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Garimpo causa má formação e desnutrição em crianças Yanomami

Mães Yanomami relataram vários dramas nas comunidades, onde a violência e as ameaças dos invasores não dão trégua  

Ana Lucia Montel / Amazônia Real

Boa Vista (RR) – O futuro dos Yanomami está ameaçado. Crianças estão nascendo com má formação por consequência do garimpo ilegal. Algumas mães são obrigadas a enterrar as que não sobrevivem. Outras têm de lidar com a interrupção da gestação. Os filhos sobreviventes correm o risco de sofrer com a desnutrição. A água dos rios está suja de mercúrio, contaminando os peixes e as caças. Amamentar se tornou um perigo. E doenças que poderiam ser facilmente tratadas, como malária, diarreia e pneumonia, já mataram dezenas de crianças entre 2020  e 2021 em comunidades da etnia, denunciou o II Fórum de Lideranças Yanomami e Ye’kwana.

Não é de hoje que o garimpo de extração ilegal de ouro traz graves consequências para os povos indígenas do Brasil. O que o II Fórum de Lideranças Yanomami e Ye’kwana alertou é mais preocupante: o futuro dos povos que vivem neste território está ameaçado. 

“O mercúrio está contaminando os rios e nossas famílias, na comunidade  Palimiu, na Terra Indígena (TI) Yanomami em Roraima, já nasceram crianças com má formação. Nossos parentes estão morrendo de doenças simples, de fácil tratamento, porque não têm atenção de saúde básica. Se não fossem os remédios tradicionais e os xapiri (médicos das florestas), mais gente ia morrer”, alertou o documento elaborado pelas lideranças dos povos Yanomami e Ye’kwana. 

Como uma resposta diante aos ataques sofridos pelos Yanomami, o II  Fórum ocorreu entre 4 e 7 de setembro na região da Tabalascada, município do Cantá, ao norte de Roraima. Foi um momento de união, conversas e resistência desses povos. Danças, rituais, pinturas e cantos reforçaram ainda mais a vontade de continuar na luta em defesa da terra, da água, de ar puro e principalmente de um futuro cada vez mais ameaçado. Ao acompanhar o fórum, a equipe da Amazônia Real notou cada olhar, fala, lágrimas e esperança daqueles que já lutaram por garantias de direitos, e hoje fazem parte da linha de frente na defesa da vida dos povos originários do Brasil.

Leila Yanomami durante debate sobre saúde indígena no II Fórum de Lideranças Yanomami e Ye’Kwuana (Foto: Adriana Duarte/ISA)

“Eu só quero que olhem para a gente como ser humano, como mulheres que não merecem todo dia estar enterrando seus filhos”, afirmou Neila Paliwithele, 59 anos, moradora de Palimiu. Desde o início de maio deste ano, a comunidade sofre violentos ataques de garimpeiros. A Amazônia Real foi o primeiro veículo de comunicação a noticiar a invasão da facção criminosa PCC no garimpo na TI Yanomami.

“Todo mundo já sabe que a saúde para o povo Yanomami não é boa, mas para nós que somos mães muitas vezes não chega nem a existir. Tem crianças nascendo deficiente, muitas mães estão perdendo seus bebês, estamos sem direito a nosso futuro, pela destruição do branco”, desabafou Neila Paliwithele.

Entre as doenças que afetam as crianças, as mais recorrentes são malária, diarreia e pneumonia. Neila disse que na maioria das vezes as equipes médicas só chegam nas comunidades quando não há mais nada o que fazer. As crianças já estão mortas. Isso quando chegam. “Só chegam para querer enterrar nossas crianças. Mas nós não precisamos de ninguém para enterrar nossos mortos. Isso nós mesmos fazemos conforme nossa cultura, que nem isso é respeitada.”

No documento produzido para o II Fórum de Lideranças, há o relato de dezenas de crianças mortas nas seguintes comunidade: Kayanau (12 mortes em 2020), Palimiu (13 entre 2020 e 2021, de diarreia e pneumonia), Haxiu (4 neste ano), Baixo Mucajaí (3 em 2021), Marauiá (4 entre 2020 e 2021, de malária), Baixo Catrimani (2 crianças neste ano, de pneumonia), Korekoma (3 de pneumonia, no ano passado) e Keeta (5 entre maio e julho por falta de atendimento). Em janeiro inteiro deste ano, o polo da comunidade Surucucu ficou fechado e 54 Yanomami, adultos e crianças, morreram.

Seja por morte, doença ou desaparecimento, os Yanomami choram todos os dias a falta dos seus filhos. Neila é uma dessas mães que espera até hoje o retorno do filho. “Quando os garimpeiros atacaram nossa comunidade, meu filho com medo correu para o mato. Isso foi já faz meses, até hoje ele não voltou. O garimpo destrói nossa floresta, destrói nossos rios, nossos alimentos, nossa convivência e ainda tira da gente o direito de ser mãe”, finalizou com uma expressão de cansaço e lágrimas nos olhos ao falar da saudade que está do seu filho.

Mais do que a missão de elaborar documentos relatando os problemas enfrentados pelos indígenas, o II Fórum mostrou essa luta das mães para preservar o futuro dos Yanomami. Em meio às várias falas, uma liderança mãe trouxe a realidade da luta das mulheres Yanomami. “Eu sou mulher, mas não tenho medo, vou defender minha a nossa terra até meu ultimo dia. Nós, mulheres, também estamos lutando, somos fortes assim como a mãe natureza, que mesmo diante de todo ataque está resistindo, está viva. Eu sou mãe e aprendi a lutar como a mãe natureza”, disse a liderança.

Desnutrição de mães e filhos

Ana Lice Yanomami, 45 anos (Foto: Ana Lúcia Montel/Amazônia Real)

Na comunidade de Ana Lice Yanomami, no Baixo Rio Mucajaí, já morreram mais de três crianças esse ano. Com os rios poluídos com mercúrio, as crianças estão deixando de querer comer peixe e carne de caça. Reclamam do gosto da comida, provavelmente já contaminada. “Eles sabem que a comida está suja por causa do garimpo; eu não sei mais nem o que fazer”, lamentou.

A desnutrição, que já foi um dos principais problemas de saúde e hoje se reduziu drasticamente nacionalmente, é outra realidade que ameaça o futuro dos Yanomami. Mães e crianças apresentam baixa estatura e não é de hoje. Em outras palavras, há gerações esse problema se perpetua, o que reforça a hipótese de transmissão da desnutrição crônica intergeracional nesta etnia. É o que afirma um estudo publicado por Jesem Orellana e outros pesquisadores.

Ana Lice reforça essa questão. “Estão muito desnutridos, a maioria das crianças está como peso muito baixo. O pior é que não podemos fazer muita coisa, não tem equipe de saúde para examinar. Nossa comida está toda contaminada, até as mães que estão amamentando estão sofrendo, muitas estão desnutridas também, quando falamos que o garimpo tem que acabar, é porque quem está sofrendo somos nós”, afirmou. 

Em maio deste ano, uma criança Yanomami da comunidade Homoxi morreu ao ser negado atendimento médico porque ela era de nacionalidade venezuelana. “Não importa a nacionalidade, o fato de sermos indígenas Yanomami eles não fazem nada. Estamos tentando avisar a sociedade, mas ninguém quer escutar”, disse Ana Lice. 

“Senhor Bolsonaro, você tem que  parar de mandar seus filhos garimpeiros destruir nossa terra, nós estamos chorando na nossa terra. Bolsonaro, você tem que entender que o índio vive dentro da floresta. Estou com raiva, nossos filhos estão nascendo deficiente e a culpa é de vocês”, finalizou Ana Lice, que participou pela primeira vez do fórum de lideranças.

O documento elaborado pelo II Fórum de lideranças Yanomami e Ye’Kwuana lembra como a saúde indígena atendia às necessidades dos povos indígenas. As aldeias possuíam rádios que funcionavam, os postos de saúde estavam abastecidos, havia uma estrutura que dava conta de cuidar dos Yanomami. “Os médicos visitavam as comunidades com frequência e buscavam entender nossa cultura para saber como estava a saúde de cada um de nós, antigamente não faltava remédio para doenças simples, por isso a saúde era boa”, diz  o documento entregue às autoridades.  

Descaso no atendimento 

Angelita Prororita Yanomami, da comunidade Jamani no Amazonas
(Foto: Ana Lúcia Montel/Amazônia Real)

Angelita Prororita Yanomami, de 32 anos, da comunidade Jamani no Amazonas, relatou sua experiência como a única intérprete da língua Yanomami de Roraima. Hoje, ela trabalha na Maternidade Nossa Senhora de Nazareth, em Boa Vista. “Se as mães Yanomami já não têm atendimento nas comunidades, quando procuram na cidade a situação é ainda pior: só tem eu de intérprete Yanomami aqui em Roraima, quando as mães chegam nos hospitais o tratamento não é nada humanizado”, relatou Angelita à Amazônia Real.

Para Angelita, muitas das mães Yanomami não procuram atendimento nos hospitais da cidade por receio de não serem atendidas. “Quando essas mulheres chegam na maternidade e veem que estou ali, elas se sentem mais seguras em dizer o que estão sentindo, em serem atendidas”, disse. Sempre que chega uma mulher Yanomami, a intérprete apressa em intermediar a comunicação, “porque quando não estou lá, o atendimento dessas mulheres vai sendo deixado para depois”. Se Angelita não está, muitas até desistem e vão embora.

“Nos hospitais de Boa Vista, o que você mais vê é Yanomami pelo chão, deitados nos corredores. Isso não é novidade, mas as pessoas fecham os olhos, preferem colocar culpa no meu povo do que cobrar atendimento adequado. Temos direitos como qualquer outro cidadão. Saúde é um direito básico, que para os Yanomami não existe, nem na comunidade, nem na cidade, em lugar nenhum”, protestou Angelita.

Problemas burocráticos


II Fórum de Lideranças Yanomami e Ye’Kwuana. (Foto: Adriana Duarte/ISA)
Ruthe Yanomami durante debate sobre Saúde indígena, mesas de trabalho por território. II Fórum de Lideranças Yanomami e Ye’Kwuana (Foto: Adriana Duarte/ISA)
Érica Vilela. II Fórum de Lideranças Yanomami e Ye’Kwuana (Foto: Adriana Duarte/ISA)
Alfredo Yanomami (direita) no debate sobre saúde indígena. II Fórum de Lideranças Yanomami e Ye’Kwuana (Foto: Adriana Duarte/ISA)
Romeu e Manoel Yanomami. Ritual com Horoma para escutar os Xapiri. II Fórum de Lideranças Yanomami e Ye’Kwuana (Foto: Adriana Duarte/ISA)
Júlio Ye'kwana durante o debate sobre garimpo. II Fórum de Lideranças Yanomami e Ye’Kwuana (Foto: Adriana Duarte/ISA)
Dário Yanomami no debate sobre saúde indígena. II Fórum de Lideranças Yanomami e Ye’Kwuana (Foto: Adriana Duarte/ISA)
Dário Yanomami durante debate sobre saúde indígena. II Fórum de Lideranças Yanomami e Ye’Kwuana (Foto: Adriana Duarte/ISA)
Francilene Dos Santos Pereira, falando sobre o histórico da invasão Garimpeira na TI Yanomami. II Fórum de Lideranças Yanomami e Ye’Kwuana (Foto: Adriana Duarte/ISA)
Davi Kopenawa e demais lideranças no II Fórum de Lideranças Yanomami e Ye’Kwuana (Foto: Adriana Duarte/ISA)
Canção e dança da guerra. II Fórum de Lideranças Yanomami e Ye’Kwuana (Foto: Adriana Duarte/ISA)
Davi Yanomami no II Fórum de Lideranças Yanomami e Ye’Kwuana (Foto: Adriana Duarte/ISA)
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II Fórum de Lideranças Yanomami e Ye’Kwuana. (Foto: Adriana Duarte/ISA)
Ruthe Yanomami durante debate sobre Saúde indígena, mesas de trabalho por território. II Fórum de Lideranças Yanomami e Ye’Kwuana (Foto: Adriana Duarte/ISA)
Érica Vilela. II Fórum de Lideranças Yanomami e Ye’Kwuana (Foto: Adriana Duarte/ISA)
Alfredo Yanomami (direita) no debate sobre saúde indígena. II Fórum de Lideranças Yanomami e Ye’Kwuana (Foto: Adriana Duarte/ISA)
Romeu e Manoel Yanomami. Ritual com Horoma para escutar os Xapiri. II Fórum de Lideranças Yanomami e Ye’Kwuana (Foto: Adriana Duarte/ISA)
Júlio Ye'kwana durante o debate sobre garimpo. II Fórum de Lideranças Yanomami e Ye’Kwuana (Foto: Adriana Duarte/ISA)
Dário Yanomami no debate sobre saúde indígena. II Fórum de Lideranças Yanomami e Ye’Kwuana (Foto: Adriana Duarte/ISA)
Dário Yanomami durante debate sobre saúde indígena. II Fórum de Lideranças Yanomami e Ye’Kwuana (Foto: Adriana Duarte/ISA)
Francilene Dos Santos Pereira, falando sobre o histórico da invasão Garimpeira na TI Yanomami. II Fórum de Lideranças Yanomami e Ye’Kwuana (Foto: Adriana Duarte/ISA)
Davi Kopenawa e demais lideranças no II Fórum de Lideranças Yanomami e Ye’Kwuana (Foto: Adriana Duarte/ISA)
Canção e dança da guerra. II Fórum de Lideranças Yanomami e Ye’Kwuana (Foto: Adriana Duarte/ISA)
Davi Yanomami no II Fórum de Lideranças Yanomami e Ye’Kwuana (Foto: Adriana Duarte/ISA)
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O não-atendimento nas comunidades Yanomami se deve a uma série de problemas, alguns meramente burocráticos. No Xitei, há subpolos que não estão sendo atendidos porque o Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami (Dsei-YY) não fez a licitação regular para voos de helicóptero. Há mais de um ano, o polo base Parima, em Mokorosik+, não recebe visita de profissionais de saúde. No local, ninguém foi vacinado contra a Covid-19.

Uma das reivindicações feita pelas lideranças são profissionais com compromisso e respeito para atender o povo Yanomami, além de atendimentos permanentes nas comunidades. Mas, principalmente, segurança para os profissionais que atuam na área de garimpo.

O documento das lideranças reivindica profissionais comprometidos em atender o povo Yanomami. A série Ouro do Sangue Yanomami, publicada pela Amazônia Real em parceria com a Repórter Brasil, denunciou o caso de uma funcionária da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) que tentava negociar ouro do garimpo ilegal em Boa Vista. O  Conselho Distrital de Saúde Indígena Yanomami e Ye’Kuana (Condisi-YY) denunciou que 106 vacinas contra a Covid-19 foram desviadas para garimpeiros pelos profissionais de saúde em vez de imunizar os indígenas.

“Não queremos profissionais de saúde que não têm compromisso. Não queremos profissionais com duplo vínculo, que não vão atender nas comunidades. Queremos gestores e médicos bem preparados. Queremos nutricionistas para tratar da desnutrição. Queremos dentistas para tratar da saúde bucal. Queremos uma rotina de diagnóstico e tratamento de contaminação por mercúrio nos rios e nos Yanomami e Ye’kwana. Queremos água limpa. Queremos atendimento permanente direto em nossas comunidades, em escalas revezando profissionais e nunca deixando o posto vazio. Queremos que as comunidades onde tem ameaça de garimpeiros tenham atendimento de saúde com segurança garantida”, pede o documento.

Desvio de recursos

Júnior Yanomami durante protesto pelas ruas de Boa Vista, capital de Roraima, no dia (8/9) contra os garimpos ilegais em seu território (Foto: Yolanda Mêne/Amazônia Real)

Como resultado do  II Fórum de Lideranças, onde participaram representantes das organizações Hutukara Associação Yanomami, Associação Wanasseduume Ye’kwana, Associação das Mulheres Yanomami Kumirayoma, Associação Kurikama Yanomami, Associação Yanomami do Rio Cauaburis e Afluentes, Texoli Associação Ninam do Estado de Roraima, Hwenama Associação do Povo Yanomami de Roraima, Conselho Distrital de Saúde Indígena Yanomami e Ye’kwana, cerca de 70 lideranças de 15 regiões da TI Yanomami elaboraram uma carta com os principais problemas que a etnia enfrenta na saúde.

As associações que assinam a carta protocolada pedem investigação com urgência no Dsei-YY. “Queremos formação de AIS (Agente Indígena de Saúde), Aisan (Agente Indígena de Saneamento) e guarda de endemias Yanomami e Ye’kwana para podermos cuidar do nosso povo. Pedimos  que o Ministério Público investigue o Dsei-YY, e para onde está sendo destinado o recurso que deveria ser usado para melhorar a saúde dos povos Yanomami e Ye’kwana, solicitamos transparência do Dsei-YY através do Condisi-YY,  queremos que o Condisi-YY convoque todas as associações para falar dos assuntos da saúde”, prossegue o documento.

O presidente do Condisi YY, Júnior Hekurari Yanomami, disse à Amazônia Real que a situação está cada vez mais tensa. “Mais duas crianças morreram na comunidade Parima. O Dsei Yanomami justificou que não tinha combustível para o helicóptero. Incrível essa justificativa deles. O Dsei está colocando muita dificuldade para nós, do Condisi, trabalharmos. Voltamos a ter acesso a algumas informações, mas estão tirando pessoas que realmente nos ajudam a fazer algo pela saúde, tá muito difícil trabalhar com o Dsei Yanomami”, relatou Júnior Yanomami. 

Desde o dia (08), quando lideranças foram à sede do  Dsei Yanomami, para protocolar a carta e não encontraram o coordenador, Rômulo Pinheiro de Freitas, a Amazônia Real entra em contado com a Sesai e o próprio Dsei solicitando informações sobre o que tem sido feito para atender e solucionar o colapso na saúde Yanomami. Não houve respostas até a publicação desta reportagem.

*Ana Lucia Montel, mulher negra amazônida, nortista, é comunicadora popular, militante social desde os 12 anos de idade, e finalista no Curso de Comunicação Social (Jornalismo) na Universidade Federal de Roraima (UFRR). Atua diretamente com pautas voltadas para migrantes, indígenas, mulheres, negros e povos amazônicos, através do audiovisual. É fundadora da Resistir Produções Roraima, uma produtora cultural independente.

Fonte:


El País: Conservar a Amazônia é um bom negócio para o Brasil

Existem diversas frentes e iniciativas para extrair de maneira sustentável produtos da floresta e, assim, monetizá-la em pé

André Guimarães / Marcello Brito / El País

Polo financeiro mundial, Wall Street esteve à frente de diversas inovações no mercado de capitais, e hoje nada é mais urgente do que dedicar atenção e criar instrumentos que viabilizem o investimento e a transição para um mundo mais sustentável e resiliente.

Manter uma floresta em pé tem um custo, que não é pequeno. Encontrar maneiras de financiar a conservação é a solução pragmática para assegurar que as florestas remanescentes sejam protegidas, trazendo maior segurança climática, as chuvas das quais depende a agricultura, e o fluxo de água que necessitamos para a nossa economia e sobrevivência.

Nova York, endereço de Wall Street, é nesta semana o palco de um dos mais importantes encontros ambientais do ano. A Climate Week dedica tempo e espaço para debates que discutam as consequências das mudanças climáticas em todas as esferas, dos riscos econômicos aos socioambientais.

Embora a crise ambiental atinja a tudo e a todos, só na última década o mundo entendeu a correlação entre as florestas e o bem estar do planeta, reconhecendo os importantes serviços prestados pela natureza e aumentando assim a preocupação em conter o avanço do desmatamento e as queimadas. É hoje consenso que as florestas e a biodiversidade devem ser preservadas ou pagaremos, como já estamos pagando, um alto custo social e econômico. Resta saber qual o tamanho da perda, se nada fizermos, e quanto teremos que investir para evitarmos que o pior aconteça.


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Com quase dois terços da Amazônia em seu território, o Brasil tem um protagonismo natural nas conversas sobre a preservação das florestas, e o desmatamento que vem sofrendo ao longo dos anos, seguido de queimadas e estabelecimento de pastagens de baixíssima produtividade, tem colocado o país sob o escrutínio mundial. Isso se exacerbou nos últimos anos, quando passou a se discutir se a Floresta Amazônica teria atingido um “ponto de não-retorno”, a partir do qual o processo de savanização seria irreversível, com consequências catastróficas para todo o mundo.

O Brasil tem recebido críticas à sua política ambiental, e o agronegócio que abraça práticas responsáveis já manifesta sua preocupação com ameaças de boicote aos seus produtos no exterior. Devemos lembrar que este é um mercado que tem um forte protecionismo, e não podemos dar “pano para a manga” para que se formem barreiras contra os produtos nacionais, e hoje a bandeira de proteção ambiental encontra ressonância junto ao público consumidor, especialmente em países desenvolvidos.

A crescente preocupação ao redor do mundo com as mudanças climáticas, e a consequente crise de alimentos, podem se tornar uma oportunidade de o Brasil se tornar uma potência agroambiental, desde que consiga proteger suas florestas e sua biodiversidade, ao promover o crescimento da produção agrícola enquanto ajuda a alimentar o mundo.

O Brasil já demonstrou ao longo dos anos que sabe aumentar sua produtividade agrícola sem destruir nosso ativo florestal, que abriga a maior diversidade de plantas e animais do planeta. No entanto, manter a vegetação em pé e protegê-la tem um custo financeiro. Se o mundo manifesta angústia com a derrubada da floresta, deveria se dispor a contribuir financeiramente para impedir o desmatamento. Mas será que os governos dos países desenvolvidos e demais entidades internacionais estão de fato dispostos a bancar isso, ou se restringirão à retórica?

Cabe a nós criar canais de diálogo e viabilizar o investimento. Claro que precisamos também fazer o nosso dever de casa interno, acabando o quanto antes com a perda de nossa cobertura vegetal nativa, monitorando nossas florestas, evitando incêndios e mudando certas práticas agrícolas. Mas precisamos também engajar o capital internacional nesta empreitada.

Um hectare de floresta amazônica armazena pelo menos 100 toneladas de carbono, ou 360 toneladas de dióxido de carbono (CO2) equivalente. Hoje, cada tonelada de CO2 é comercializada a US$ 10 no mercado internacional. Portanto, devastar um hectare, o tamanho de um campo de futebol, significa queimar US$ 3,6 mil, ou mais de R$ 16 mil. Abrir mão de riquezas naturais é um desperdício de dinheiro, além de uma perda irreversível de valor biológico.

Não devemos nos contentar em erradicar a devastação ilegal da Amazônia. Mesmo as frações de reservas onde o desmatamento é permitido (equivalente a 20% da área de cada propriedade legal) poderiam ser mantidas intactas, se devidamente remuneradas pelo seu custo de oportunidade. Trata-se de mais do que preservação, é um investimento.

Existem diversas frentes e iniciativas para extrair de maneira sustentável produtos da floresta e, assim, monetizá-la em pé. Porém a grande maioria dos projetos e estudos ligados a bioeconomia da floresta ainda está em seus primórdios, exigindo alto investimento, inclusive em pesquisa. Demandarão muito tempo para chegarem a uma escala que reverta a perda da vegetação nativa.

É imperativo que o Brasil se torne um país atraente a esses investimentos. Nossas florestas em pé e preservadas podem servir de lastro, garantia financeira, para a atração dos capitais necessários para fazermos frente à exploração predatória atual. Conservar a Amazônia pode se tornar um ótimo negócio para o Brasil e para os milhões de pessoas que lá vivem.

Conciliar economia e meio ambiente é um passo crucial para a vitalidade do desenvolvimento brasileiro. O futuro do país depende de uma reflexão conjunta dos vários atores, de maneira pragmática e buscando a equação econômica que possa viabilizar a manutenção dos nossos preciosos ativos ambientais.

Temos que seguir a importante missão de alimentarmos o mundo através do nosso pujante agronegócio, mas de tal maneira a conciliar produção e preservação, produtividade e tecnologia de ponta, para também usufruirmos da riqueza biológica das nossas florestas. E o mercado financeiro deve ajudar a viabilizar instrumentos para fomentar esta revolução verde.

André Guimarães é diretor executivo do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia e integrante da Coalizão Brasil Clima, Agricultura e Florestas.

Marcello Brito é presidente do conselho da ABAG e co-facilitador da Coalizão Brasil Clima, Agricultura e Florestas.

Fonte: El País
https://brasil.elpais.com/opiniao/2021-09-22/conservar-a-amazonia-e-um-bom-negocio-para-o-brasil.html