ALVORADA
Ascânio Seleme: Adicto à mentira
A imagem é constrangedora. Daquelas que causam vergonha alheia. Cercado por uns dez assessores, Jair Bolsonaro acena para um ponto à sua frente onde imagina-se estar reunida uma multidão. Eleva os braços como se fizesse louvação aos céus, ou a Deus. Se curva num movimento que parece ser em deferência ao povo com o qual estaria se comunicando. O cinegrafista, que deveria ter parado de filmar neste ponto, segue gravando enquanto o capitão passa por ele e avança. E então, percebe-se que não havia multidão alguma no local para o qual Bolsonaro endereçava seus salamaleques. Havia apenas um helicóptero, três ou quatro aspones e um militar. Era um aceno cinematográfico. Ou fake, se preferir.
Bolsonaro precisa disso? Não. Ele sempre encontra aglomerações de desmascarados para gritar “mito” onde quer que vá. Os iludidos de sempre estão em todos os lugares, prontos para aplaudir o exterminador de futuro que enxergam como um salvador da pátria. Desnecessário discorrer sobre a ignorância dessa gente, não é esse o objetivo. O que se quer dizer aqui é que os acenos efusivos para uma inexistente multidão provam o que já se sabia. Bolsonaro é um adicto à fake news. Ele não consegue se livrar desse vício, como se fosse uma praga que rogaram contra ele e que pegou.
Viciado em mentira desde antes de se candidatar a presidente, foi exemplo para os seus quatro zeros e para os seus seguidores radicais e fiéis. Viraram todos mentirosos contumazes, como ele. Bolsonaro mente para o eleitor e para quem nem ainda vota. Mente para os inimigos e adversários, assim como mente para os amigos e companheiros. Mente para parentes. Mente para os filhos, que passam a mentira para frente. Mente por email e nas redes sociais. Mente ao vivo ou grava mentiras. Mente no privado e no público. Mente digital e analogicamente.
O grupo de checagem Aos Fatos (www.aosfatos.org) contou 2.919 declarações falsas ou distorcidas de Bolsonaro desde a sua posse até a data da última atualização, em 28 de abril passado. Foram 848 dias, ou 3,44 mentiras a cada dia. E estas são apenas as públicas, feitas em discursos, entrevistas, através das suas redes sociais ou colhidas no cercadinho do Alvorada, onde ele mente para os seus seguidores mais entusiasmados. No privado deve ter mentido outras tantas milhares de vezes. O presidente do Brasil é um mentiroso.
De acordo com o volume das suas mentiras pode-se aferir o que mais incomoda o presidente. Um sinal, talvez, de que ele esteja entendendo onde vai mal, apesar de seu reconhecido déficit cognitivo. De 9 de abril do ano passado até o último dia 10 de março, Bolsonaro mentiu 88 vezes sobre a decisão do STF de considerar legítimo que governadores e prefeitos também adotem medidas restritivas para conter a pandemia. O capitão repetiu que o tribunal retirou dele a responsabilidade para atuar contra a doença e a transferiu aos outros entes da federação. Trata-se do famoso “tirar o seu da reta”. No caso, com uma mentira grossa.
O homem que cometeu mais de duas dúzias de crimes de responsabilidade, que ameaçou inúmeras vezes a democracia e que tem 116 pedidos de impeachment na gaveta do presidente da Câmara, teme os efeitos da pandemia sobre o seu futuro. Por isso sobre ela mente mais. Claro que não vai parar por aí, seu vício é maior do que ele próprio. Novas lorotas já estão sendo engendradas nas salas anexas ao Gabinete do Ódio no Palácio do Planalto, e em breve ganharão a luz do dia. E tem também, claro, as mentiras espontâneas, que saem da cabeça aturdida de Bolsonaro. Estas são mais estúpidas e patéticas, e por isso menos eficientes.
Soldadinhos de chumbo
O ministro Luiz Eduardo Ramos tomou vacina escondido por medo do presidente Bolsonaro. Ele pode dizer outra coisa, que foi em respeito ao chefe, que não queria incomodar sua excelência, que era para evitar aborrecimento. Bobagem. O poderoso general estava com medo do capitão. Aliás, Ramos morre de medo de Bolsonaro. No Palácio todo mundo sabe disso. Braga Netto também se pela de medo e igualmente tomou a vacina escondidinho.
Atacar e bajular
O que quer o presidente do Clube Militar, o general da reserva Eduardo José Barbosa? Talvez um cargo no governo. Ou apenas puxar o saco mesmo. Como mostrou Lauro Jardim, o militar da reserva comparou Renan Calheiros e Omar Aziz, relator e presidente da CPI, a Marcola e Fernandinho Beira-Mar. Pela modalidade dos crimes destes, era mais fácil compará-los aos milicianos do Planalto Central. No ano passado, do alto das suas pantufas, Barbosa disse que isolamento social é igual a socialismo.
Abundância
A CPI vai navegar com abundante vento de popa. Seus membros nem precisam se esforçar para encontrar elementos e provas que apontem para os (ir)responsáveis que ampliaram a catástrofe por “ação e omissão”. Além dos 23 crimes já delimitados pela Casa Civil, a CPI tem que acrescentar no seu cardápio a entrega de cloroquina em aldeias indígenas e a falta de vacinas para a segunda dose em cidades de 18 estados. E estas faltam por que? O Ministério da Saúde mandou os municípios usarem todas as doses enviadas porque chegariam mais a tempo do reforço. Era chute.
Polêmica
Até a família real da Jordânia usa a vacina Sputnik V. No Brasil, a Anvisa proibiu sua importação por estados e municípios alegando ausência de documentos e garantias dos fabricantes que atestem a sua segurança. Enquanto isso, faltam vacinas e o número de mortes diárias no Brasil continua na casa do milhar. Se a Anvisa estiver certa, estarão errados 62 países que aprovaram e estão aplicando em suas populações a Sputnik V.
Ao vivo
A eficiência de uma CPI depende muito da sua divulgação. Se ficar apenas em flashes, pode perder o vento a favor. Quem sabe faz ao vivo.
Manda, mas…
Depois da demissão do superintendente da Polícia Federal do Amazonas Alexandre Saraiva, não resta mais dúvida de que Bolsonaro conseguiu mesmo colocar no comando do órgão um delegado que come na sua mão. A esta altura já deve estar recebendo todos os dados que pedir, sobre qualquer inquérito, principalmente os dos seus zeros. Ocorre que, além de você e eu, tem gente dentro da PF vendo a mesma coisa. E coletando elementos inflamáveis que podem se tornar atômicos de uma hora para a outra.
Nosso Rio
O prefeito Eduardo Paes parece não gostar de prestar contas aos vereadores, eleitos como ele. Nos seus primeiros dois mandatos, 2.539 requerimentos de informação só foram respondidos por força judicial nos últimos dias de governo. Já não valiam nada. Agora, 14 vereadores pressionam o presidente da Câmara, Carlo Caiado, para acionar Paes mais uma vez na Justiça. Ele está sentado novamente sobre algumas dezenas de requerimentos enviados ao seu gabinete desde o início do governo.
Eduardo Cunha
Eduardo Cunha foi solto da prisão, embora esteja em casa há oito meses e de onde não pode sair. Sua prisão era temporária, ainda assim o outrora homem mais odiado do Brasil ficou enjaulado três anos e meio. Quem mais falta soltar da turma do primeiro escalão do Rio? Sérgio Cabral não tem como. Ao contrário de Cunha, já foi condenado e só sai depois de cumpridos os requisitos do Código do Processo Penal. Deve demorar um pouco mais.
Petistas bolsonaristas
O episódio do vereador do interior de Minas, que com um facão abriu um caixão lacrado para provar (?) que o defunto não morrera de Covid, confirma a bagunça político-partidária do país. Depois da barbaridade filmada, William Faria, que era vereador do PT, foi expulso pelo diretório regional do partido em razão do ato horrendo típico do bolsonarismo. Já em Santa Catarina, sindicatos ligados ao PT negociam com bolsonaristas para impichar o governador Carlos Moisés. Em troca, ganhariam a presidência da companhia de energia estadual.
Censo 2020
Os dados coletados pelo Censo são sempre muito úteis para a gestão pública. E servem também para fins políticos e eleitorais absolutamente legítimos. Como o governo conhece bem o status da nação, graças à capilaridade de sua estrutura, a oposição tem no Censo uma das suas principais ferramentas para entender o seu país e de que precisa a sua gente. Mandou bem na despedida o ministro Marco Aurélio.
Fonte:
O Globo
https://oglobo.globo.com/brasil/adicto-mentira-24997558V
João Gabriel de Lima: Sete erros, 400 mil mortos e um vício de origem
No dia seguinte à instalação da CPI da Covid, milícias digitais atacaram senadores de oposição. A artilharia envolveu desde a disseminação de fake news até ameaças veladas aos parlamentares, com frases como “Você gosta da sua família?” O assunto foi tema de reportagem do Estadão e mereceu manchete na edição impressa da quinta-feira 29. A operação, segundo suspeitam os senadores, foi deflagrada por três assessores da Presidência da República. Os parlamentares enxergaram no processo a digital do “gabinete do ódio”, grupo influenciado pelo vereador Carlos Bolsonaro, filho do presidente.
Pode-se gostar ou não dos senadores, mas eles não estão no Parlamento por concurso público. Somados, constituem um espelho do povo brasileiro, pois foram escolhidos em eleição livre. Nas democracias, é normal que os cidadãos elejam os governantes e os oposicionistas que irão fiscalizá-los. É igualmente normal que adversários políticos subam o tom de vez em quando. Não é normal – nem democrático – que se tratem como inimigos, passíveis de extermínio por milícias digitais.
“As elites eleitas, de situação ou oposição, são moderadoras das preferências populares”, diz o cientista político Jorge Fernandes, da Universidade de Lisboa, que desenvolve o assunto no minipodcast da semana. Tal moderação se dá entre entes que dialogam. Nas democracias modernas, os líderes são, antes de tudo, negociadores. Sabem que, mesmo escolhidos pela maioria, beneficiam-se da conversa constante com as vozes minoritárias, à direita e à esquerda, de uma sociedade plural.
Uma CPI é um instrumento legítimo numa democracia. A atual pode prestar um serviço inestimável se trouxer à tona informações concretas e úteis. Um editorial publicado no Estadão na segunda-feira 26 deu uma contribuição importante nesse sentido. O texto junta três estudos científicos sobre a gestão da pandemia no Brasil. Deles se depreendem pelo menos sete erros crassos no combate à covid-19.
Um: faltou uma coordenação nacional efetiva para lidar com a pandemia, algo fundamental num país tão desigual. Dois: a baixa testagem comprometeu o planejamento. Três: houve atraso no fechamento de fronteiras. Quatro: o excesso de serviços designados como “essenciais” prejudicou políticas de isolamento. Cinco: houve intervenção indevida em protocolos de tratamento – leia-se cloroquina. Seis: foram demitidos quadros técnicos importantes do Ministério da Saúde. E sete: os fundos de emergência não foram utilizados na íntegra. Eles poderiam ser empregados, por exemplo, na compra de vacinas.
Todos esses erros decorrem, em maior ou menor grau, do já citado vício de origem do governo federal: a incompreensão do papel do líder numa democracia moderna. Faltou negociar com os governadores políticas conjuntas. Faltou envolver instâncias internacionais – como a Organização Mundial da Saúde – num intercâmbio iluminador. Faltou ouvir uma parte importante da sociedade civil – a comunidade científica – sobre boas práticas no combate a pandemias.
O Brasil é referência internacional em campanhas de vacinação e tem um sistema de saúde abrangente. Tínhamos tudo para ser um caso de sucesso no combate à covid-19. Em vez disso, lamentamos uma tragédia de 400 mil mortos. Que os representantes escolhidos pelo povo, na CPI, entendam as razões do fracasso e proponham uma correção de rumo. De preferência, sem ser importunados por jagunços digitais.
*Escritor, professor da FAAP e doutorando em Ciência Política na Universidade de Lisboa
Fonte:
O Estado de S. Paulo