais das pessoas entrevistadas afirmando que vão manter/aumentar ou diminuir sua frequência nesses serviços.
Há outras pesquisas circulando, todas com algum grau de otimismo e sinalizando mudanças comportamentais relevantes. A pesquisa feita pela revista Fortune, com presidentes das 500 maiores empresas mostra uma expectativa de recuperação um pouco mais lenta, iniciando-se em 2021, mas se concentrando no início de 2022. Ali também, há claras indicações de mudanças comportamentais, em particular no que tange a volta ao local de trabalho, à retomada das viagens a trabalho e à aceleração digital, todos fatores que continuarão impondo desafios às companhias do mundo todo e com grandes impactos em alguns setores econômicos.
Os desafios são muitos aqui e lá fora. Mas na ausência de planejamento, a recuperação no Brasil deverá frustrar as expectativas daqui e ficar aquém da realidade de lá. A mesma paciência que tem nos mantido em isolamento social e tantas vidas já salvou deveria se reverter em impaciência com a ausência de uma coordenação, pelo Executivo, das agendas nos diversos níveis federativos e entre os três Poderes constituídos.
Uma crise dessa magnitude exige que o Executivo defina e apresente à sociedade com clareza quais são suas prioridades no Parlamento e quais serão as ações nas áreas social, econômica e de crédito para tirar o País da crise. No campo federativo, há que se discutir como Estados e municípios poderão sair da crise fiscal que já os assolava e que agora se agravou. Não há como contar só com o otimismo do mercado e as expectativas positivas da população como motores de recuperação. À economia que já vinha frágil, juntou-se o agravamento das condições sociais e o tombo que jogou produtividade e crescimento para o campo negativo. A continuar esse quadro, nem as expectativas terão paciência.
Ana Carla Abrão: 'Ensaio sobre a cegueira'
A história tem inúmeros casos em que mudar os fatos foi uma saída vergonhosa
O isolamento imposto pela pandemia da covid-19 tem motivado várias reflexões. Numa dimensão individual, a necessidade de distanciamento físico nos obrigou a reorganizar os métodos de trabalho, trouxe as famílias de volta ao convívio e nos provocou no sentido de rever prioridades. Nesse processo, muitos resgataram uma leitura (ou quem sabe várias) relacionada a alguma grande peste que assolou o mundo – na realidade ou na ficção. Relemos Gabriel Garcia Marques, Albert Camus, José Saramago e tantos outros.
No cinema, revimos O Sétimo Selo ou, para os que são mais novos, Contágio ou algum outro filme que nos remeta a essa situação inesperada e surreal que vivenciamos hoje. Mas nem mesmo as obras mais perturbadoras conseguem refletir a nossa atual situação, que teima diariamente em ir além de várias dessas trágicas descrições ficcionais.
Nossas mazelas são maiores e mais profundas e se expõem agora como nunca. A primeira delas se refere à nossa inaceitável condição social, onde a desigualdade de renda se escancara na assimetria dos impactos econômico, social e de saúde a depender da classe de renda. Isso gerou, felizmente, uma mobilização filantrópica sem precedentes da sociedade civil e questionamentos sobre a eficácia da nossa rede de proteção social. Esperemos que também se reflita em foco naquele que é o nosso principal problema estrutural e ganhe prioridade na elaboração de políticas públicas – e não só as de complementação de renda.
Pelo lado dos orçamentos públicos, quedas inéditas de arrecadação e mudanças nas prioridades – com os gastos de saúde assumindo protagonismo – impõem um desafio adicional onde o desequilíbrio já era grande. Receitas e despesas terão de ser revistas à luz de uma nova realidade econômica, mas também com base nessas novas prioridades e no aprofundamento da crise. Não deixa de ser uma oportunidade para corrigir problemas estruturais. Mas só para os gestores que se dispuserem a abraçá-la.
Mas é no atendimento de saúde que ainda estará, por algum tempo, o principal foco. Afinal, a epidemia no Brasil já deixa um rastro trágico de cerca de 700 mil casos de contaminação e mais de 36 mil óbitos e ainda continua a se expandir. Embora tenha se espalhado de forma heterogênea pelo território brasileiro, é sabido que o avanço ainda está acelerado em algumas regiões e a atual subnotificação deve multiplicar esses números por muito. Ou seja, a realidade é muito pior. Por isso, e por alguns outros motivos, o mundo nos observa com um misto de pena e temor. Deveriam reconhecer o controle conquistado e as vidas poupadas até aqui por Estados como São Paulo e distinguir a falta de coordenação do governo federal, do esforço e planejamento de vários governadores e prefeitos.
Mas o Brasil é um só aos olhos do mundo. E quem fala pelo País é o presidente da República, que ainda hoje não reconhece a gravidade da pandemia, se recusa a seguir as orientações de higiene mundialmente consagradas, insiste na cura milagrosa de um medicamento sem comprovação científica de eficácia e manda, diariamente, sinais contrários às recomendações de distanciamento social. Ou seja, ao contrário de outros líderes que em algum momento reviram seu ceticismo, movidos que foram pelas evidências, o presidente Jair Bolsonaro continua negando os fatos. E agora ameaça mudá-los.
A história tem inúmeros casos em que mudar os fatos foi uma saída vergonhosa para quem não quer reconhecê-los para evitar o constrangimento do erro. Aqui no Brasil estamos a viver essa triste repetição. Desde a semana passada, por uma determinação do presidente da República, os dados referentes à covid-19 tiveram sua divulgação atrasada para evitar que fossem notícia. Agora, sob o pretexto de que há fraudes ou manipulação dos dados, as informações estão sendo revistas. Tivesse o governo federal exercido o seu papel de organizar o processo de coleta, dar transparência às informações, garantir uma política ampla de testagem e coordenado ações nacionais de combate à pandemia, teríamos mais clareza em relação aos dados e menor incerteza sobre o número correto de contaminados e mortos. Mas, bem sabem os que lidam com as ações de resposta, se há problemas com os dados eles estão no campo da subnotificação – e não o contrário.
De toda a literatura que ressurge agora nos tempos de isolamento, a que mais nos reflete talvez seja Ensaio sobre a Cegueira e seu mar de pessoas vulneráveis, contaminadas por uma cegueira branca. Numa triste alusão à epidemia, à nossa condição social e à cegueira a que querem nos condenar, peço licença aqui para reproduzir Saramago e finalizar afirmando que “Penso que não cegamos, penso que estamos cegos. Cegos que veem. Cegos que, vendo, não veem”.
*Economista e sócia da Consultoria Oliver Wyman.
Ana Carla Abrão: Rastro e risco
Milhares de vidas foram poupadas graças às medidas de isolamento social
O governo do Estado de São Paulo divulgou, na última quarta-feira, o plano de modulação da quarentena no Estado. O Plano São Paulo, anunciado pelo governador João Doria, estabelece cinco faixas de risco nas quais estarão classificadas todas as regiões do Estado. Dado que o vírus não respeita fronteiras municipais ou de regiões administrativas, aqui região equivale a “região de saúde”. Busca-se assim compatibilizar a flexibilização das medidas de isolamento – e o consequente impacto delas – com a capacidade de distribuição de recursos e infraestrutura instalada de saúde administradas pelo governo estadual.
O plano se assenta em cinco pilares. O primeiro deles se baseia em indicadores que medem as duas preocupações fundamentais nessa pandemia: a capacidade de oferecer atendimento à população que chega às enfermarias e, principalmente, às UTIs disponíveis no Estado, e o ritmo de evolução da contaminação. A ideia é equilibrar, em cada região, os recursos hospitalares disponíveis com o estágio da epidemia. A visão regional é, portanto, o segundo pilar, refletindo a heterogeneidade da epidemia no Estado.
Capacidade ociosa e contaminação descontrolada significam que a região não pode evoluir na direção da flexibilização e pode também significar volta das restrições ao funcionamento de setores previamente liberados. Vale também o vice-versa: contaminação controlada com sistema de saúde pressionado também indica que a flexibilização precisa de mais tempo para acontecer, ou será necessário retornar aos níveis anteriores (elevados) de isolamento social.
A partir daí, as regiões são classificadas em diferentes faixas de risco e avança-se nas duas dimensões seguintes: (i) definição dos setores a serem reabertos em cada faixa e (ii) protocolos a serem seguidos. Aqui foram usados critérios de impacto setorial da epidemia, baseados em produto e emprego e também em risco ocupacional de cada atividade a ser reaberta.
Tudo isso baseado em trabalho exemplar elaborado pela Fundação Instituto de Pesquisas (Fipe), liderada pelo economista Eduardo Haddad, e cujas análises permitiram que pudéssemos agregar a visão econômica às restrições de saúde. Protocolos gerais e específicos levam em conta essas dimensões e visam a controlar o risco de contágio e a permitir uma reabertura mais segura. Mas terão de ser seguidos à risca. Gradualismo e controle são as palavras de ordem. Se ausentes, o caminho de volta às restrições está pavimentado, é parte do plano e será usado, conforme afirmaram o governador João Doria e o prefeito da capital, Bruno Covas, no anúncio do plano.
Mas, finalmente – e não menos importante –, há o pilar de testagem. Esse, sim, o farol de monitoramento da epidemia. A identificação e o isolamento de casos assintomáticos são o que permitem uma resposta rápida e eficaz em qualquer uma das duas direções possíveis: de continuidade no processo de flexibilização ou de volta às restrições. A ampliação na testagem – e, consequentemente, uma maior precisão nas estimativas da taxa de transmissão (Rt) – levará à melhora nas previsões da curva epidêmica e à maior capacidade de rastrear e tratar eventuais novos focos de contaminação.
Aqui, como foi no início com respiradores, máscaras e cestas básicas, o setor privado e a sociedade civil poderão fazer toda a diferença. Com grandes empresas abraçando essa causa, aderindo aos protocolos de testagem e colocando em prática uma ampla ação visando à identificação e ao isolamento de pessoas infectadas dentre os seus funcionários, poderemos avançar mais rápido e de forma mais segura.
Se, além disso, também adotarem pequenos fornecedores e empresas parceiras, inserindo-os nos seus programas de testagem, muito melhor. Se, adicionalmente, garantirmos a ampliação de programas de testagem gratuita em comunidades carentes e de trabalhadores informais, poderemos atingir volumes impensáveis de testes comparativamente à situação em que o setor público atua sozinho, com todas as limitações conhecidas.
Estamos, após quase 70 dias de quarentena no Estado de São Paulo, nos movendo na direção de uma flexibilização consciente e gradual. Ela será mais segura e numa só direção quanto maior for a nossa capacidade de administrar os riscos envolvidos numa abertura, mesmo que gradual. Houve grandes conquistas até aqui. Milhares de vidas foram poupadas graças ao sucesso das medidas de isolamento social e à ampliação e maior eficiência no atendimento de saúde no Estado e na capital.
O Plano São Paulo tem como objetivo fazer essa transição entre a fase de resposta aguda e emergencial para a fase da administração e do controle desses riscos sem botar a perder essas conquistas. Daí seus cinco pilares. Eles se refletem na identificação dos riscos, no gradualismo da abertura, na adoção dos protocolos de higiene, na heterogeneidade da epidemia e na testagem e rastreamento. Este último, que deve agora ganhar ainda mais foco, surge do entendimento de que seguir o rastro e controlar o risco sempre andaram juntos. Aqui e hoje, mais do que nunca.
*Economista e sócia da Consultoria Oliver Wyman.