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Amazônia Real: A luta da mulher-floresta Eliane Brum contra o fim do mundo
Por Pedro Alexandre Sanches / Amazônia Real
São Paulo (SP) – É desafiadora a leitura de Banzeiro Òkòtó – Um Viagem à Amazônia Centro do Mundo, da jornalista gaúcha Eliane Brum, que desde 2017 mora em Altamira, no Pará. O livro denuncia as diversas violações territoriais e de direitos na Amazônia, diretamente relacionadas à destruição ambiental provocada por grandes empreendimentos. Na contramão da suposta neutralidade jornalística, Eliane se coloca explicitamente ao lado dos povos amazônicos e da resistência contra a destruição da floresta.
A autora chama o conjunto de habitantes da floresta – indígenas, ribeirinhos, beiradeiros e quilombolas – de “povos-floresta”, como constituintes inalienáveis da natureza amazônica e em confronto com a velha noção autoritária da Amazônia como “deserto verde” ou “deserto humano”, portanto desabitado (segundo a lógica dos colonizadores). “Para os povos originários, não existe a natureza e as pessoas humanas, uma coisa e outra coisa. Há apenas natureza. Os indígenas não estão na floresta, eles são floresta. Interagem com o que os brancos chamam de floresta, como também interagem as pessoas não humanas. A floresta é tudo, o visível e o invisível”, conceitua.
Outra argumentação contundente de Banzeiro Òkòtó apresenta os “convertidos-em-pobres”: desalojados por Belo Monte da floresta e das margens dos rios, onde não são pobres nem ricos, os povos-floresta são atirados às periferias de Altamira, passam a precisar de dinheiro e se tornam, portanto, pobres, não raro miseráveis. O pacote capitalista cai inteiro em suas cabeças: moradia, transporte, emprego, patrão. “Ser rico é não precisar de dinheiro”, argumenta a autora, em formulação aprendida com os povos-floresta. “Antes colhia 400 melancias boas, hoje não consigo comprar uma ruim”, define um ex-beiradeiro atirado à periferia de Altamira, em entrevista à jornalista.
Eliane Brum, também escritora e documentarista, propõe em Banzeiro Òkòtó uma série de inovações ao mesmo tempo linguísticas e conceituais, que ela vai introduzindo aos poucos no texto e passa a adotar a partir de cada explicação. Uma delas é a adoção do gênero neutro em lugar da separação estanque entre feminino e masculino, cujos inconvenientes a jornalista previne logo na primeira página do texto: “Imagino que a maioria vai estranhar e até ficar incomodada no início da leitura, como aconteceu também comigo. Estranhar é preciso”.
Aos povos originários, Eliane dá o nome de “extra-humanes” ou “além-do-humane” (“nossos antepassados são mais antigos do que Jesus Cristo”, delimitam, a certa altura, os Munduruku), Combatendo a separação hierarquizada dos seres vivos entre humanos e animais, a autora rejeita o termo “animais”, que substitui por “não-humanes”. Incomodada com a negativa reluzente em “não-humanes”, troca-a por “mais-que-humanes”. Sobre a hidrelétrica de Belo Monte (cuja cidade mais próxima é Altamira), adota às vezes a terminologia criada pelos deserdados da construção da usina: Belo Monstro. Para a ditadura de 1964, que alguns já tratam como “civil-militar” (e não apenas militar), prefere o termo “empresarial-militar”. Nesse procedimento, desafia dogmas do jornalismo empresarial e coloca-se inequivocamente em um lado da frente da batalha pela preservação de todas as naturezas: Eliane está na Amazônia para se somar a extra-humanes e mais-que-humanes, contra representantes das elites empresariais, agrárias, políticas etc., rotulados por ela de “comedores do planeta”. Sua crítica aos donos do poder é ampla e um tanto indistinta, abrangendo o papa, as religiões neopentecostais, os políticos de qualquer partido ou orientação ideológica e o mundo dito desenvolvido, em especial a Europa e os Estados Unidos. “A parte rica do mundo tem problemas de audição”, escreve. “O problema é que os brancos não compreendem a linguagem dos não-brancos.”
No capítulo “A Amazônia É Mulher”, a antiga diferenciação estanque entre feminino e masculino sobrevive, indicando que há muito a caminhar até a superação total das hierarquias, desigualdades e submissões que a língua portuguesa espelha. Numa passagem radiante de Banzeiro Òkòtó, ela apresenta o líder camponês (de pequenos agricultores e pescadores da floresta) que vive um casamento inter-racial, define-se como “de gênero não-binário” e pinta as unhas de azul, numa prova de que por trás da linguagem há um fenômeno concreto, que é conhecido e praticado por habitantes de um lugar considerado atrasado ou parado no tempo pela sociedade tradicional urbana.
Mudança climática
Eliane pontua em seu novo livro que a proposta de sacudir a linguagem para sacudir o que há por trás dela tem precedentes. Lembra que em 2019 o jornal britânico The Guardian anunciou uma eloquente substituição de palavras e termos em seu vocabulário. No linguajar do jornal, mudança climática virou “emergência climática” ou “colapso climático” e aquecimento global trocou de “global warming” para “global healing” – algo como “superaquecimento global”, segundo sua tradução. Junto com o aquecimento do planeta, é imperativo aquecer a percepção geral e individual sobre a emergência. No Brasil, via de regra, o jornalismo mais comercial não tem se mostrado à altura das fortes transformações e modificações de paradigmas que o planeta vive, e que a autora capta antes do paquiderme jornalístico – ou antes que seja tarde demais, como de resto o livro apregoa em toda sua extensão.
E é sobre o lado de cá da sociedade, o lado urbano, que Eliane Brum apresenta momentos de mordaz responsabilização, como na história do grileiro amazônico cuja filha é atriz teatral e promotora de festas modernas e blocos de carnaval em São Paulo. “Meu pai formou esse condomínio há um tempo e deu pra gente de presente”, ela justifica o lote do laranjal que ganhou do pai. A jornalista demonstra, assim, que os destruidores da floresta não são entes invisíveis e podem estar bem mais próximos do que pode parecer. A proximidade se aprofunda quando a autora, despida das camadas e camadas e camadas de proteção oferecidas por megalópoles de São Paulo, tenta alugar uma casa (num condomínio) em Altamira e descobre que o proprietário é o homem que mandou matar a religiosa Dorothy Stang. “Em Altamira, não havia como me livrar do sangue, como eu fazia em São Paulo”, conclui, num daqueles trechos feitos sob medida para brancos de classe média e alta.
Em certas passagens, a prosa de Eliane em primeira pessoa parece tentar dar sentido épico a banalidades que evidentemente são menos interessantes e relevantes que a emergência vivida pela floresta colossal e, por consequência, pelo mundo todo. Nesses momentos, a impressão é a de que a jornalista, por vício profissional ou por outro motivo, cede à tentação de sobrepor sua figura à floresta como protagonista do livro.
Amazônia centro do mundo
A explicação sobre os porquês do título do livro só se conclui ao final de sua leitura. Banzeiro, como Eliane explica logo de início, é, segundo os povos do Xingu, a região onde um rio é mais bravio. “É onde com sorte se pode passar, com azar não. É um lugar de perigo entre o de onde se veio e o aonde se quer chegar”, decifra. Somente quatro capítulos antes do final, vem a explicação do termo òkòtó: na língua ioruba, é “um caracol, uma concha cônica que contém uma história ossificada que se move em espiral a partir de uma base de pilão”. “Amazônia Centro do Mundo é banzeiro em transfiguração para òkòtó”, escreve, para ao final concluir: “Entrelugares é meu lugar de fala”.
Sintonizada no tempo presente, a narrativa guarda momentos de choque, como a presença constante do fotógrafo Lilo Clareto, que acompanhou grande parte da trajetória jornalística da autora (inclusive na mudança para Altamira), assina todas as fotos do caderno de imagem e… morreu de Covid-19 em 2021. No mais, a grande meta cumprida de Banzeiro Òkòtó é reunir um conjunto polpudo de evidências, quando não provas, de que o fim do mundo está realmente próximo, se os seres humanes não se conscientizarem imediatamente de que estão comendo a casa onde moram.
Leia um trecho de Banzeiro Òkòtó, de Eliane Brum:
11. onde começa um círculo?
Banzeiro é como o povo do Xingu chama o território de brabeza do rio. É onde com sorte se pode passar, com azar não. É um lugar de perigo entre o de onde se veio e o aonde se quer chegar. Quem rema espera o banzeiro recolher suas garras ou amainar. E silencia porque o barco pode ser virado ou puxado para baixo de repente. Silencia para não acordar a raiva do rio.
Não há sinônimos para banzeiro. Nem tradução. Banzeiro é aquele que é. E só é onde é.
Desde que me mudei para a Amazônia, em agosto de 2017, o banzeiro se mudou do rio para dentro de mim. Não tenho fígado, rins, estômago como as outras pessoas. Tenho banzeiro. Meu coração, dominado pelo redemunho, bate em círculos concêntricos, às vezes tão rápido que não me deixa dormir à noite. E desafina, com frequência sai do tom, se torna uma sinfonia dissonante, o médico diz que é arritmia, mas o médico não sabe de corpos que se misturam. Os médicos dos brancos são obcecados por fronteiras, veem o mundo como os diplomatas europeus, que dividiram a África em uma mesa de negociações na Berlim de 1885. Me dá esse coração aqui, pega o rim para você, em troca desta perna eu te dou o baço e o fígado.
Com esse coração esquecido de bater no ritmo convencional, minha insônia me navega. Meu sangue virou água, e às vezes sinto um peixe fazendo cócegas no meu pâncreas. Outras vezes, toda eu sou envenenada pelo mercúrio que os garimpeiros jogam nas veias do rio e nas suas próprias. Me contorço, viro mutante e ganho guelras podres.
Não aconteceu de repente. Foi acontecendo. Ainda acontece. Nunca mais vai parar de acontecer, acho. A Amazônia não é um lugar para onde vamos carregando nosso corpo, esse somatório de bactérias, células e subjetividades que somos. Não é assim. A Amazônia salta para dentro da gente como num bote de sucuri, estrangula a espinha dorsal do nosso pensamento e nos mistura à medula do planeta. Já não sabemos que eus são aqueles. As pessoas seguem nos chamando por nossos nomes, atendemos, aparentemente estamos com nossas identidades intactas — mas o que somos, já não sabemos. O que nos tornamos não tem nome. Não porque não tenha, mas porque não conhecemos a sua língua.
Se você reparar, todas as minhas metáforas são corpóreas, e nem metáforas são. A Amazônia literaliza tudo. Já não posso ser cartesiana, porque o corpo é tudo e tudo domina. Quem entra na floresta pela primeira vez não sabe o que fazer com os sentidos que sente, com as partes do corpo que desconhecia e que de repente nunca mais a deixará. Em algum momento, adoecem, porque o corpo da cidade, acostumado a fingir que não existe, para poder se robotizar diante do computador, não sabe o que fazer de si.
Esse corpo se ocupava em dez por cento, porque reprimido de tudo, e agora todos os cem por cento lhe chegam de uma vez. E sua de pingar no chão e coça de picadas de piuns e se corta nos tucuns e se arrepia com a água do rio e se encharca de desejo por corpos que não estavam no cardápio. É muito de um tudo de repente. As pessoas da cidade passam mal, se sentem doentes nas primeiras incursões na Amazônia, porque têm overdose de corpo. Acham que é malária o que é tesão por um corpo que não se sabia.
Aconteceu comigo mais de duas décadas atrás, no final dos anos 1990, nas minhas primeiras vezes na Amazônia como repórter. Eu ia e vinha. E quando voltava para Porto Alegre, da primeira vez, ou para São Paulo, em todas as outras, me chaveava por dentro até voltar a enquadrar meu corpo no espaço de apartamento em que ele se conformava por ter decorado a planta. Meu corpo virava um dois-quartos de classe média, mas o bicho que mora lá no fundo bem fundo tinha provado. E não se deixava esquecer. Então eu voltava para a Amazônia. Ia e vinha, ia e vinha curiosa de mim. Um dia, em janeiro de 2016, eu caminhava com uma amiga pela cidade de Altamira, no Pará. Era estação de chuva, mas estava seco. Os Yudjá da Volta Grande do Xingu chamaram aquele de O Ano do Fim do Mundo. Conto o porquê em outra volta do banzeiro, caso não me afogue antes. É fácil se afogar na escrita. Difícil é não se afogar.
Eu ciceroneava minha amiga, a psicanalista Ilana Katz, e um pequeno grupo de pessoas em encontros com os movimentos sociais e ambientais de Altamira. Nosso desejo era criar uma experiência clínica de escuta do sofrimento dos refugiados de Belo Monte, a hidrelétrica que matou uma parte do corpo do Xingu. Desde que a barragem interditou o rio, o Xingu carrega pedaços mortos. Em alguns trechos, arrasta penosamente braços e pernas sem movimento, que chamam de reservatórios ou lagos artificiais. Em outros, seu corpo seca e universos inteiros são asfixiados, como na Volta Grande do Xingu. Os peixes tentam nadar e se reproduzir, mas acabam morrendo, somando-se aos outros cadáveres. A morte não gosta de morrer sozinha. Vai morrendo em cadeia. A morte não sofre de agorafobia, ela gosta de toda gente, de peixe, carapanã, árvore, nós.
Disse a minha amiga, ali, entre as ruínas da mais violenta cidade amazônica, com o sol pesando sobre a cabeça como uma coroa de chumbo, Vou me mudar para Altamira. Nem eu mesma sabia de onde vinha aquela voz. Mas foi dito. E o que é dito passa a existir.
Banzeiro Òkòtó – Uma Viagem à Amazônia Centro do Mundo. De Eliane Brum. Companhia das Letras, 294 pág., R$ 70.
Pedro Alexandre Sanches é formado pela ECA-USP, Pedro Alexandre Sanches é jornalista paranaense trabalhando em São Paulo desde 1995. Especializado no jornalismo cultural, foi repórter da Folha de São Paulo e repórter e editor de cultura da CartaCapital. É editor-fundador do site de música e cultura Farofafá (www.farofafa.com.br) e atua como colaborador em diversos veículos. Escreveu os livros Tropicalismo - Decadência Bonita do Samba (2000), Como Dois e Dos São Cinco - Roberto Carlos (& Erasmo & Wanderléa) (2004) e Álbum (2021).
Fonte: Amazônia Real
https://amazoniareal.com.br/mulher-floresta-eliane-brum/
Aprovação do marco temporal ‘premiará’ invasores de terras
Evento com a presença da deputada federal indígena, Joenia Wapichana (Rede-RR), e o jovem líder indígena Ednei Arapiun avalia os riscos da aprovação da tese dos ruralistas
Leanderson Lima / Amazônia Real
Manaus (AM) – O jovem indígena Ednei Arapiun é líder da aldeia Cachoeira do Maró, que fica na Terra Indígena Maró, no Baixo Tapajós, em Santarém, no oeste do Pará. Desde o mês de junho ele está envolvido nas mobilizações, em Brasília, contra o marco temporal, ação que tramita no Supremo Tribunal Federal (STF) e que pode mudar o processo de demarcações dos territórios indígenas no Brasil. Durante o evento online “Welcome Chance”, realizado pela Ashoka Brasil, Ednei explicou a tensão que os povos Borari e Arapium vivem no território. Sua terra indígena pode ser afetada pelo marco temporal, pois está localizada na chamada Gleba Nova Olinda 1. Desde meados da década de 1990, a gleba é alvo de processos contra a demarcação e virou palco de violentos conflitos agrários. “Caso o marco temporal passe, já existem planos de vários madeireiros, vão entrar dentro do território, já existem vários planos de manejamento de madeireiros que foram barrados”, disse Ednei Arapiun.
O evento online “Welcome Change” – conversas semanais que colocam em destaque as soluções de empreendedores sociais e jovens transformadores pelo mundo -, sobre o tema “Por que o marco temporal ameaça povos indígenas brasileiros?” foi realizado pela Ashoka Brasil na última sexta-feira (15). O encontro contou com a participação da primeira deputada federal indígena eleita no Brasil, Joenia Wapichana (Rede-RR), e mediado pela cofundadora da agência Amazônia Real, Kátia Brasil. As duas são Fellows da Ashoka. Transmitido para o Brasil e outros países, pela internet, o evento propôs debater o julgamento da tese do marco temporal, que foi suspenso há um mês por conta do pedido de vistas do ministro Alexandre de Moraes.
O magistrado já devolveu o processo que agora aguarda a definição de nova data para que seja dada continuidade aos votos, do próprio Alexandre de Moraes, e dos demais ministros da corte. Até o momento, o placar da votação é 1 a 1. O relator Edson Fachin se opôs contra o marco temporal, e o ministro Kassio Nunes Marques, indicado por Jair Bolsonaro, votou a favor da tese dos ruralistas.
Ednei Arapiun, que é coordenador do Conselho Indígena Tapajós Arapiuns, teme que uma vitória dos ruralistas no julgamento do marco temporal possa acirrar conflitos entre indígenas, madeireiros e comunidades vizinhas. Nos arredores do Território Indígena Maró, com 42 mil hectares, o líder indígena da região do Tapajós já constata a realidade do desabastecimento, a escassez de alimentos – caça ou pesca – e até a dificuldade de colheita de frutas, resultados da invasão de caçadores.
“Eu acredito que tudo que a gente faz, a mobilização que a gente faz dentro das aldeias, dentro do território, dentro da região, nos Estados, ela tem um grande impacto. E a gente sempre com essa esperança que nós vamos vencer, que nós vamos ter a maioria dos votos para o marco temporal, para que seja extinto, porque eles sempre vão tentar de alguma forma querer tirar esse direito ao nosso território”, diz Arapiun.
O marco temporal
No Brasil, os territórios indígenas são reconhecidos pela Constituição Federal Brasileira, promulgada em 1988. O capítulo 231 garante que “são reconhecidos aos indígenas a sua organização social, os costumes, as línguas, as crenças e as tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, protegê-las e fazer respeitar todos os seus bens”.
No ano de 2008, esse direito constitucional foi questionado por fazendeiros e políticos ruralistas contrários à homologação da demarcação contínua da Terra Indígena (TI) Raposa Serra do Sol, em Roraima, no norte do país. Eles ingressaram com uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF). Durante o julgamento, o relator do processo, ministro Carlos Ayres Britto, atualmente aposentado, apresentou em seu voto a tese do marco temporal.
No caso da Raposa Serra do Sol, a tese do marco temporal foi derrubada, inclusive com o voto do ministro Ayres Britto, pela homologação contínua da demarcação do território. Mas a tese do marco temporal passou a ser usada em outros julgamentos, como no atual recurso que tramita no STF e questiona a demarcação da Terra Indígena do povo Xokleng, de Santa Catarina, no sul do Brasil.
O evento “Welcome Change” foi com tradução simultânea para o inglês. Para atingir o público fora do Brasil, a deputada federal Joenia Wapichana fez questão de explicar o que é a tese do marco temporal: “Explicando da forma mais simples: a Constituição Brasileira foi promulgada no dia 5 de outubro de 1988. O marco temporal está falando assim: a partir do dia 5 de outubro de 1988, quem estaria de posse da terra indígena até essa data, a data da promulgação, teria direito a ter sua terra demarcada, reconhecida oficialmente. Quem não está na posse da terra desde 1988, por isso que chamam de marco temporal, não teria mais direito de reclamar a regularização da terra indígena”.
Para a deputada Joenia Wapichana, que fez história ao se tornar a primeira advogada indígena do Brasil, e cuja estreia foi justamente em 2008, durante o julgamento no STF do caso Raposa Serra do Sol, em Roraima, o processo de colonização vivido no País foi tão violento que houve muitas remoções e expulsões. Na região sul do Brasil, os povos indígenas foram retirados de suas terras tradicionais para dar abertura a lugares, cidades e fazendas.
A parlamentar lembrou ainda que é preciso respeitar as características de muitos povos indígenas nômades. “Muitos povos, como os guarani, têm uma cultura nômade, de sair em rotatividade conforme os antropólogos já tenham afirmado, para um caminhar conforme as estações, daí não ficavam na posse de suas terras, andavam em torno para procurar melhores estações, e quando retornavam já haviam fazendas no lugar”, pontuou ela, alegando que a legislação brasileira já prevê os chamados direitos originários. Para a parlamentar, a melhor forma de tratar a questão é ainda pela teoria do Indigenato.
Joenia Wapichana ainda teceu duras críticas ao governo do presidente Bolsonaro (sem partido) o qual chamou de um governo anti-direitos humanos, anti-ambientalista, anti-indígena e principal propagador da tese do marco temporal. Foi nesse evento que a parlamentar lamentou a trágica morte de duas crianças Yanomami, na semana passada. “Ontem (14) eu tive um dia bastante pesado no sentido de a gente ter que apresentar denúncias de morte de duas crianças Yanomami que foram sugadas por máquinas de garimpos ilegais dentro de sua própria terra indígena”, disse.
Demarcações arrastadas
No Brasil, existem 305 povos indígenas que falam 274 línguas diferentes. A população é estimada em mais de 1 milhão de pessoas, mas o governo brasileiro reconhece apenas os povos que vivem em territórios indígenas demarcados, menos de 900 mil, ignorando as populações que moram nas áreas urbanas dos municípios.
Se a tese do marco temporal for aprovada pelo STF, o território Xokleng e mais de 300 terras indígenas estarão com as demarcações ameaçadas.
O jovem líder Ednei Arapiun, também estudante de ciências atmosféricas na Universidade Federal do Oeste do Pará e integrante do programa Jovens Transformadores pela Democracia na Ashoka Brasil, relatou outro território ameaçado com a tese do marco temporal: é a Terra Indígena Cobra Grande, com 9 mil hectares. Habitada por povos como Arapium, Jaraqui e Tapajó, ela passou por um processo de identificação de 2008 a 2012, e acabou sendo identificada e aprovada em 2015. Mas, desde então, o caso está parado e a terra nunca foi demarcada pela Fundação Nacional do Índio.
A TI Cobra Grande, também localizada em Santarém, é cobiçada por mineradores. O município paraense e seus vizinhos Itaituba e Juruti vêm sofrendo um intenso processo de urbanização, abrindo novas frentes migratórias que são atraídas pelo agronegócio, mineração e serviços. De modo geral, umas das estratégias que avançam em locais distintos diz respeito também à compra de terrenos para atividades de mineração. “Percebemos que há um grande investimento em relação a isso a nesses empreendimentos”, alerta Ednei Arapiun.
O líder pontua ainda que há muitos territórios no baixo Tapajós, que ainda estão em processo de demarcação. “Muitos que ainda estão em processo de fazer o pedido do estudo antropológico serão afetados (porque se for validada a tese do marco temporal) até 1998 estamos fora”, lamenta.
Mais do que assegurar o direito à terra, os territórios indígenas acabam funcionando como uma espécie de escudo protetor da floresta. Os ataques a esses territórios já vêm ameaçando seriamente a questão climática. Para Ednei Arapiun, as mudanças climáticas dentro da Amazônia já são perceptíveis, principalmente com as queimadas.
Pela mobilização em Brasília
Diante de um público formado por membros da rede Ashoka, uma entidade que mobiliza lideranças mundiais em prol da mudança social positiva, a deputada federal indígena pediu engajamento para lutar contra a aprovação da tese do marco temporal.
“Se manifestem através das petições online para o não ao marco temporal. É importante nenhum retrocesso nos direitos internacionais, principalmente requerer nos seus estados que o Brasil cumpra a declaração dos direitos humanos, que respeite a convecção 169 da OIT, que inclua dentro dos seus projetos econômicos, alguma condição que não receba produto de ilegalidade dentro das terras indígenas, principalmente essa questão do garimpo ilegal, que tem matado crianças, que tem matado mulheres”, ressaltou a parlamentar.
Entre agosto e setembro, com vistas a acompanhar o julgamento do marco temporal, mais de 6 mil indígenas acamparam em Brasília. Eles também estavam de olho na tramitação no Congresso de outros projetos que afetam os povos originários, como o PL-490, e protestar contra o governo Bolsonaro. Ednei Arapiun falou sobre como deve ser a retomada das manifestações em Brasília, agora com a retomada do julgamento pelo STF. “As organizações (indígenas) estarão fazendo outra mobilização para fazer esse acompanhamento do marco temporal, e nós, os povos que moram mais distante do Distrito Federal, sempre contamos com apoio para chegar até Brasília”, disse.
No último manifesto, o líder Arapium contou que 120 indígenas da região de Santarém foram até a capital federal para dizer o seu não ao marco temporal, que, apesar de já voltado para a pauta, ainda segue sem data de julgamento.
Leanderson Lima é graduado em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pelo Centro Universitário Nilton Lins. Tem MBA executivo em Gestão de pessoas e coaching, pelas Faculdades Idaam. Com 18 anos de experiência profissional, atuou por veículos como Jornal A Crítica, Correio Amazonense, Jornal do Commercio e Zero Hora (RS). Na televisão trabalhou na TV A Crítica, Rede TV! Manaus, e na rádio A Crítica, como comentarista. É o vencedor do Prêmio Petrobras de Jornalismo de 2015, com a reportagem “Chute no Preconceito”.
Fonte: Amazônia Real
https://amazoniareal.com.br/marco-temporal/
'Bolsonaro está armando pessoas contra nós', diz Megaron Txucarramãe
Em entrevista exclusiva, liderança Kayapó denuncia como os políticos estão se organizando para remover direitos indígenas e que a violência no campo vai aumentar
Por Cristina Ávila / Amazônia Real
Contaram os irmãos Villas-Bôas que Kayapó era uma designação cabocla, dada principalmente pelos seringueiros aos indígenas que usam botoque de madeira no lábio inferior. “São os Jê-Botocudo. Os Juruna, vizinhos mais próximos dos Botocudo do Xingu, chamavam-nos Txucarramãe, poderosa nação que resistiu energicamente ao contato” com a sociedade envolvente e mantinha constante vigilância sobre seu território, não permitindo ingresso de quaisquer estranhos.
“Não há quem não tenha ouvido falar dos Kayapó, nação temida por sua altivez e rebeldia e, atualmente, uma das mais numerosas do nosso vasto sertão”, relataram, no livro A marcha para o oeste: a epopeia da expedição Roncador-Xingu, os irmãos Orlando (1914-2002) e Cláudio Villas-Bôas (1916-1998). Foram os Villas-Bôas que os contataram nos anos 1950, deixando registros em diários escritos durante a sua permanência entre povos amazônicos.
Megaron Txucarramãe, um dos principais líderes indígenas do Brasil, mantém a altivez. E a mesma determinação na vigilância de territórios e de direitos, hoje não somente de seu povo, mas de todos os indígenas brasileiros, que desde os anos 1980 se articulam em lutas coletivas nacionais. Sobrinho do cacique Raoni Metuktire e pai de Mayalú Kokometi Waurá Txucarramãe, que desponta como guerreira de sua nova geração, ele mora na Terra Indígena Capoto/Jarina, no norte do Mato Grosso. É presença marcante nos embates com o governo Jair Bolsonaro e com o Congresso promovidos pelas organizações indígenas.
Há mais de 30 anos, os Kayapó acampam, de tempos em tempos, em Brasília para travar lutas. Nesse período, o cacique Megaron acompanhou seu tio Raoni na liderança dos guerreiros que sempre impressionaram por sua beleza e disciplina espartana no cumprimento de rituais sagrados. Impressionam pelos espetaculares movimentos de dança ordenados por gritos de guerra, sacudindo a Esplanada dos Ministérios com pés pesados e corpos pintados com o negro jenipapo e o rubro urucum.
Um dos cocares multicoloridos dos Kayapó foi parar na cabeça do então presidente da Assembleia Nacional Constituinte, Ulysses Guimarães (1916-1992) em 1987, que assim espantado na porta de seu gabinete na Câmara dos Deputados recebeu o documento com as reivindicações que seriam negociadas no Capítulo dedicado aos povos indígenas da Constituição Federal, homologada em 1988. Foram momentos de tensão vividos pelas organizações indígenas que no primeiro momento não puderam sequer entrar no Congresso. As organizações sofreram derrotas em comissões, mas acabaram com a vitória de 497 votos favoráveis, 5 contra e 10 abstenções em plenário.
Na história de luta de Megaron Txucarramãe, consta a inédita indenização por dano espiritual pago pela empresa aérea Gol aos Kayapó da TI Capoto-Jarina. Em 29 de setembro de 2006, um Boeing da Gol se chocou com um jato Legacy e caiu de bico na floresta. Por 20 dias, Megaron participou do grupo de indígenas que auxiliou militares no resgate dos corpos, como narrou a agência Pública. Em 2010, Raoni e Megaron procuraram a companhia aérea para retirar os destroços da aeronave. Diante da recusa, sob alegação de danos ambientais, os indígenas afirmaram que a área em torno dos destroços ficariam interditados para sempre. A indenização foi de 4 milhões de reais.
Sobrinho de Raoni, Megaron informou à reportagem da Amazônia Real que seu tio já está totalmente recuperado da Covid-19, depois de duas internações em 2020, uma por hemorragia digestiva (em julho) e outra por pneumonia (em agosto). Mas Raoni também está preocupado com as atuais ameaças que sofrem os povos indígenas.
“Não esteve em Brasília porque ainda está de luto pela esposa (Bekwyjka Metuktire) que morreu no ano passado. Mas ele está pensando, preocupado, acompanhando o movimento em Brasília. Pergunta como estamos, como está o andamento do projeto, tudo ele está sempre perguntando. Está forte, está bem” disse.
Em maio de 2018, meses antes da eleição de Bolsonaro, Megaron já demonstrava sua inquietude com a campanha eleitoral e os riscos para as populações indígenas. Desta vez, em nova entrevista exclusiva à Amazônia Real, o líder Kayapó alerta que as ameaças agora ganharam abrigo no poder central. Leia a seguir:
Amazônia Real – Sua luta tem mais de três décadas. Como vê o atual momento para os povos indígenas?
Megaron Txucarramãe – Estou de novo em movimento com outros parentes indígenas de todos os Estados do Brasil contra o projeto de lei votado no Congresso (PL 490/2007) que tenta alterar direitos garantidos nos artigos 231 e 232 da Constituição Federal, escritos em 1988 pelos deputados nos dando direito de ocupar terras tradicionais. Eles querem agora modificar terras indígenas demarcadas, homologadas de acordo com a Constituição. Tudo isso está sendo mudado. E estou, depois de tantos anos de isso tudo aprovado, com jovens indígenas fazendo um movimento contra esse projeto.
Amazônia Real – Durante a Constituinte, havia diálogo com as lideranças indígenas. Hoje há receptividade do Congresso para as demandas dos povos?
Megaron – Naquele tempo a Funai (Fundação Nacional do Índio) dava apoio aos indígenas nos movimentos em Brasília. Era diferente dos dias de hoje. A Funai era outra, o governo era outro, as pessoas eram outras. Hoje, não. O presidente da República é contra nós, o presidente da Funai é contra indígenas, o presidente do Senado, da Câmara devem estar tudo contra nós indígenas porque eles querem aprovar esse projeto. Estamos vendo quem são nossos inimigos, que querem acabar com nós através de papel, não à bala. Eles querem tomar nossas terras. Querem ocupar a terra indígena, querem mandar mineradora, garimpeiro, madeireiro, querem que nós arrendemos as terras indígenas. Essa lei aí nos obriga a arrendar a terra. Antigamente a gente não podia arrendar a terra. Eles querem tomar tudo de nós, indígenas.
Amazônia Real – Então está mais difícil a luta no Congresso Nacional?
Megaron – Está difícil eles aceitarem acordos, conversarem, negociarem com os índios. Está difícil. Jogaram bomba de gás, jogaram spray de pimenta, machucaram dois índios e dois policiais. A gente vai ver a violência agora no campo. Isso vai se refletir lá no campo. Bolsonaro está armando pessoas no campo contra nós, pessoas compram armas, munição; enquanto nós não temos armas. Nós não compramos armas. Se é assim, vamos ter que comprar armas também?
Amazônia Real – Os invasores estão arrogantes, violentos, entram nas terras como se fossem donos, não é?
Megaron – Bolsonaro quer é isso. E tem parente indígena ainda que vai lá tirar foto com ele, vai lá, apoia ele. Nós não apoiamos Bolsonaro, não. Se viu em Brasília [em 23/6, dia de votação do PL na Comissão de Constituição e Justiça], mais de 1.200 indígenas do Brasil fazendo movimento contra. Todos nós indígenas viemos sofrendo desde que chegou o homem branco. Não é só agora que temos esse problema de massacre, envenenamento, de tudo, tomada de terras, extinção de etnias. Não é de hoje que sofremos esses ataques, essas guerras que querem fazer contra nós.
Cristina Ávila fez comunicação na PUCRS e iniciou o jornalismo em pequenos diários de Porto Velho, em Rondônia, onde foi atraída por coberturas sobre meio ambiente, questões indígenas e movimentos sociais. Por mais de duas décadas trabalhou em redações de jornais, especialmente no Correio Braziliense. Em Brasília, entre 2009 e 2015 trabalhou no Ministério do Meio Ambiente, responsável por assuntos como mudanças climáticas e políticas públicas relacionadas a desmatamento. Nesse período teve oportunidade de prestar algumas consultorias ao PNUD. Atualmente atua na imprensa alternativa.
Fonte: Amazônia Real
https://amazoniareal.com.br/bolsonaro-esta-armando-pessoas-no-campo-contra-nos-diz-megaron-txucarramae/