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O diplomata americano Thomas Shannon, ex-embaixador no Brasil, durante entrevista em 2016 - Pedro Ladeira - 17.dez.2016/Folhapress

Bolsonaro estudou Trump e parece preparar caminho para questionar eleições, diz ex-embaixador

Ricardo Della Coletta*, Folha de São Paulo

Ex-embaixador no Brasil e referência nos Estados Unidos para temas da América Latina, o diplomata Thomas Shannon, 64, diz à Folha que Jair Bolsonaro (PL) parece preparar o caminho para questionar o resultado das eleições de outubro.

Segundo ele, o presidente brasileiro e sua equipe estudaram a estratégia adotada pelo ex-líder americano Donald Trump, que em 6 de janeiro de 2021 insuflou uma invasão do Capitólio para tentar reverter a derrota no pleito presidencial.

Hoje aposentado da diplomacia, Shannon argumenta que Washington não teria problema em trabalhar com um eventual novo governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), hoje líder nas pesquisas, e diz que o Brasil ficaria isolado no caso de uma ruptura institucional.

O que o sr. achou da reunião de Bolsonaro com embaixadores para propagar mentiras sobre o sistema eleitoral? 

Não entendo por que o presidente escolheu falar com o corpo diplomático sobre esse tema, mas acho que ele indicou um desejo de explicar para essa comunidade em Brasília —uma das maiores no hemisfério Ocidental, portanto ele falou para o mundo— por que não confia no sistema eleitoral.

Acho totalmente surpreendente que um presidente, eleito por esse sistema e que chefia um governo que representa a vontade popular, coloque em questão o sistema eleitoral do próprio país. E fazer essa argumentação para uma audiência diplomática transforma o surpreendente em perigoso. Ele parece estar preparando o caminho para não aceitar o resultado das eleições.

Acredita que isso confirma a análise de que Bolsonaro está imitando a estratégia de Trump? 

Acredito que Bolsonaro e sua equipe estudaram muito atentamente os eventos de 6 de Janeiro [de 2021] e chegaram a uma conclusão. Primeiro, que Trump fracassou porque dependia de uma multidão pouco disciplinada e não tinha apoio institucional —de lideranças partidárias, tribunais, Forças Armadas. Bolsonaro e sua equipe avaliaram que, na hipótese de tentar algo parecido, precisariam de apoio institucional.

No entanto, na eleição de Joe Biden, embora no voto popular tenha ocorrido uma diferença de 7 milhões de votos, no Colégio Eleitoral houve um resultado bem apertado, o que permitiu que Trump argumentasse que houve fraude. No Brasil as pesquisas indicam no momento que a disputa não está apertada. Então a pergunta a ser feita é: qual o plano do presidente Bolsonaro? Esperar a votação ocorrer e declará-la inválida? Ou impedir que a eleição ocorra ao desqualificar todo o processo agora?

O fato de Bolsonaro ter algum apoio institucional lhe dá mais chances de ser bem-sucedido numa eventual tentativa de ruptura? 

Depende muito das instituições brasileiras e como elas vão responder. Recai sobre elas a tarefa de deixar claro que têm confiança no sistema eleitoral brasileiro.

E o sr. vê essa reação institucional ocorrendo? 

Está ganhando corpo, à medida que as pessoas entendem a gravidade da situação. Eu não sou brasileiro, não vou votar. Cabe aos brasileiros e às instituições brasileiras decidir o caminho que o país vai tomar. O sistema eleitoral brasileiro guiou o país no período democrático desde a década de 1980, ajudou o país a atravessar eleições presidenciais, dois impeachments, foi capaz de garantir transições pacíficas.

É um sistema que ganhou o respeito do mundo, e é chocante que nesse momento não tenha o respeito do presidente. É um erro criticar o processo eleitoral brasileiro porque abre espaço para que as pessoas tentem questionar a eleição por meio da violência, não pelos canais normais e pelos tribunais. Isso não deveria ser aceito num líder político.

A embaixada americana publicou uma nota em que manifesta confiança no processo eleitoral brasileiro. Como interpreta esse texto? 

Os EUA têm grande respeito pelo Brasil e pela democracia do país e estão preparados para trabalhar com qualquer liderança que o povo brasileiro escolher.

O comunicado afirma que o relacionamento dos dois países tem como fundamento compromissos democráticos e valores comuns. Também coloca que os EUA respeitam as instituições brasileiras e o processo eleitoral e, nesse sentido, não concordam com as alegações de Bolsonaro.

Há no Brasil analistas que argumentam que a reação internacional seria suficiente para impedir uma ruptura institucional. O sr. concorda?

 Cabe aos brasileiros protegerem sua democracia, assim como cabe aos americanos protegerem a nossa. Não podemos depender de britânicos, franceses ou japoneses. Mas o que o mundo está dizendo é que é falso o argumento de que o sistema eleitoral brasileiro é fraudulento.

Quando você pensa no que poderia ocorrer no caso de ruptura, estamos falando sobre consequências contra ações que não são democráticas. O que a comunidade diplomática está tentando fazer é garantir que o Brasil não chegue a esse ponto.

Que tipo de consequências uma ruptura poderia gerar? Há no governo quem diga que o Brasil é grande demais para ser isolado do mundo? 

Na minha experiência, o Brasil não aceita ameaças. É um erro ameaçar o Brasil. É por isso que países não estão abordando o tema para falar de consequências em caso de ruptura. O que os países estão fazendo é dizer aos brasileiros: seu sistema eleitoral funciona bem e temos confiança nele. Estão oferecendo seu apoio.

Mas se a argumentação no governo Bolsonaro é que o Brasil é importante demais ao ponto de poder fazer o que quiser, isso simplesmente não é verdade. Veja o que está ocorrendo com a Rússia. É uma economia enorme, o maior território do mundo, um país em que os EUA gastaram 30 anos construindo uma relação econômica. E tudo acabou num instante devido ao comportamento [da Rússia, que invadiu a Ucrânia]. Se houver ruptura constitucional no Brasil, o colapso da ordem democrática, o Brasil ficaria isolado, ao menos no hemisfério Ocidental e na Europa. Sob muita pressão política e econômica.

No recente encontro entre Bolsonaro e Biden, a imprensa reportou que o líder brasileiro retratou Lula como uma ameaça aos interesses americanos. Esse tipo de mensagem é efetivo?

 Enquanto o líder brasileiro for escolhido livremente pelo sistema democrático, os EUA trabalharão com quem o povo brasileiro escolher. No caso de Lula, ele foi presidente por oito anos; sua sucessora [Dilma Rousseff] esteve no cargo por quase seis. São 14 anos de governo do PT. Os EUA conhecem bem e estão familiarizados com Lula e seu partido. Foi desenvolvida uma relação de trabalho muito boa, assim como com todos os presidentes eleitos democraticamente no Brasil. Até agora, claro.

O quão preocupado o governo Biden está com a instabilidade institucional causada por Bolsonaro? 

O fato de a embaixada ter divulgado um comunicado, seguido de manifestação do porta-voz do Departamento de Estado [Ned Price], significa que o governo dos EUA está muito preocupado.

Republicanos no Senado barraram a aprovação da embaixadora indicada para o Brasil, Elizabeth Bagley. Isso limita a capacidade do governo dos EUA de, nas eleições, manifestar suas posições?

 Temos uma excelente embaixada no Brasil, e nosso encarregado de negócios [Douglas Koneff] é um servidor muito bom. Ele tem relatado a situação a Washington e expressado as visões dos EUA [ao governo Bolsonaro]. Dito isso, num mundo definido pelo protocolo, um embaixador é melhor do que um encarregado de negócios. Elizabeth Bagley era uma boa escolha. O fato de o Comitê de Relações Exteriores não ter aprovado seu nome foi lamentável. E tem um impacto muito negativo em razão da importância da relação [dos dois países] e do momento. Os republicanos sabiam disso.

*Texto publicado originalmente na Folha de São Paulo.


El País: Argentina legaliza o aborto e se põe na vanguarda dos direitos sociais na AL

Legisladores debateram projeto de lei de interrupção voluntária da gravidez que permite o aborto livre até a 14ª semana de gestação e deram vantagem da pauta apoiada pelo Governo Fernández

Mar Centenera e Federico Rivas Molina, El País

É lei. Na Argentina, as mulheres que decidem interromper a gravidez podem fazê-lo de forma legal, segura e gratuita no sistema de saúde. O Senado aprovou na madrugada desta quarta-feira a legalização do aborto até a semana 14 da gestação por 39 votos a favor, 29 contra e uma abstenção. Enterrou assim a lei em vigor desde 1921, que considerava a prática crime, exceto em caso de estupro ou risco de vida da mãe. Nas ruas, a maré verde, a cor símbolo do feminista no país, explodiu de alegria.

Com a nova legislação, a Argentina está mais uma vez na vanguarda dos direitos sociais na América Latina. A partir desta quarta-feira é o primeiro grande país da região a permitir que as mulheres decidam sobre seus corpos e se querem ou não ser mães, como já fizeram Uruguai, Cuba, Guiana e Guiana Francesa (e regiões como a Cidade do México). Nas demais, há restrições totais ou parciais, como no Brasil. A iniciativa, aprovada na Câmara dos Deputados há duas semanas, prevê que as gestantes tenham acesso ao aborto legal até a 14ª semana após a assinatura do consentimento por escrito. Também estipula um prazo máximo de dez dias entre a solicitação de interrupção da gravidez e sua realização, a fim de evitar manobras que retardem o aborto.

A pressão de grupos religiosos e conservadores para manter a criminalização do aborto vinha sendo muito forte, mas não suficiente para repetir o resultado de 2018, quando o Senado rejeitou o projeto. Ainda assim, uma forte ofensiva legal é esperada. No país do Papa Francisco, a Igreja ainda tem muito prestígio. E não só porque trabalha em conjunto com o Estado no atendimento aos mais pobres, por meio de centenas de refeitórios populares. A proximidade de Francisco com o presidente Alberto Fernández, que acabou apoiando a legalização, é evidente, e a questão do aborto sempre foi um território incômodo de disputas. A praça em frente ao Congresso era uma prova disso. No lado celeste, exibindo as cores do país, onde os grupos antiaborto se reuniam, os padres celebravam missas diante de altares improvisados e os manifestantes carregavam cruzes e rosários, fotos de ultrassom e um enorme feto de papelão ensanguentado. 

Ao contrário da Câmara dos Deputados, onde a aprovação foi folgada, o resultado no Senado mais conservador era mais incerto. Mas desde o início a expectativa acompanhou os verdes. Os números eram muito equilibrados e tudo dependia de um punhado de indecisos, que imediatamente passaram de cinco para quatro: um senador previu que votaria pró-aborto após um mínimo de ajustes no texto da lei. Horas depois, dois senadores e dois senadores também anunciaram seu voto positivo e elevaram os votos afirmativos para 38, ante 32 negativos. Os contrários, além disso, haviam perdido dois votos antes de partir: o do senador e ex-presidente Carlos Menem, 90, em coma induzido por uma complicação renal; e o do ex-governador José Alperovich, de licença até 31 de dezembro por denúncia de abuso sexual.

 O triunfo do “sim” à lei logo se definiu, ainda antes da meia-noite, quando faltavam ainda quatro horas de discursos. “Quando eu nasci, as mulheres não votavam, não herdávamos, não podíamos ir à universidade. Não podíamos nos divorciar, as donas de casa não tínhamos aposentadoria. Quando nasci, as mulheres não eram ninguém. Sinto emoção pela luta de todas as mulheres que estão lá fora agora. Por todos elas, que seja lei”, declarou a senadora Silvia Sapag durante o debate, em uma síntese do tom dos discursos verdes.

“Queremos que seja lei para que mais nenhuma mulher morra por aborto clandestino. Por María Campos. Por Liliana. Por Elizabeth. Por Rupercia. Por Paulina. Por Rosario. Pelas mais de 3.000 mulheres que morreram por abortos clandestinos desde o retorno da democracia”, afirmava do lado de fora Jimena López, de 27 anos, com um cartaz que dizia “Aborto legal é justiça social”. Entre os que se opunham à lei, muitos criticaram o momento do debate, em meio à pandemia de covid-19, e outros citaram argumentos religiosos, como María Belén Tapia: “Os olhos de Deus estão olhando para cada coração neste lugar. Bênção se valorizamos a vida, maldição se escolhemos matar inocentes. Eu não digo isso, diz a Bíblia pela qual eu jurei”.

Nas províncias do norte do país, aquelas mais influenciadas pela Igreja Católica e grupos evangélicos, a maioria dos legisladores se opôs. Na capital argentina e na província de Buenos Aires, por outro lado, quase todos os representantes apoiaram a legalização, qualquer que fosse o partido.

Durante 99 anos, na Argentina foi legal interromper uma gravidez em caso de estupro ou risco para a vida ou saúde da mãe, como no Brasil (que também autoriza aborto em caso de anencefalia). Em todos os outros casos, era um crime punível com prisão. Ainda assim, a criminalização não foi um impedimento: de acordo com estimativas não oficiais, cerca de meio milhão de mulheres fazem abortos clandestinos a cada ano. Em 2018, 38 mulheres morreram de complicações médicas decorrentes de abortos inseguros. Cerca de 39.000 tiveram que ser hospitalizadas pela mesma causa.

“Obrigar uma mulher a manter sua gravidez é uma violação dos direitos humanos”, afirmou a senadora governista Ana Claudia Almirón, da província de Corrientes, no norte do país. “Sem a implementação de educação sexual integral, sem a previsão de anticoncepcionais e sem um protocolo de interrupção legal da gravidez, as meninas correntinas são obrigadas a parir aos 10, 11 e 12 anos”, denunciou Almirón.

“Em 2018 não alcançamos a lei, mas conscientizamos sobre um problema: hoje existem mulheres que abortam em condições precárias e insalubres”, afirma Mariángeles Guerrero, integrante da Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto Legal, Seguro e Gratuito. “O aborto deixou de ser um assunto tabu que se falava em voz baixa e passou a ser um assunto que tinha de ser debatido politicamente para garantir condições seguras para a realização destes abortos”, acrescenta. Em 1921, quando a lei atual foi aprovada, a Argentina estava na vanguarda regional dos direitos das mulheres, mas a falta de debates posteriores a fez perder a disputa. Agora, o país recuperou o terreno perdido.


Monica De Bolle: A hipóxia da América Latina

A economia da região já estava abalada antes da pandemia; Brasil e México estavam com as contas desarranjadas

Na lista de países com o maior número de mortes diárias por milhão de habitantes, vidas ceifadas pela covid-19, os dez primeiros lugares pertencem à América Latina. Na lista de países com o maior número de casos diários por milhão de habitantes, há sete países da região entre os mais afetados. O primeiro lugar não pertence aos Estados Unidos, mas à Argentina. O segundo lugar é da Costa Rica, o quarto lugar é do Peru, o quinto do Panamá, o sexto da Colômbia, o sétimo do Brasil. Os EUA aparecem na nona posição, já que a décima pertence ao Chile.

A pandemia chegou à região em fevereiro de 2020, tendo, assim, dado dois meses para que os governos se preparassem. Poderiam ter usado esse tempo para traçar planos de resgate econômico, estratégias de saúde pública, medidas para proteger as centenas de milhões de pessoas vulneráveis da região. Do desperdício emergiram os pulmões dilacerados da América Latina.

Foram muitos os erros. Lideranças frágeis, instituições em crise permanente, presidentes como Andrés Manuel López Obrador no México e Jair Bolsonaro no Brasil que negaram com veemência a gravidade de um vírus novo e letal sobre o qual pouco se sabia. O caso mexicano surpreende bem mais do que o brasileiro já que López Obrador, apesar de algumas limitações, fez campanha como “defensor dos pobres” e prometeu uma agenda de priorização da proteção social em seu país. Até agora, pouco fez. Bolsonaro…bem, com esse já aprendemos tudo o que não devemos esperar que faça.

O resultado do fracasso latino-americano está estampado nos números. Até o dia 11 de setembro contabilizavam-se quase 7 milhões de casos de covid-19 nas 5 maiores economias da região, a saber: Brasil, México, Colômbia, Argentina, e Peru. São centenas de milhares de mortos, sem contar que os números estão subestimados devido à má qualidade da coleta de informações, a falta de testagem, a ausência de protocolos para o rastreamento de contatos. As quedas registradas da atividade econômica jamais foram tão fortes, o desemprego está em alta, e a crise humanitária tem recaído, sobretudo, na população mais pobre. Tudo isso na região que é campeã da desigualdade no planeta e cujos níveis de pobreza são dramáticos.

Em conferência recente aqui em Washington – o evento anual da Confederação Andina de Fomento (CAF) – ouvi dos meus colegas de painel relatos semelhantes aos que escuto no Brasil. Descaso de governantes, políticas mal elaboradas, aberturas prematuras de locais de grande aglomeração, descontrole da pandemia. Em algumas partes da região fala-se em desordem social, igual ou pior do que aquela que testemunhamos na segunda metade de 2019 – parece uma eternidade, mas foi outro dia.

A economia da América Latina já estava abalada antes da pandemia. As duas maiores potências econômicas da região, Brasil e México, resfolegavam para crescer em meio a contas públicas desarranjadas e ausência de perspectivas para o resgate do desenvolvimento. Nesse contexto, quase todos os países da região cometeram exatamente o mesmo erro: o de tentar evitar medidas sanitárias mais drásticas – como quarentenas rigorosas – para “salvar” as economias. O resultado foi o pior possível: não houve controle da epidemia, tampouco da crise econômica.

Como já escrevi em outras ocasiões nesse espaço, não há retomada econômica na ausência de medidas para controlar as epidemias. Contudo, como muitos países voltaram à seminormalidade nos últimos meses, mantendo escolas fechadas, porém abrindo bares, restaurantes, shopping centers, medidas sanitárias restritivas não têm apoio social ou político.

Tal quadro significa que epidemias descontroladas serão a norma ao longo dos próximos meses, com consequências, evidentemente, desastrosas em termos de vidas perdidas e abalos socioeconômicos nestes países da América Latina.

Os pulmões dilacerados da América Latina continuarão a afligir a população vulnerável e a elevar os índices de desigualdade e pobreza já tão altos nessa trágica região do planeta. Roubando as palavras de Caetano e Gil, parece difícil que sejamos capazes de escapar de um destino. Desse destino: o Haiti é aqui.

*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University


El País: A pandemia empodera as Forças Armadas e policiais na América Latina

Do Brasil, onde militar comanda até a Saúde, à Colômbia e México, necessidade de controle social fortalece as forças de segurança enquanto abre debate sobre seus riscos

BEATRIZ JUCÁ|JAVIER LAFUENTE|FEDERICO RIVAS MOLINA|ROCÍO MONTES
Buenos Aires / São Paulo / Cidade Do México / Santiago 

Um general está à frente até do Ministério da Saúde no Brasil. O estado de exceção vigora no Equador, Peru e Chile. A polícia de Buenos Aires se rebela por melhores salários. A morte de um advogado pelas mãos da polícia acende a ira popular em Bogotá. Uma operação contra uma festa clandestina termina com 13 mortos em Lima. No México, o Governo se apoia no Exército para quase tudo. As medidas extraordinárias contra a propagação da covid-19 conferiram um inesperado protagonismo a policiais e militares. Apesar da lembrança ainda fresca das ditaduras dos anos setenta e oitenta, as forças de segurança se apresentam agora como garantidoras da ordem e, sobretudo, “eficientes”. Esse papel dos quartéis, entretanto, desperta muitas desconfianças ―não só no Brasil―, pelas possíveis consequências futuras de acumularem tanto poder.

A necessidade de controle social empoderou as armas. O fenômeno não é homogêneo na região, mas segue como padrão que os soldados tomaram o controle das ruas. “Nos países onde as Forças Armadas já tinham um papel importante, como Brasil, México, Peru, Bolívia e Colômbia, o coronavírus acentuou esse papel. No caso do México, por exemplo, cederam-lhes até portos e rodovias”, diz o cientista político argentino Fabián Calle, especialista em questões de segurança. Os militares ganharam protagonismo silenciosamente, como se as pessoas vissem no novo status quo uma consequência natural e inevitável da pandemia.

O caso mais paradigmático deste crescente poder é o Brasil. O flerte do presidente Jair Bolsonaro com os militares lhes deu uma visibilidade sem precedentes na democracia. Seu vice, Hamilton Mourão, é um general da reserva, e 10 de seus 23 ministros passaram pelos quartéis. No gabinete militar destaca-se o ministro interino da Saúde, Eduardo Pazuelloum militar especialista em logística que pouco sabe de política sanitária. Todo o núcleo político do Planalto também é de generais, que se tornaram uma espécie de eixo de sustentação do Governo e, mesmo com a crise, conseguiram preservar o orçamento para a Defesa. A relação de Bolsonaro com os quartéis vem de seus anos de juventude. No início de sua carreira militar (reformou-se como capitão) encabeçou um motim. Foi assim que conseguiu o apoio político das forças de segurança e criou uma base que o ajudou a se manter no Congresso por 30 anos.

Nas eleições de 2018, quando chegou ao Planalto, o número de militares e policiais eleitos para cargos legislativos quadruplicou em relação a 2014. O setor mais radicalizado, formado principalmente por jovens soldados, não para de crescer. Só em São Paulo, o número de policiais e militares na ativa que tiraram licença para disputar eleições municipais aumentou 62% em comparação a 2016. Enquanto greves (não autorizadas legalmente) sacudiram Estados como o Ceará e Espírito Santos recentemente e avança a politização dos quartéis, especialistas alertam sobre os possíveis riscos de que os militares se tornem um vetor de ruptura democrática.

Fabián Calle não acredita nessa possibilidade, mas reconhece que as coisas já não serão como antes da pandemia. “Há Estados frágeis, burocracias pouco eficientes e crescentes problemas. Todos os Governos terminam recorrendo a uma das poucas burocracias ordenadas e com cadeia de mando que, além disso, funciona. Mas não há nenhum salto ao poder. O que haverá serão mais recursos econômicos e mais influência, porque isso não será grátis”, adverte.

Outro país onde as Forças Armadas sem dúvida adquiriram mais preponderância é o México, onde os militares nunca tiveram o mesmo peso de outros lugares da região. O presidente Andrés Manuel López Obrador, que na campanha defendia a volta deles aos quartéis diante do fracasso da chamada guerra ao narcotráfico, depois de empossado lhes concedeu o controle de diversas instâncias da Administração, como as alfândegas e os portos. Durante a pandemia, as Forças Armadas se encarregaram de montar hospitais de campanha e distribuir suprimentos por todo o país. A isso se soma uma maior presença nas ruas, com a nova Guarda Nacional, autorizada por lei a agir em assuntos de segurança pública.

A polícia da província de Buenos Aires, na Argentina, já cobrou a conta. Durante três dias, policiais armados fizeram uma greve sem precedentes que terminou com um aumento de salários. A Bonaerense, como é conhecida, é uma força de 90.000 homens da ativa com um longo histórico de excessos e corrupção que nenhum governo conseguiu controlar. Desde a volta à democracia, em 1983, as diversas administrações retiraram progressivamente as verbas das Forças Armadas, que pagaram assim por seu passado ditatorial, e transferiram recursos às corporações policiais. A de Buenos Aires se rebelou agora com o argumento de que a pandemia desbastou seus ganhos (sem futebol e espetáculos, acabaram-se as horas extras), enquanto seu trabalho se multiplicou por causa do controle da quarentena.

Não foi só o coronavírus que deu um papel de destaque às forças de segurança no último ano. Na Bolívia, a pressão da polícia foi o estopim para a renúncia do presidente Evo Morales, no final de 2019. Enquanto isso, na Colômbia, o assassinato de um jovem alvejado pela tropa de choque voltou a expor os excessos policiais. Os alarmes nesse país voltaram a se acender nesta semana, quando um advogado foi morto por uma arma de choques elétricos usada por um policial. O desencanto da população com a polícia só cresce, e a necessidade de uma reforma parece muito inevitável.

A polícia militar chilena também está na rua, mas por ordem do Governo. Nesta sexta-feira, o presidente Sebastián Piñera decidiu prorrogar por 90 dias o estado de exceção em todo o território. A medida começou a vigorar no Chile assim que a pandemia começou, por isso o país passará nove meses com os militares impondo as restrições de trânsito e reunião. O Executivo justificou a decisão pela covid-19, mas paira o fantasma da desordem pública. Em 18 de outubro completa-se um ano das revoltas sociais no Chile, e no dia 25 do mesmo mês terá lugar um plebiscito sobre uma nova Constituição, com mais de 14 milhões de pessoas convocadas às urnas. Será um referendo sob condições inéditas, como toque de recolher vigorando entre 23h e 5h.

“A crise sanitária não se resolve com militares nas ruas. É um excesso e, ao mesmo tempo, revela a incapacidade das autoridades para estabelecer normas básicas de segurança pública”, afirma o chileno Gabriel Gaspar, analista político e ex-subsecretário para as Forças Armadas do segundo Governo de Michelle Bachelet (2014-2018). Para o diplomata, em seu país os militares foram empurrados a “patrulhar os chilenos, quando as Forças Armadas estão desenhadas mais para defendê-los”. Podem os militares ficar tentados pelo poder? Fabián Calle opina que é pouco provável que alcancem o protagonismo dos anos de Pinochet, mas não descarta que “levantem o perfil” se a violência crescer. “Não será para tomar o poder”, diz, “mas marcarão terreno”.


El País: Candidato de Trump é eleito novo presidente do BID

Mauricio Claver-Carone se tornou o primeiro líder do organismo de origem norte-americana

Mauricio Claver-Carone foi efeito neste sábado presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) para um período de cinco anos. O assessor de Donald Trump para a América Latina terá em suas mãos uma entidade crucial para a recuperação da região após a crise do coronavírus. Sua candidatura e nomeação provocaram tensões entre os países acionistas da instituição, já que quebram a tradição —não escrita— de que o líder do banco deve ser um latino-americano.

A assembleia que o elegeu, realizada em Washington por videoconferência, reuniu os 48 países que integram o capital do BID. “Essa vitória é para a América Latina e o Caribe. Quero agradecer a todos os nossos parceiros na região por manter a integridade deste processo eleitoral e compartilhar nossa visão comum de um BID mais forte”, declarou Claver-Carone numa mensagem enviada à imprensa após a eleição. O assessor de Trump obteve o respaldo de 30 países, incluindo 23 da região, e com eles alcançou 66,8% dos votos. Assumirá a presidência no próximo 1º de outubro por um período de cinco anos.

Claver-Carone foi o único candidato que se apresentou na votação deste sábado. A candidatura de um norte-americano à liderança do BID gerou tensões entre os países nos últimos dois meses. Trump ignorou as queixas de diversas nações e apresentou o advogado de ascendência cubana como seu homem forte na América Latina.

Os EUA nomearam Claver-Carone em junho para disputar a presidência da entidade. O anúncio levantou suspeitas em toda a América e também na Europa: o chefe da diplomacia europeia, Josep Borrell, enviou uma carta em julho aos membros europeus do banco para advertir que o candidato norte-americano quebraria a harmonia na América Latina. Na época, a Argentina iniciou um esforço para adiar a votação até março de 2021, enquanto promovia seu próprio candidato: Gustavo Béliz. Claver-Carone acusou a Casa Rosada de “tentar sequestrar a eleição” do novo presidente.

A chave da estratégia proposta pela Argentina estava nos números. Inicialmente, buscou-se evitar o quórum da sessão deste sábado, que devia alcançar 75% para que houvesse votação. Chile, México e Costa Rica se uniram ao plano argentino e tentaram fazer com que outros países da região se ausentassem da assembleia. Nos últimos dias, porém, os apoios foram diminuindo até que o México reconheceu, na quinta-feira, que compareceria à votação. A Argentina anunciou na sexta que Béliz não seria candidato. O Executivo argentino também afirmou que se absteria de votar em protesto contra a candidatura do assessor norte-americano e incentivou os demais países a fazerem o mesmo. Fontes da Casa Rosada próximas às negociações dizem que 16 países se abstiveram da votação neste sábado —11 deles, latino-americanos— e somaram 31,23% dos votos, informou Federico Rivas.

Claver-Carone mostrou vantagem desde o anúncio da candidatura. Os EUA contavam com 30% dos votos, e seu nome foi apoiado por países com generosas participações no BID como o Brasil (11,3%) e Colômbia (3,1%), além de ter se apresentado como representante de El Salvador, Guiana, Haiti, Israel e Paraguai. Para vencer, o candidato só precisava do apoio de 15 dos 28 países americanos. Claver-Carone assumirá o posto do colombiano Luis Alberto Moreno, que esteve à frente do organismo desde 2005.

Na Casa Branca, o candidato de Trump conta com histórico de pulso firme contra o chavismo e o castrismo. Uma das preocupações entre os países latino-americanos com sua eleição é que ele previsivelmente terá em suas mãos a recuperação econômica da Venezuela nos próximos anos. Além disso, Claver-Carone revelou numa entrevista a este jornal que um dos principais interesses dos EUA é influir, através do banco, nos espaços que a China ocupou na América Latina.

A candidatura de Claver-Carone tampouco convenceu completamente Washington, sobretudo os democratas e os republicanos que se distanciaram da Administração Trump. Por isso, uma das incógnitas que prevalecerão até 3 de novembro, data das eleições presidenciais nos EUA, é se ele terá apoio do democrata Joe Biden caso este chegue à presidência. Biden considera que o candidato de Trump é “ideológico demais, pouco qualificado e está buscando um novo trabalho para depois de novembro”, como disse um porta-voz da campanha democrata ao site Politico.

Fundado em 1959, o BID possui um capital de mais de 100 bilhões de dólares (533 bilhões de reais). É o maior banco regional, e os EUA são o país que mais contribui. Com créditos de 12 bilhões de dólares (63,6 bilhões de reais), a entidade lidera a lista de ajudas ao desenvolvimento no continente. Seu funcionamento depende em boa medida dos aportes dos EUA, que são autorizados pelo Congresso.