AMAZONIA REAL
Efeito estufa: Impacto da degradação da Amazônia não é contabilizado
Brasil bateu novo recorde de desmatamento durante a COP26
Aldem Bourscheit / PlenaMata / Amazônia Real
A destruição da Amazônia não ocorre só pelo corte raso da floresta, mas também pela extração seletiva de árvores para o comércio de madeira ou com o uso de fogo para eliminar a vegetação. Mas as perdas pela chamada degradaçãoEliminação parcial e gradual da vegetação florestal para a extração seletiva de madeira e de outros recursos naturais. Pode ocorrer também por fogo e alterações climáticas [+] da floresta ainda não entram no cálculo das emissões de gases-estufa, o que gera um retrato distorcido da participação do Brasil nas mudanças climáticas globais.
Uma carta publicada na revista Nature por pesquisadores brasileiros e de outros países endereçada às discussões na COP26, a conferência sobre clima das Nações Unidas em Glasgow (Escócia), que acaba hoje (12), alerta que essas emissões precisam entrar nos balanços nacionais e nos debates climáticos.
Conforme o documento, grandes emissões de carbono são mascaradas porque países amazônicos não avaliam e não informam sobre a degradação florestal (+). Entre 2003 e 2015, as emissões de carbono por incêndios florestais e efeitos de borda foram estimadas em 88% das emissões brutas por desmatamento na Amazônia brasileira. A poluição climática cresce ao longo dos anos pela morte e decomposição de árvores atingidas pelo fogo.
“Conhecer as emissões por degradação em ambientes não adaptados ao fogo, como florestas úmidas com grande estoque de carbono na América do Sul, África e Ásia, ajudará o mundo a ter um cenário mais realista das emissões e das ações que devemos tomar para conter a crise do clima”, ressaltou Luiz Aragão, chefe da Divisão de Observação da Terra e Geoinformática do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) e um dos pesquisadores que assina a carta.
O Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) apresentou um estudo na COP26 mostrando que apenas os incêndios florestais na Amazônia engrossaram em 21% as emissões brasileiras de carbono desde 2005, em relação à década anterior. O gás amplia o efeito estufa e acaba elevando a temperatura média planetária. “Estamos omitindo parte importante das emissões de florestas tropicais como a Amazônia, que são muito afetadas pelo fogo”, destacou Ane Alencar, diretora de Ciência do Ipam em coletiva de imprensa no Brazil Climate Hub. Segundo ela, é necessário melhorar o balanço das emissões-captações e estudos sobre a biomassa queimada antes de incorporar formalmente a degradação ao inventário.
A degradação está comendo a capacidade da floresta absorver o carbono da atmosfera. Precisamos de mais estudos sobre degradaçãopara a Amazônia e demais florestas do mundo para que tenhamos um quadro completo do problema, de forma que o IPCC incorpore a degradação de fogo em sua metodologia.
Paulo Artaxo, professor do Instituto de Física da USP e membro do IPCC
Hoje, os protocolos brasileiros e do IPCC (sigla em inglês para Painel Intergovernamental de Mudança do Clima) não contabilizam as emissões de gases-estufa que não estejam amarradas ao desmatamento. O Brasil tem uma estimativa de poluição climática por degradação, mas não é obrigado a somá-las nos inventários nacionais remetidos às Nações Unidas, diz Paulo Artaxo, professor do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP) e colunista da plataforma PlenaMata. “A degradação está comendo a capacidade da floresta absorver o carbono da atmosfera. Precisamos de mais estudos sobre degradaçãopara a Amazônia e demais florestas do mundo para que tenhamos um quadro completo do problema, de forma que o IPCC incorpore a degradação de fogo em sua metodologia”, reforçou o pesquisador e membro do IPCC.
Munidos com imagens de satélites, pesquisadores do Brasil e dos Estados Unidos descobriram que a degradação da Amazônia por fogo e corte seletivo de árvores para comércio de madeiras superou o desmatamento entre 1992 e 2014. Conforme o estudo publicado na Science, enquanto 308 mil km² foram desmatados no período, uma área quase 10% maior foi degradada, ou 337 mil km².
A diferença cresceu nos últimos anos. Uma análise do InfoAmazonia sobre alertas do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE)Ferramenta do governo federal que gera alertas rápidos para evidências de alteração da cobertura florestal na Amazônia e no Cerrado [+] mostra que a degradação por fogo e perda de cobertura florestal em 2021 (5.217 km² ) é 66% da área desmatada (7.882 km²) na Amazônia Legal em 2021 (de janeiro a 31 de outubro). As cicatrizes de incêndios florestais respondem por quase 41% dessa degradação, ou 3.223 mil km².
“Há um descolamento entre áreas atingidas por desmatamento e por fogo, pois o fogo é usado para abrir pastagens e tende a se deslocar para dentro das florestas. Por isso, políticas para controle do desmatamento não necessariamente atacam as emissões de gases-estufa por fogo. Elas devem ser complementares”, ressaltou Aragão, do INPE.
De acordo com o Ipam, a queima e a decomposição de árvores, folhas e galhos atingidos pelo fogo na Amazônia lançou na atmosfera mundial quase 1,3 bilhão de toneladas de carbono entre 1990 a 2020. Se forem distribuídas ao longo dos 30 anos, as emissões anuais equivalem às do Japão. Florestas degradadas pelo fogo guardam 25% menos carbono do que as preservadas, aponta a ONG.
Apenas de fogo, foram 674 mil focos de calor na Amazônia Legal em 2021 detectados pelo satélite S-NPP/VIIRS da Nasa de janeiro a 31 de outubro. Desse total, 18% dos focos ocorreram em áreas protegidas (10,4% em unidades de conservação federais e estaduais e 7,6% em terras indígenas).
Retrato distorcido
Não pesar as emissões geradas pela degradação da Amazônia amplia o problema de metas insuficientes para cortes de poluentes na contribuição nacionalmente determinada, a NDC brasileira.
Analistas do Política por Inteiro avaliaram que os compromissos que o país apresentará às Nações Unidas, para reduzir pela metade as emissões até 2030 em relação às taxas de 2005, permitem que o Brasil siga prejudicando o clima global até o fim da década. Ou seja, o novo percentual para redução de emissões não compensa o aumento da poluição climática desde 2015, quando o Brasil prometeu cortar 43% do lançamento de gases-estufa. “Para se alinhar ao Acordo de Paris, o Brasil deveria aumentar sua ambição e prometer uma meta maior do que aquela proposta há seis anos”, avalia o estudo.
“A NDC deveria ser uma ferramenta para o Brasil reorientar seus planos de desenvolvimento para uma economia que emita pouco carbono. Sem isso, ela não sinaliza a diferentes setores, aos tomadores de decisões e à sociedade que o país quer um futuro de baixo carbono, que reduz desigualdades sociais e melhora a vida da população, como outras nações estão fazendo”, ressaltou Walter De Simoni, diretor de Articulação Política e Diálogo do Instituto Talanoa.
Não atingiremos nenhuma meta para cortar a poluição climática com esses níveis de desmatamento e de degradação florestal, que aumentam as contas de emissões. Mesmo que zeremos o desmate, muita floresta degradada por fogo e outros impactos seguirá emitindo gases-estufa.
Ane Alencar, diretora do Ipam
O problema nas contas climáticas não é exclusivo do Brasil. Um levantamento do jornal Washington Post mostrou que a grande maioria dos 196 países analisados joga para debaixo do tapete as emissões reais de gases-estufa em seus balanços às Nações Unidas. As emissões subnotificadas pelos países variam de 8,5 bilhões a 13,3 bilhões de toneladas anuais.
Na COP26, o governo brasileiro prometeu zerar o desmatamento ilegal entre 2022 e 2028. Mas alertas do INPE mostram que o desmatamento em outubro na Amazônia superou os 877 km², um dos piores índices da história. O desmate consolidado entre agosto de 2020 e julho deste ano ainda não foi divulgado pelo instituto, como ocorre durante as COPs. “Não atingiremos nenhuma meta para cortar a poluição climática com esses níveis de desmatamento e de degradação florestal, que aumentam as contas de emissões. Mesmo que zeremos o desmate, muita floresta degradada por fogo e outros impactos seguirá emitindo gases-estufa”, arrematou Ane Alencar, do Ipam.
Reportagem do InfoAmazonia para o projeto PlenaMata.
Fonte: Amazônia Real
https://infoamazonia.org/2021/11/12/cop26-degradacao-amazonia-emissoes-gases-estufa/
Amazônia Real: PCC amplia atuação na Terra Indígena Yanomami
Prisão do foragido Janderson Edmilson Alves, ligado ao PCC, dá pistas para autoridades policiais desvendarem a atuação da facção criminosa nos garimpos. A imagem acima é uma colagem de frames do vídeo divulgado nas redes sociais, atribuído a integrantes do PCC na região do Palimiu
Emily Costa / Amazônia Real
Boa Vista (RR) – A prisão do foragido Janderson Edmilson Cavalcante Alves, de 30 anos, ligado ao PCC, abriu uma nova frente de investigação sobre as atividades criminais que ocorrem dentro do garimpo ilegal na Terra Indígena (TI) Yanomami. Para autoridades policiais de Roraima, membros da facção de São Paulo estão atuando para traficar drogas, servir de segurança para os garimpeiros, ganhar dinheiro com maquinários e realizar os chamados “crimes de mando”, que são homicídios e roubos por encomenda.
A Amazônia Real denunciou, em primeira mão, em 10 de maio, a presença do PCC no garimpo ilegal. A data marca o primeiro de uma série de ataques armados e ações violentas contra a aldeia Palimiu e outras comunidades da TI Yanomami. Os ataques não cessaram desde então. Janderson, recém-chegado ao garimpo, é um dos suspeitos de participar do ataque do dia 10 de maio.
Uma ação conjunta das forças policiais que atuam no combate ao crime organizado em Roraima prendeu Janderson no último dia 9 de agosto, em Boa Vista. Logo após a prisão, as autoridades policiais confirmaram que ele aparece em uma gravação que mostra homens fortemente armados e mascarados navegando pelo rio Uraricoera, que corta parte do Território Yanomami. “Quem manda aqui é nós [sic]. Nós é a guerra, neguinho”, diz o narrador.
As imagens, segundo a PF, foram gravadas antes do primeiro ataque armado à comunidade. Em 10 de maio, dois meninos Yanomami de 1 e 5 anos fugiram pra escapar dos tiros e morreram afogados. No dia seguinte, agentes do Grupo de Pronta Intervenção da PF, que foram à Palimiu, também foram atacados a tiros e revidaram.
DESMATAMENTO E GARIMPO NA AMAZÔNIA
Roney Cruz, chefe da Divisão de Inteligência e Captura (Dicap), órgão subordinado ao Sistema Penitenciário da Secretaria de Estado da Justiça e Cidadania, participou da prisão de Janderson Edmilson. O criminoso era procurado havia anos, inclusive na Venezuela. Em novembro de 2013, ele estava preso por tráfico e associação para o tráfico quando fugiu com outros nove presos da Penitenciária Agrícola de Monte Cristo, em Boa Vista. Naquela época, o PCC começava a operar em Roraima e ocorriam fugas em massa da penitenciária, construída inicialmente só para presos do regime semi-aberto.
Em entrevista à Amazônia Real, Roney Cruz disse que, após a fuga em Boa Vista, Janderson ficou por alguns anos no país vizinho, onde também teria ligação com o crime organizado. Em dezembro de 2019, Janderson se envolveu em um roubo de 100 fuzis em um quartel do Exército da Venezuela, na Gran Sabana, na região de fronteira, e fugiu para o Brasil.
“Acreditamos que nessa época, para fugir da polícia na Venezuela, ele foi para os garimpos, para onde inclusive também foram levados alguns desses fuzis”, disse Roney, acrescentando que a ida recente de Janderson Edmilson para Boa Vista teve relação com outro crime ocorrido no garimpo.
A Dicap obteve a informação de que houve um conflito entre os próprios criminosos, que resultou no assassinato de um deles, que também estava na ação contra Palimiu. Janderson foi apontado como um dos participantes do crime. Isso o obrigou a abandonar o garimpo, onde estava “protegido”, e acabou sendo preso em Boa Vista.
De acordo com a PF, Janderson Edmilson atuava no tráfico de drogas e realizava escoltas armadas de garimpeiros dentro do Território Yanomami. Em depoimento à PF, Janderson negou ligação com os ataques à aldeia Palimiu, mas confirmou ser “companheiro do PCC”. Ele disse ainda que foi convidado a se batizar na facção quando ainda estava na região de fronteira da Venezuela, mas não quis. Ao ser preso, ele tinha uma pistola 380, 41 munições e mais de 7 mil reais.
O PCC no garimpo
A escalada da violência na TI Yanomami por causa do garimpo foi denunciada na série de reportagens ‘Ouro do Sangue Yanomami’, publicada em 24 de junho. Em quatro meses de apuração, as equipes da Amazônia Real e da Repórter Brasil investigaram como funciona a cadeia do comércio ilegal de ouro no Brasil. Uma das reportagens mostra como o PCC se aproximou de garimpeiros. “O ouro é a melhor forma de lavar dinheiro hoje”, afirmou o procurador da República Paulo de Tarso Moreira Oliveira, da região de Itaituba, no Pará.
“A questão do garimpo é muito complexa. Então existem questões de desavenças, brigas entre eles mesmos e acontecem muitos crimes, roubos e homicídios. Para se ter ideia, levantamos que um foragido também do PCC que morreu em fevereiro deste ano em troca de tiros com a polícia tinha envolvimento com mais de 20 assassinatos no garimpo”, disse Roney Cruz à Amazônia Real.
Segundo o chefe da Dicap, há informações de que o PCC também está levando criminosos para atuarem nos garimpos. “Não é recrutamento para o PCC, porque eles já fazem parte da organização, então o que fazem é dar um apoio para esses criminosos irem para o garimpo”, acrescentou.
Roney Cruz afirmou que o garimpo se tornou um local atrativo para os criminosos pela possibilidade de se manterem escondidos da polícia. “Crimes em área de garimpo dificilmente estão sendo investigados, porque não há condições técnicas. É uma amplitude muito grande. A faixa de terra indígena e de atuação dos garimpeiros é muito grande, o que torna complexa a atuação da polícia”, explicou.
A presença de criminosos atuando nos garimpos da Terra Yanomami não é nova, mas houve um “aumento gigantesco” em 2021, de acordo com Cruz. “Isso começou com foragidos indo por conta própria, e recentemente, passou a acontecer isso de levarem criminosos, de sugerir: ‘Ah, vai sair na Saída Temporária (do sistema prisional)? Dá um tempo da cidade, vamos para o garimpo, não fica no sistema (prisional) não’. Porque como eles dizem o sistema está ‘venenoso’, porque houve uma reorganização do sistema prisional no estado”.
Desde 2019, o sistema prisional do estado está sob atuação da Força-Tarefa de Intervenção Penitenciária (Ftip). O foco da intervenção federal é a Penitenciária Agrícola de Monte Cristo, que após os massacres de 2016 e 2017, passou a concentrar presos ligados ao PCC.
Ameaça em vídeo
A gravação em que Janderson Edmilson aparece tem 14 segundos e mostra 12 homens em um barco do tipo voadeira. Os que usam balaclava estão armados. Eles exibem sete armas, entre elas um provável rifle calibre 32 e uma espingarda 12.
Após exibir as armas, o narrador diz: “Aí, é nós, olha nós, olha nós, olha nós. Mostrar aqui, meu compadre. Essa porra, negócio de índio mandar, quem manda é nós. Quem manda é nós, porra. Hoje nós vamos ver como é que funciona o bagulho. Olha. Olha. Olha. Nós é a guerra, neguinho”. Na cena, ainda é possível ver barcos passando ao fundo.
A gravação foi publicada pelos próprios criminosos em redes sociais e acabou indo parar nas mãos da polícia. O narrador do vídeo foi identificado como José Hilton Bezerra de Oliveira, o ‘Lourinho da Gávea’. Em março de 2020, ele foi preso em flagrante por tráfico de drogas e até agosto estava preso na Penitenciária Agrícola de Monte Cristo, quando foi posto em liberdade pela Justiça.
Outros criminosos vistos no vídeo já foram identificados, exceto aqueles que usavam balaclava para esconder o rosto. “Um deles usa, inclusive, um colete que pode ter sido perdido ou furtado de um policial, pois tem a logo da Senasp (Secretaria Nacional de Segurança Pública)”, observou Cruz.
Em 10 de maio, os ataques a tiros contra a aldeia também partiram de barcos que passavam pelo rio Uraricoera. Além desse ataque, outras 13 investidas contra aldeias também foram relatadas pelos Yanomami na mesma região entre fevereiro e junho.
Em 31 de maio, a base do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) na Ilha de Maracá, às margens do Uraricoera, também foi alvo de criminosos encapuzados e armados que roubaram diversos materiais, parte deles apreendidos em uma fiscalização recente contra o garimpo ilegal na região.
‘Medo do crime organizado’
“As comunidades já sabem. Essa informação estourou, do crime organizado, e os Yanomami estão preocupados, com medo. A gente traduziu na radiofonia, conversando com as lideranças e eles ficaram com muito medo do crime organizado”, disse Dário Kopenawa Yanomami, vice-presidente da Hutukara Associação Yanomami, à Amazônia Real.
Segundo Dário Kopenawa, há meses os Yanomami vinham relatando a presença de homens “estranhos”, mascarados e armados, mas não se sabia quem eram eles.
“As lideranças fizeram uma denúncia do que ocorre em garimpos maiores como Tatuzão, Waikas e Parima. Eles contratam essas pessoas de segurança lá, entre eles”, disse. “Eles têm maquinários, tem uns colegas que os chefes do garimpo contratam tipo como guarda-costas, para proteção entre eles. É um esquema deles. A gente não sabe como funciona a situação deles, mas esses grupos estão no meio dos garimpeiros locais e dentro da Terra Indígena Yanomami.”
A TI Yanomami é alvo de mineradores, empresários, políticos e garimpeiros de várias partes do Brasil desde a década de 1970. Desde então viveu distintos ciclos de extração ilegal, sempre tendo como consequência uma explosão da devastação da floresta amazônica e um aumento exponencial da população. Hoje, são estimados mais de 26 mil garimpeiros invasores da TI.
Dário afirmou que os garimpos ilegal permanecem ativos mesmo com as operações recentes de forças-tarefas do governo federal. O caos reina e as autoridades se omitem diante de crimes que ameaçam os Yanomami. No fim de julho, em Homoxi, um Yanomami foi atropelado por um avião de garimpo e morreu.
“O garimpo continua crescendo nos rios Uraricoera, Alto Mucajaí, o rio Apiaú e o rio Catrimani. Tem muitos aviões indo para o território, helicóptero, e também barcos. É uma circulação muito grande que só piora. Regiões como Tatuzão, Waikás, Papiu, Homoxi, Xitei, Parafuri, essas regiões são mais impactadas, o garimpo está crescendo rápido nessas regiões. Os Yanomami lá estão sofrendo”, desabafou Dário.
Emily Costa é formada em Jornalismo e mestranda em Comunicação Social pela Universidade Federal de Roraima (UFRR). Iniciou a carreira de jornalista como repórter no portal G1. Consultora em comunicação, se interessa por coberturas relacionadas a migrações, questões humanitárias, povos indígenas e meio ambiente. (emilycosta@amazoniareal.com.br)
O Brasil mata a Amazônia. Floresta está sendo substituída por uma savana
Principalmente por causa dos desmatamentos e das queimadas, a Amazônia já emite mais carbono do que é capaz de absorver. Da metade do Pará para cima, até o norte de Mato Grosso, a floresta amazônica está sendo substituída por uma savana. Em alguns trechos, a hileia já desapareceu por completo. A Amazônia virou sertão. O período de estiagem se alonga, as temperaturas sobem e as chuvas se tornam irregulares.
Esse diagnóstico foi apresentado por Luciana Gatti, líder de uma equipe em uma pesquisa realizada de 2010 a 2018, medindo os níveis de dióxido de carbono em quatro localidades da Amazônia. As maiores taxas de liberação do gás de efeito estufa foram registradas justamente nas regiões que mais sofreram desmatamento.
O estudo revelou o que os observadores que viajam pelo interior da região constatam já fazem alguns anos: a parte leste da Amazônia, com aproximadamente 2 milhões de quilômetros quadrados, está 30% desmatada, em média, enquanto na parte oeste o índice é de 11%. A diferença pode parecer significativa, mas não é. O avanço mais massivo sobre a parte ocidental da Amazônia começou na década de 1950. Na parte ocidental, só se intensificou meio século depois. A velocidade, portanto, é espantosamente maior.
Não só por esse fator. A agressividade contra a natureza e os seus mais antigos habitantes da região (de índios a caboclos) é a mesma que orientou a ocupação da Amazônia pela pata do boi, incentivada pela colaboração financeira do governo federal com a formação de fazendas rudimentares, a maioria das quais fracassou sob todos os critérios de avaliação.
Parece que não contam, foram esquecidos ou desprezados os 70 anos de experiência negativa de avanço sobre as florestas densas das áreas mais altas da região, cortadas por longas estradas nas direções sul-norte, como a Belém-Brasília, a Cuiabá-Santarém e a Porto Velho-Manaus, e leste-oeste, como a Transamazônica e a BR-364.
O governo central foi ativo e decisivo no estímulo a essas frentes pioneiras, inclusive através de pesados financiamentos de capital, que nunca retornaram. Mas se omitiu na regulação das relações sociais e econômicas e no combate ás ilegalidades e violências que caracterizam a expansão por áreas novas e isoladas.
Ainda assim, nem nos 21 anos da ditadura militar, para a qual a ocupação acelerada da Amazônia era considerada vital para garantir a soberania nacional, pelo molde da doutrina de segurança nacional, e para a montagem de uma nova base produtiva capaz de chegar ao mercado internacional (com minério, gado e soja), se viu o triste espetáculo proporcionado pelos pioneiros na área de expansão do sudoeste do Pará, em Novo Progresso. Eles escolheram um dia de outubro de 2019, no final do verão, período de mais intensas queimadas, para tocar fogo na floresta.
De rosto limpo, perfeitamente identificados, cheios de sentimentos patrióticos, convencidos de estarem respondendo ao comando do presidente da república, o ex-capitão do Exército Jair Bolsonaro, para expandir a produção agropecuária da Amazônia.
Para tal, esse Brasil está matando a Amazônia. Tem matado com fúria crescente desde então, à palavra de ordem do comandante, el supremo.
Além de colaborar com a agência Amazônia Real, Lúcio Flávio Pinto mantém quatro blogs, que podem ser consultados gratuitamente nos seguintes endereços:
* lucioflaviopinto.wordpress.com – acompanhamento sintonizado no dia a dia.
* valeqvale.wordpress.com – inteiramente dedicado à maior mineradora do país, dona de Carajás, a maior província mineral do mundo.
* amazoniahj.wordpress.com – uma enciclopédia da Amazônia contemporânea, já com centenas de verbetes, num banco de dados único, sem igual.
* cabanagem180.wordpress.com – documentos e análises sobre a maior rebelião popular da história do Brasil.
*Lúcio Flávio Pinto é jornalista desde 1966. Sociólogo formado pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo, em 1973. Editor do Jornal Pessoal, publicação alternativa que circula em Belém (PA) desde 1987. Autor de mais de 20 livros sobre a Amazônia, entre eles, Guerra Amazônica, Jornalismo na linha de tiro e Contra o Poder. Por seu trabalho em defesa da verdade e contra as injustiças sociais, recebeu em Roma, em 1997, o prêmio Colombe d’oro per La Pace. Em 2005 recebeu o prêmio anual do Comittee for Jornalists Protection (CPJ), em Nova York, pela defesa da Amazônia e dos direitos humanos. Lúcio Flávio é o único jornalista brasileiro eleito entre os 100 heróis da liberdade de imprensa, pela organização internacional Repórteres Sem Fronteiras em 2014. Acesse o novo site do jornalista aqui www.lucioflaviopinto.com.
Amazônia Real: Céu sem lei é controlado por garimpeiros
Por Maria Fernanda Ribeiro, da Amazônia Real
“Vocês verão muitas coisas ruins do avião; altos maquinários. Você vai se sentir triste, como nunca viu, como uma pessoa que entra na sua casa e estraga seu terreno. Vai ver que estamos falando a verdade. Você pode olhar, para você acreditar”, alertou o líder indígena Davi Kopenawa Yanomami. Reconhecido mundialmente como um grande defensor na luta pelos direitos da Terra Indígena Yanomami (TIY), Davi Kopenawa autorizou o sobrevoo feito no dia 30 de abril pela reportagem sobre as áreas de garimpo ilegal. Ele sabia que haveria riscos.
O avião da reportagem partiu de Boa Vista, capital de Roraima, e demorou uma hora até chegar à primeira área de garimpo. O verde da floresta amazônica predominava na paisagem nos primeiros 30 minutos de sobrevoo, já dentro dos limites da TIY, quando um avião de pequeno porte cruzou na frente da aeronave que transportava a reportagem. Localizada no extremo Norte do Brasil, a terra indígena de 9,6 milhões de hectares fica entre os estados de Roraima e Amazonas, e se estende até a fronteira com a Venezuela. À medida que as imagens da devastação do garimpo ilegal avançavam, aumentava também a presença de aviões e helicópteros que sobrevoavam o local, como se céu e terra pertencessem aos garimpeiros ilegais. É a quarta grande corrida do ouro desde os anos 1970.
A Amazônia Real se uniu à Repórter Brasil para investigar a fundo o problema do garimpo ilegal na maior terra indígena do Brasil. Foram quatro meses de apuração e a análise de mais de 5 mil páginas de documentos para traçar a rota do ouro, identificar as principais empresas compradoras, compreender as fragilidades na legislação (que isenta os compradores de qualquer responsabilidade), destrinchar o antigo interesse dos políticos na atividade e revelar como a rápida aproximação do garimpo com o tráfico internacional de drogas. A investigação teve acesso a dois inquéritos da Polícia Federal por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI) e às acusações do Ministério Público Federal, feitas com base em operações de combate ao garimpo na TI Yanomami feitas desde 2012.
O especial Ouro do Sangue Yanomami – que conta com sete reportagens produzidas – mostra que nesse exato instante há uma profusão de atores se enriquecendo com a atividade ilegal nas terras indígenas do país. É um crime contínuo, defendido pelo governo do presidente Jair Bolsonaro e tolerado pela sociedade.
Os voos irregulares
A bordo de um avião modelo Caravan, a equipe de reportagem da Amazônia Real sobrevoou cinco pontos da TI Yanomami em abril deste ano, duas semanas antes dos ataques a tiros à comunidade Palimiu por garimpeiros ligados à facção criminosa PCC (Primeiro Comando da Capital). Paapiu, Homoxi, Xitei, Parima e Waikás foram as áreas identificadas pela Hutukara Associação Yanomami (HAY) por serem as mais críticas. É onde há muitos garimpeiros, presença ostensiva de balsas, de maquinários e voadeiras, contaminação das águas por mercúrio e extração das árvores em larga escala.
Aviões e helicópteros, mesmo voando de maneira irregular, parecem não se incomodar e muito menos temer o fato de estarem invadindo um espaço aéreo. É como se ali nem existissem os três Pelotões Especiais de Fronteira do Exército para impedi-los. Em céu de garimpeiro, eles dão as ordens.
Na região do Homoxi, um dos aviões permaneceu voando em círculos abaixo do Caravan da reportagem até que fôssemos embora. O risco de “levar tiro de garimpeiro”, expressado pelo piloto, impediu que voássemos mais baixo e acelerou a passagem do avião por algumas áreas garimpeiras para não chamar a atenção.
Em uma conversa de piloto para piloto, o que trabalhava para os garimpeiros perguntou ao que conduzia a equipe de reportagem quem é que estava na aeronave e se ele iria pousar. O piloto optou por não contar que estava com um fotógrafo e uma repórter a bordo. Segundo ele, era mais seguro seguir assim.
As aeronaves em áreas de mineração cumprem funções essenciais: transportar sondas, bombas, motosserras, calhas de lavagem, mangueiras, detectores de metais e o mercúrio, necessários para a mineração do ouro, suprimentos para manter os garimpeiros confinados por semanas e deixar claro que ali há donos. São eles que recolhem a pedra preciosa, prospectam novas lavras e mantêm a atividade aurífera a pleno vapor. Os produtores rurais repetem um mantra: “Olho de dono é que engorda boi”. No garimpo, o boi se chama ouro.
O rastro de destruição
Nas duas horas de duração do sobrevoo, o rastro de destruição causado pelo garimpo ilegal é constante. Há poucos locais em que a vista descansa para apreciar os trechos de floresta preservada sem invasores e os imensos buracos causados por homens e máquinas à procura de ouro. A proximidade das lavras garimpeiras, dos acampamentos não indígenas e de pistas clandestinas com as malocas e roçados das comunidades Yanomami mostra a ousadia dos invasores na certeza da impunidade.
Leia mais sobre as aeronaves ligadas à atividade garimpeira
Invasores que parecem porcos com fome, como afirma Davi Kopenawa. “Homem garimpeiro é como um porco de criação da cidade, faz muito buraco procurando ouro e diamante.” Kopenawa já presenciou a consequência e a violência das invasões com o episódio do massacre de Haximu, no Alto Orinoco, na Venezuela, em 1993, quando garimpeiros armados, numa série de ataques a tiros e facas, mataram 16 Yanomami. Foi o primeiro caso de genocídio reconhecido pela Justiça brasileira. Davi teme ver a história se repetir.
Sobrevoando a uma altura de 2 mil pés (600 metros do solo), a reportagem flagrou invasores trabalhando nas imensas crateras para extrair o ouro das cavas e dos barrancos. É intensa a movimentação de embarcações nos rios para abastecimento do garimpo. De cima, é nítido o funcionamento de uma complexa organização logística terrestre, fluvial e aérea que viabiliza a extração ilegal desse ouro de aluvião na TI Yanomami em uma escala intensa e frenética.
O relatório “Cicatrizes na Floresta – Evolução do Garimpo Ilegal na Terra Indígena Yanomami”, lançado em março de 2021 pela Hutukara Associação Yanomami (HAY) e Associação Wanasseduume Ye’kwana (Seduume), aponta cerca de 20 mil garimpeiros ilegais no território. No entanto, os próprios garimpeiros dão um número maior. Segundo o aviador e histórico minerador José Altino Machado seriam mais de 26 mil homens nesta que é conhecida como a quarta corrida do ouro em Roraima. Zé Altino, como é mais conhecido, é presidente da União Sindical dos Garimpeiros da Amazônia Legal e foi o responsável pela primeira e segunda invasões no território nos anos 1970 e 1980.
Leia mais sobre Zé Altino, memória-viva do garimpo
Pistas clandestinas
Além dos aviões e helicópteros, dos maquinários, das balsas e voadeiras previamente antecipadas por Davi Kopenawa, há incontáveis pistas clandestinas, de diferentes tamanhos, que rasgam a floresta. Algumas são coladas às malocas dos Yanomami. Assim como balsas e maquinários pesados, que também estão próximos de algumas comunidades e dos roçados indígenas.
Na região do Homoxi, na fronteira com a Venezuela, os garimpeiros levantaram um alojamento a alguns metros de distância de uma comunidade. De um lado da margem de um igarapé contaminado pela ação do mercúrio, uma grande maloca e mais duas menores aparecem circundadas pela área de roçado, onde é cultivado o alimento de toda a aldeia. Do outro lado da margem, está o acampamento dos invasores. A cena é marcada por lavras de garimpo, rio assoreado, imensos buracos de terra escavada e as lagoas de sedimentos deixados pela fúria da atividade ilegal.
São muitas as cicatrizes deixadas pelos garimpeiros na TI Yanomami. Uma vez exaurida a extração do ouro, é hora de levantar o acampamento, recolhendo as improvisadas barracas de lonas azuis para serem usadas num outro ponto de garimpagem. Se a lavra for “rentável”, os garimpeiros ficam meses nela. Caso contrário, partem para outra localidade no que eles consideram ser uma terra sem dono. Em uma lavra, a concentração de um metal tão raro quanto o ouro é de apenas alguns gramas por tonelada de terra minerada.
A Força Aérea Brasileira, segundo o Ministério da Defesa, faz o monitoramento do espaço aéreo 24 horas por dia, e caso haja aeronaves suspeitas e não identificadas sobrevoando a TI Yanomami, há procedimentos de interceptação. Em nota enviada à reportagem, o ministério afirma atuar “permanentemente no combate a delitos transfronteiriços e ambientais” e que as ações são coordenadas pelo Centro de Operações Militares 4, do 4º Centro Integrado de Defesa Aérea e Controle de Tráfego Aéreo (Cindacta), localizado em Manaus.
2.430 hectares destruídos
Tal avizinhamento e o risco que isso acarreta foram alvo de denúncia no relatório produzido pelos Yanomami. De um lado, há o agravamento no quadro epidemiológico, como a disparada nos casos de Covid-19 e malária. Com o desmate florestal, a proliferação do mosquito Anopheles é facilitada, potencializando a disseminação da doença. Entre 2014 e 2019, os casos de malária quintuplicaram na TI Yanomami. E o garimpo também está relacionado a altas taxas de contaminação por mercúrio, usado para separar o ouro (o metal pesado e tóxico cria um amálgama que depois, ao ser incinerado, se volatiza e é levado pelo vento), causando danos de longo prazo e irreversíveis na saúde dos indígenas, além de gerar desestruturação econômica e levar a conflitos violentos.
O tamanho da destruição do garimpo ilegal do ouro já chega a 2.430 hectares na TI Yanomami, o equivalente a 2.430 campos de futebol, segundo o relatório mais recente da HAY, divulgado em maio deste ano. Somente em 2020, a degradação avançou 500 hectares, associada à intensificação do uso de material pesado e sofisticado para a extração do minério. A atividade garimpeira se prolifera no território, subindo os rios, com crescentes núcleos de invasores e novas rotas de acesso ao interior da floresta amazônica.
A região do Waikás, conhecida como Tatuzão do Mutum, continua no topo do ranking da devastação. Em 2017, o local contava com uma estrutura até então inédita em terras indígenas de Roraima, com casas, mercearia, pontos de acesso à internet e cabeleireiros.
É possível avistar pela janela do avião que, mesmo a área já tendo sido alvo de operações do Exército, a atividade clandestina continua a funcionar com alojamentos instalados ao longo do leito do rio Uraricoera, mas também adentrando a mata. Waikás já teve cerca de 35% do total de suas terras degradadas.
A área fica a poucos minutos da comunidade Palimiu, onde aconteceram os primeiros ataques a tiros contra o povo Yanomami por garimpeiros ligados ao PCC, conforme noticiou em primeira mão a Amazônia Real. A sensação, mesmo do alto, é de destruição acelerada e de impotência. Como disse Kopenawa à reportagem: “nossos inimigos são muitos e nós somos poucos”.
Esse ouro é valioso para o povo da cidade. As pessoas usam no pescoço, no nariz, para ficarem bonitas e para fazerem casamento. Pra mim, é uma cultura diferente. Mas esse ouro é sujo, é ouro cheio de sangue do meu povo Yanomami. É ouro que mata a natureza, mata a vida da água, a água está tá morta. Eu não gosto de ver uma mulher, um homem, usando ouro cheio de sangue do meu povo Yanomami.
DAVI KOPENAWA YANOMAMI
Fonte:
Amazônia Real