Alon Feuerwerker

Alon Feuerwerker: Quando o debate econômico vira culto religioso a favor, o maior risco é do próprio governo

A satisfação com produtos ou serviços pode ser medida pela equação S = En - Ex. Satisfação é entrega menos expectativa. Uma entrega bacana produz frustração se a expectativa veio hipertrofiada. Vendas brilhantes saem pela culatra se o entregue fica abaixo do prometido.

O governo Bolsonaro nasceu da urna produzindo alta expectativa em dois campos: economia e segurança pública. Duas variáveis que vão definir o tanto de satisfação ou insatisfação do eleitorado quando o presidente se apresentar à reeleição, ou o bloco de poder dele aparecer em 2022 com outro nome.

São variáveis importantes também ao longo do mandato, especialmente numa política como a brasileira, cada vez mais habituada a surpresas.

Melhora econômica não produz automaticamente avanços na segurança. Uma prova foram os governos do PT. As regiões mais dinâmicas do período, no Nordeste, experimentaram piora expressiva na segurança. As exceções, como Pernambuco, só confirmavam a regra.

Mas melhora econômica, principalmente quando traz muito emprego, tem efeito indireto positivo sobre outras variáveis. Dinheiro no bolso ajuda a resolver, ou relativizar, desafios não estritamente econômicos. O contrário também é verdade: na casa em que falta pão todos brigam e ninguém tem razão.

Na segurança, até agora, o governo parece colocar as fichas em mudanças legais de endurecimento penal. Uma aposta arriscada, mas tem sua vantagem: ainda que os índices não melhorem, a violência legal -ou nem tanto- contra o crime é um anestésico coletivo poderoso. Mesmo que só até certo ponto.

E sempre será possível culpar os governadores. Ainda que a escolha do ministro da Justiça tenha trazido o tema para mais perto do presidente da República.

Vital mesmo é a economia. Nesta, a velocidade de criação de empregos. E a qualidade deles. Qual é a aposta do governo? Que a reforma da previdência melhore decisivamente a expectativa fiscal, e portanto reduza juros, e portanto desperte o otimismo do investidor e do consumidor.

Onde está a dúvida? Se vai funcionar do jeito prometido. Supondo que haja mesmo uma reforma da previdência, o dinheiro poupado vai ser usado para abater dívida? Ou o governo e o Congresso vão preferir engordar o caixa para investir, e assim melhorar o humor das bases eleitorais rumo a 2022?

Ajuda a austeridade o fato de que o resultado previsto no curto prazo pelo projeto de reforma é relativamente menor. A poupança será crescente com o tempo.

Mas um governo sem sustentação congressual própria fica mais vulnerável às demandas para gastar. E haverá pressão social por mais investimento e gasto público, para compensar menos dinheiro no bolso dos afetados pela reforma. Porque déficit público é sinônimo de superavit privado. Não custa lembrar.

Outro detalhe: a redução drástica do déficit depende também de o BNDES devolver uma dinheirama ao Tesouro. Mas isso implica menos dinheiro para o banco emprestar. Aí também a ideia é o capital privado interno e principalmente externo ocupar o espaço. No bottom line, tudo afinal depende disso.

Uma característica do debate econômico no Brasil é operar com dois motores estáveis: o efeito-manada e a interdição. A palavra de ordem do Plano Cruzado nos anos 80 volta de tempos em tempos. “Tem que dar certo (não deveria ser ‘tem de’?)”. E as (más) experiências pregressas nunca servem de lição.

As ideias econômicas oficiais entre nós nunca admitem crítica, apenas autocrítica a posteriori. Os flancos fiscais abertos do Cruzado eram só nota de rodapé, até a coisa afundar. O mesmo problema foi subestimado no Plano Collor. O “populismo” cambial do Real era #mimimi, até o desabamento de 1999.

Esses exemplos tratam de tempos algo antigos, mas vale a pena lembrar.

A interdição do debate e o efeito-manada vêm em doses ainda mais cavalares quando a base do governo é gelatinosa, e é o caso agora. O ministro da Economia tem o apoio unânime da opinião pública(da), então só se discute o custo de aprovar a coisa no Congresso. É o único ponto da pauta.

Tudo facilitado pela demonização do papel do Estado. Ainda que nunca tenha havido ciclo econômico benigno no Brasil sem participação decisiva estatal. E dos presidentes eleitos após a redemocratização o único que acabou bem foi Lula. Os demais? Ou não acabaram ou acabaram mal.

Quando o debate econômico vira culto religioso a favor, o governo vira o mais vulnerável ao risco.

Ainda que no começo ele não perceba isso.

Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Alon Feuerwerker: O Planalto tem margem para aumentar o fogo que esquenta a chapa do Supremo, mas precisa fazer a coisa andar no Congresso

Regra na política: um lado querer exatamente o que acusa o outro de tramar, quando o outro está no poder. O governo Bolsonaro, por exemplo, adoraria achar um caminho para alinhar completamente o Supremo Tribunal Federal ao Executivo. Há iniciativas abertas, como a CPI da #LavaToga, ou a amputação, escondida na reforma da previdência, da chamada Lei da Bengala. E há o sonho de mudar a aritmética do STF ampliando decisivamente o número de ministros.

Era previsível, e foi previsto: o maior risco político de 2019 seria a frustração do Bonaparte, atrapalhado pela profusão de núcleos de poder numa Brasília desorganizada pela fraqueza dos governos Dilma II e Temer. Parece uma aberração histórica, mas só parece: o Bonaparte da hora precisa dar um jeito de o seu “Congresso de Viena” não ficar só no papel, mas para tanto é essencial concentrar a força. E o único jeito é suprimir os focos de resistência. E o STF é a bola da vez.

Os últimos dois bolsões resistentes ao bonapartismo-raiz são o STF e o assim chamado centrão. Mas é difícil enquadrar o segundo se o primeiro continua a ser uma válvula de escape. Então é hora de colocar os tanques para rodar. A dúvida? Se a empreitada vai acabar como a Batalha de Berlim (1945), na capitulação incondicional do inimigo, ou como a de Moscou (1941-42), com a necessidade de recuo. Ou se, desta vez, a Lava-Jato vai encontrar sua Stalingrado (1943).

O STF precisou bater em retirada da manobra do chega-pra-lá na imprensa. O acordo essencial entre esta e o bolsonarismo vai firme: se não mexerem na liberdade de imprensa, lato sensu, façam o que quiserem. Há lamúrias localizadas, por o combate à dita velha política atrapalhar a reforma da previdência, mas é só. No resto, vale o risco que a faca fez no chão. E o Planalto foi inteligente, não vacilou: aproveitou para declarar seu amor à imprensa livre. E marcou uns pontinhos.

Do episódio todo, a constatação de estarmos um pouco mais avançados que os americanos na partidarização aberta das instituições. Ali não teve como acusar formalmente Donald Trump de conspirar com os russos para se eleger, pois infelizmente os investigadores não acharam nenhum traço de prova. Agora, a oposição democrata agarra o fio desencapado da “obstrução”. Mas nem disso Trump foi acusado após a longa caçada. Como tuitaria ele próprio, SAD!

Se fosse aqui… Por isso, os ministros-alvo no STF preferem não ficar esperando sentados, na ilusão de que “as instituições estão funcionando”. Eles mesmos convivem há anos com o sepultamento do in dubio pro reo e do falecido art. 5º, LVII da Constituição, o que só define a culpa após o trânsito em julgado. Entre outras flexibilidades jurídicas. Mas, se o sistema de freios e contrapesos está desligado, uma hora a conta vai chegar. E chegou. Agora é correr atrás do prejuízo.

Como vai acabar? E quando? É improvável que o conflito aberto entre poderes esteja perto de terminar, talvez estejamos mais perto do fim do começo que do começo do fim. Mas o Planalto pode suportar bem uma loga queda de braço com o outro extremo da Praça dos Três Poderes, se a terceira ponta do triângulo entregar a mercadoria. Nesse jogo de três, ganha quem junta dois.

O Planalto pode aumentar o fogo que esquenta a chapa do Supremo mas precisa ao mesmo tempo fazer a coisa andar no Congresso. Se não, virá automaticamente o incremento do nervosismo no mercado financeiro, que hoje em dia é o parâmetro decisivo para as ações governamentais. Vide as idas e vindas do aumento do diesel. Bonapartes não podem dar a impressão de estarem manietados.

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Enquanto olavistas, militares, lavajatistas, liberais, garantistas, neo-iluministas e outros bichos se engalfinham na disputa pelo poder, a oposição, inteligentemente, assiste de fora e cuida de seus próprios assuntos. Não tem problema dar uns pitacos, mas o mais arriscado seria se meter nessa briga de facções. #FicaaDica.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Alon Feuerwerker: O equilíbrio é estável. E a enésima aposta perdida de quem acredita em tutelar um presidente popular

Jair Bolsonaro está como o malabarista que precisa manter em pé e rodando muitos pratinhos sobre varetas: precisa ao mesmo tempo manter o apoio popular, do mercado financeiro, das Forças Armadas e da imprensa.

Ah, sim, e conquistar o de um Congresso que o presidente também precisa de vez em quando esmurrar, para continuar falando ao povão. Não seria missão fácil para um calejado. E nessa escola Bolsonaro é calouro.

No essencial, entretanto, os pratinhos estão rodando. A variável a medir é a estabilidade do equilíbrio. Se perturbações localizadas tendem a desarrumar completamente a cena ou se a natureza trabalha para o sistema sempre se reequilibrar.

Desde que a perturbação fique dentro de certos limites, o cenário até agora é de equilíbrio estável. Em linguagem matemática, a segunda derivada por enquanto é positiva. Ou seja, perturbações localizadas não desestabilizam o conjunto.

Por duas razões. A primeira: não há alternativa imediata real de poder fora do bloco de direita conservador-liberal. Ah, mas o vice-presidente é paquerado por quem sonha com um “bolsonarismo sem Bolsonaro”. Essas aspas são autoexplicativas.

A segunda: toda a base social e política do bolsonarismo trabalha para ajudar o governo no essencial: a economia. Todos apoiam firmemente Paulo Guedes, na esperança de quebrar o ciclo de estagnação, essa marca da década que termina.

Um exemplo é a imprensa. Os rififis com o poder são diários, mas apenas em questões, para a opinião pública(da), acessórias. No que conta, a reforma da previdência, o modo é de campanha. A crítica? Só ao que pode atrapalhar a aprovação.

A previdência virou a “Lava-Jato da economia". É desse apoio que o governo precisa. Ele não quer ceder totalmente ao fisiologismo da velha política. Pois 1) o povão chiaria e 2) já distribuiu ou reservou as melhores posições para a nova.

E o mercado financeiro? Vai resmungar, os ativos vão oscilar, mas se na última linha da planilha o governo entregar pelo menos uns 50% da reforma prometida, e assim ganhar velocidade, o dinheiro vai festejar. E já tem uma nova cenoura na frente: a reforma tributária.

Para as Forças Armadas, Bolsonaro acoplou um belo plano de carreira na mudança “previdenciária”. Na contabilidade oficial, os fardados são responsáveis por uns 15% do déficit e vão entrar com 1% do sacrifício. Melhor que isso só dois disso, como se diz.

Resta o principal: o povão. O governo aplica aí medidas tópicas, como o 13° do Bolsa Família, mas o jogo será decidido no crescimento e na geração de empregos. Se ambas as curvas embicarem para cima, 2020 e 2022 serão menos íngremes. Se não...

Qual é então o principal vetor a acompanhar? Partindo da premissa de que alguma reforma da previdência será aprovada em 2019, e alguma reforma tributária vai andar, qual será o impacto disso, imediato e nos próximos três anos?

O prometido boom de investimentos compensará uma maior propensão do consumidor a poupar? Até que ponto as deficiências estruturais (educação, infraestrutura, pouca inovação) continuarão segurando o necessário aumento de produtividade?

Por enquanto, as expectativas não são brilhantes. Mas governo é governo. Como está demonstrado no caso do preço do diesel. Não há antecedente de governo que tenha se suicidado para manter a coerência. Se a coisa não anda, muda-se o roteiro do filme.

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Pela enésima vez, frustram-se os teóricos da esperança de um presidente popular ser tutelado. Tem gente que vive de - e gosta de - (se) enganar.

* Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Alon Feuerwerker: Bolsonaro aposta que outros farão a articulação política por ele. Talvez não esteja tão errado assim

A dificuldade política do governo não está na falta de diálogo ou habilidade. Se fosse só isso, e se o presidente reservasse para cada parlamentar da potencial base uns 30 minutos, e se gastasse umas quatro horas diárias na coisa, em menos de dois meses o problema estaria resolvido e a reforma da previdência seria votada no primeiro semestre.

Restaria a questão da habilidade, mas Jair Bolsonaro sabe ser boa praça quando precisa. O ponto é outro: os parlamentares, deputados principalmente, não querem ajudar o governo a dar certo e depois serem atropelados em suas bases na eleição de 2022 por bolsonaristas armados do discurso da nova política e vitaminados pelos cargos federais.

Pois, no mentalmente entorpecido Brasil, deputados que pressionam por poder são rotulados fisiológicos, enquanto as divisões do bolsonarismo avançam como legiões romanas sobre os cargos federais. E os conflitos internos entre os subgrupos deles são tratados respeitosamente pela opinião pública como disputa entre ideológicos e pragmáticos.

Aí a palavra “fisiológico” não aparece. E ainda dizem que o governo tem problemas de comunicação. Nessa operação de promover a ocupação maciça da máquina enquanto os outros são acusados de fisiologismo o governo é um sucesso absoluto de comunicação. Mas não existe almoço grátis e o Parlamento está inquieto. Também pudera!

Os (e as) parlamentares sabem que cada novato no primeiro e segundo escalão no Executivo é potencial candidato em 2022. Ainda mais se tiver autoridade sobre dinheiro para prefeituras, que aliás têm eleição ano que vem. Se Bolsonaro chega bem na reta final, estarão dadas as condições para o bolsonarismo esmagar os atuais aliados na urna.

Em algum grau essa disputa é insolúvel, pois o bolsonarismo também tem boas razões para tentar diminuir a força eleitoral dos aliados. Depender muito de aliados na política não é bom. E Bolsonaro é produto de uma demanda bonapartista, ou cesarista, não seria prudente ele repentinamente vestir a roupa de conciliador e agregador.

Então não tem solução? Melhor ir com calma. O presidente sabe: em condições razoavelmente normais de temperatura e pressão o Congresso aprova alguma reforma da previdência. E isso vai injetar algum otimismo no mercado e velocidade na política. Já se fala na reforma tributária. Mas, e o risco de desidratar a previdenciária?

Bem, até agora “um trilhão de economia em dez anos” é postulado, ou dogma, não questionado. Ninguém diz exatamente quanto será economizado com cada medida. Sabe-se apenas a cota de sacrifício dos militares: 1% do total. O resto é mistério. E não é impossível o número final estar subestimado, já prevendo a lipoaspiração.

Ou seja, o Planalto espera que o Congresso, especialmente os presidentes das duas Casas, entregue a mercadoria para o ansioso mercado, em nome do superior interesse nacional, enquanto as tropas bolsonaristas se ocupam de tomar o Estado para a partir dele consolidar seu poder. E é exatamente isso que o eleitor fiel de Bolsonaro espera dele.

Se vai dar certo? Os fatos dirão, mas a probabilidade é razoável. Apesar dos resmungos localizados, o centro da agenda governamental, a política econômica, mantém apoio maciço nos grupos sociais hegemônicos e na opinião pública. E a Lava Jato continua à caça da velha política. E o Judiciário está sob ataque. E as Forças Armadas estão coesas.

Claro que vai depender da execução. Mas não é tão difícil assim. O governo precisará errar muito para não entregar nada. E se entregar quase qualquer coisa isso será avaliado como avanço. O risco maior? A política econômica não dar o resultado esperado no médio e longo prazos. Um “Efeito Macri”. Mas isso, se é perfeitamente possível, ainda não está no radar.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Alon Feuerwerker: A disputa sobre o passado histórico é arma na guerra pelo futuro político

A eleição de Donald Trump funcionou também como destampador de um assunto que parecia velho: as pendências remanescentes entre os dois lados da Guerra Civil americana. Na Alemanha, a memória dos maciços bombardeios aliados na reta final da Segunda Guerra, sobre cidades alemãs sem nenhum significado militar, vem alimentando o revisionismo de direita.

O Brasil curte uma autoflagelação, mas a disputa política sobre o passado é algo universal. Não é jabuticaba. A narrativa sobre o que ficou para trás é fonte de poder para o discurso pelo futuro. Exige porém certos cuidados: a verossimilhança é importante, e não escorregar para muito longe dos fatos é essencial. Os fatos, sabe-se e ando repetindo aqui, são teimosos.

A retomada da narrativa de 1964 como revolução democrática é fonte de poder para a coalizão que demoliu, primeiro nas celas e tribunais e depois nas urnas, a Nova República. Que um dia já foi chique (Diretas Já, Tancredo, Constituinte). Hoje é escombros. E chegou a hora de o outro lado insistir numa história embelezada sobre os fatos de meio século atrás.

A Nova República virar Velha Política foi a deixa para reavivar a versão de os militares terem sido chamados pela sociedade em 1964 para impedir que os comunistas tomassem o poder. Assim como o endurecimento do regime em 1968/69 foi a deixa ideal para que apoiadores da derrubada de Jango (Juscelino, Ulysses, Montoro) vestissem a roupa de líderes democráticos.

Falta um “alta” na afirmação de que “a sociedade” chamou os militares para derrubar João Goulart. E se o problema era o comunismo bastava prender, exilar e eventualmente matar os comunistas, e fazer a eleição de 1965 sem os comunistas e sem os amigos dos comunistas. Mas não foi assim. As listas de cassações falam por si. E a eleição só voltou mesmo em 1989.

Mas quem quer saber de fatos? Então bola pra frente. Mostrar 1964 como revolução democrática e não golpe militar é combustível político para a coalizão no poder, que reproduz não só as alianças do imediato pós-1964 mas também a política econômica. E o governo pode alimentar a base social com ideologia enquanto não chegam os resultados.

Nesse debate, por enquanto, o bolsonarismo mantém a iniciativa. Governos têm potencialmente vantagem nisso, mas o atual parece sistemático: vai lançando ao ar teses, até mais mais disparatadas, e faz a discussão orbitar em torno delas. Enquanto se discute se o nazismo era de esquerda ou se a Terra é plana, ninguém conhece direito a proposta para a previdência.

Algumas coisas ajudam o bolsonarismo nessa tática. Ajuda-o a generalizada insuficiência em cultura e intelecto, um traço nacional. É também inteligente disseminar teses absurdas. A tentação da crítica é focar no ridículo da coisa, e deixa-se de enfrentar o debate no mérito. O “nossa, que absurdo” substitui a argumentação, e aí vira um Fla-Flu.

Sem contar que manter um fluxo ininterrupto de acusações obriga os adversários a passar o tempo se defendendo. Foi um expediente muito usado pelo PT, em especial nas campanhas presidenciais. E funcionou. Agora assiste-se à volta do cipó de aroeira no lombo de quem mandou dar. Vamos ver de que jeito o pessoal sai dessa. E uma hora vai sair.

Pois, como não existe mesmo almoço grátis, a linha governamental ajuda a amplificar e tirar a poeira de uma oposição que vinha algo isolada e paralisada, isolamento e paralisação naturais em início de governo. É a antiga constatação: quando o sujeito interfere na realidade, ela também o transforma em algum grau. A cada ação, gera-se uma reação.

Falta porém ainda à oposição um componente essencial: o mal-estar do povo. Poderá ser medido nas pesquisas sobre a popularidade do governo. Se de fato a provável reforma da previdência desencadear um ciclo de crescimento, o governo vai se segurar. Se não, aí sim haverá motivo para o uso da expressão “crise”.

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Sobre a reforma da previdência, é razoável supor que se houver mesmo economia imediata de recursos do Tesouro o efeito imediato será recessivo. Menos dinheiro na mão do público e mais estímulo a poupar implicarão menos impulso a consumir. A menos que o comércio exterior compense, ou que sejam adotadas medidas keynesianas compensatórias.

Esta eu vi nas redes e gostei: não há nada mais parecido com um keynesiano do que um liberal politicamente pressionado. Ainda mais quando tem eleição municipal logo ali, e quando o Parlamento depende de eleger bases municipais se quiser reproduzir dois anos depois os próprios mandatos.

#FicaaDica

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Alon Feuerwerker: O Planalto quer um Congresso perfilado gritando “Ave Caesar, morituri te salutant". Vai funcionar?

A frase está em latim: “Ave César, os que vão morrer te saúdam”. Era o brado dos gladiadores para o imperador romano antes de começarem os jogos no Coliseu. Os coitados dos lutadores, escravizados, não tinham mesmo muita opção.

O Palácio do Planalto quer mais ou menos isso dos políticos na Câmara e no Senado: que votem as medidas impopulares propostas pelo governo, especialmente a reforma da previdência, e conformem-se depois em morrer nas eleições.

Não chega a ser previsão apocalíptica, pois mesmo em plena onda antipetista ano passado os gladiadores de Temer, que deram a cara na luta para aprovar reformas, ou tiveram imensa dificuldade para voltar ou simplesmente não voltaram.

Jair Bolsonaro assumiu e distribuiu os cargos entre os dele. Oficiais da reserva e da ativa. Lava Jato. Seguidores de Olavo de Carvalho. E alguns quadros parlamentares vinculados às “bancadas temáticas”. Ou seja, não dividiu poder com ninguém.

Pôde fazer isso ao surfar no clamor por uma “nova política”, que segundo os formuladores dela consiste em trocar as pessoas más e impuras pelas boas e puras. Trata-se naturalmente de uma mistificação, mas de tempo em tempo encontra ouvidos crédulos.

Uma regra, sem exceção: a nova política de hoje é a velha política de amanhã. Entre o hoje e o amanhã sempre tem um tempinho para enrolar o distinto público. É um período em que o poder precisa dar passos decisivos para se consolidar.

Mas se a única opção do gladiador romano era obedecer o imperador e torcer para sobreviver até a luta seguinte, não é o caso dos parlamentares. Eles têm a alternativa de simplesmente não fazer o que o Planalto deseja, e esperar o tempo passar.

E são ajudados pelo governo Bolsonaro não ter sido a primeira escolha do establishment econômico e social. A boa vontade é limitada. Isso introduz um vetor de fragilidade potencial. Que aliás começa a se manifestar nas pesquisas de popularidade.

O Planalto acredita que vai dobrar o Congresso denunciando o “fisiologismo” em oposição ao patriotismo. As coisas são mais complicadas. Para os militares, garantiu-se o patriotismo deles embutindo na reforma uma generosa reestruturação da carreira.

O presidente talvez acredite que vai aprovar a mudança da previdência e também concentrar as chaves do orçamento federal nas mãos de seu grupo mais próximo, para alavancar a ampliação decisiva de uma base política própria em 2020 e 2022.

O bolsonarismo não deixa de ter alguma razão nesse desejo. Governos sem base própria enfrentam risco maior de colapso quando a popularidade declina além de um patamar. Com exceções, certos aliados só são úteis quando você não precisa deles.

Políticos são dotados de olfato sensível para o cheiro de sangue na água. Bolsonaro abre múltiplas frentes de atrito e é visto como mal menor por boa parte do establishment. Então basta esperar a hora em que o governo vai precisar de apoio.

A nova administração vem abrindo espaço inédito para referências religiosas, particularmente cristãs. Talvez fosse o caso de a turma dar uma folheada na Bíblia e estudar a interpretação de José para o sonho do Faraó com as vacas gordas e as magras.

#FicaaDica.

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Num governo de retificações quase diárias, a declaração mais retificada admite a participação brasileira numa intervenção militar na Venezuela. Ou a coisa está bagunçada além do razoável ou tem caroço debaixo desse angu.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Alon Feuerwerker: Uma característica dos países vizinhos é que eles estarão aí para sempre

É bom um pé atrás quando se ouve falar em “política de Estado e não de governo”. Costuma ser boa rota de fuga para quem, tendo perdido a eleição, ou uma disputa qualquer de poder, precisa ganhar na paz o que não conseguiu na guerra. Acontece no debate sobre a política exterior.

Os formuladores e executores dela levam uma vantagem na discussão: é fraco o argumento de que tem de ser de tal jeito porque há muito tempo vem sendo assim. Como é fraco o argumento de que não pode mudar porque atravessou governos de diferentes orientações.

O ponto é saber se ela atende o interesse nacional. Mas quem define o que é “interesse nacional”? Mesmo coisas supostamente consensuais podem não ser. Por exemplo, manter a América do Sul livre de armas de destruição em massa e da presença militar extra-continental.

Na política exterior bolsonarista, a prioridade regional parece outra: estreitar a relação com os Estados Unidos ao ponto de estabelecer uma aliança, inclusive militar, que se mostre escudo e vacina contra transformações políticas indesejadas aqui e nos demais países do continente.

Há precedente. Durante a Guerra Fria estava vedado ao forte Partido Comunista Italiano participar do governo, também porque o país era membro da Otan, a aliança militar ocidental criada para confrontar a URSS. Mesmo com o papel decisivo do PCI na resistência ao nazi-fascismo.

As tentativas de resumir a atual política externa a aspectos puramente “ideológicos” parece insuficiente. Num exercício de especulação, talvez projete o desejo de ingressar numa “Otas”, uma aliança no Atlântico Sul similar à que Washington lidera na parte norte do oceano.

Já houve conversas sobre isso no passado e o Brasil torpedeou.

Seria um gol e tanto para os Estados Unidos, estabeleceria aqui uma área de domínio militar (e portanto político) praticamente indisputável. Sem contar a projeção para a África Ocidental-Meridional. Um “Trampolim da Vitória” como o da Segunda Guerra, mas para o século 21.

O foco da política externa americana é conter a influência econômica da China pelo mundo. Os sinais são abundantes. Deixadas as coisas como estão, os chineses vão ultrapassar e dar tchauzinho logo logo. Então Washington simplesmente não pode deixar como está.

Daí o cerco a empresas chinesas de presença global, as ameaças a quem pensa em estreitar relações econômicas com Pequim, o esforço para derrubar governos que não rezem pela cartilha, mesmo que o método de governar seja igualzinho ao de aliados convenientemente deixados em paz.

Um presidente americano disse no século passado que para onde pendesse o Brasil penderia a América do Sul. Na época houve chiadeira, mas a experiência mostra que tinha algum fundamento. Ele só não explicou se a tendência viria na paz ou precisaria ser imposta no braço.

Outro dia o Alexandre Garcia me contou que perguntou durante a Guerra das Malvinas ao então presidente João Figueiredo por que o Brasil estava com a Argentina contra o Reino Unido. Figueiredo mostrou o mapa. “Está vendo a Argentina? Ela vai estar aqui perto para sempre.” #FicaaDica.

A Europa curtiu a Otan porque havia a URSS. Como os vizinhos brasileiros vão receber uma política que estabelece na prática uma hegemonia total americana coadjuvada pelo Brasil? Essa pergunta tem sua importância porque, afinal, esses vizinhos estarão aí para todo o sempre.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Alon Feuerwerker: O que é, na essência, a contradição entre “o olavismo” e “os militares”

É erro político acreditar que alguém conseguirá tutelar um presidente da República recém-instalado e com a popularidade essencialmente preservada. Outro equívoco é imaginar que o presidente, por isso, pode fazer o que dá na telha. Ele decide, mas dentro de limites definidos, em última instância, pela correlação de forças no governo, nos demais poderes e na sociedade.

Costumam levar vantagem nas disputas internas do poder os núcleos mais organizados, disciplinados e dotados de clareza estratégica. E, sempre, mais conectados aos grupos de pressão social influentes. Outro detalhe: é comum a polarização em início de governo ser intestina ao próprio governo. Pois a oposição não carrega expectativa de poder.

O que acontece na administração Bolsonaro? Quadros provenientes das Forças Armadas estão, no popular, comendo pelas beiradas e ganhando espaço. “Os militares” vai propositalmente entre aspas no título desta análise. Não há no Planalto um “Partido Militar” atuando com comando centralizado e hierarquia, paralelamente ao presidente da República.

O bolsonarismo enxerga-se como uma revolução. E toda revolução costuma trazer duas tendências, que em certo momento entram em choque mortal: 1) a revolução precisa e quer expandir-se e 2) o novo poder, para consolidar-se e governar, precisa expurgar seus elementos mais “radicais”. E alguma hora precisa fazer a velha superestrutura trabalhar para o novo status quo.

A crise entre “o olavismo” e “os militares” é indicação de que a segunda tendência vai aos poucos prevalecendo sobre a primeira, e o processo nunca é linear ou indolor. Mas costuma ser irreversível. Num paralelo histórico que talvez desagrade ao bolsonarismo, este parece estar transitando da “revolução permanente” para o “bolsonarismo num só país”.

Não é casual que o choque mais visível e agudo apareça na política externa. O governo precisa decidir se a prioridade é 1) alinhar-se a - ou seguir a diretriz de - uma “internacional trumpista” ou 2) adotar para valer a linha de “o Brasil primeiro”. E isso vem sendo exposto na crise venezuelana. Como já vinha dando as caras em outros temas externos.

O desfecho ideal para o bolsonarismo na Venezuela seria uma “Revolução dos Cravos” de sinal trocado. A cúpula militar degolar o governo bolivariano sem derramamento de sangue, e promover rapidamente a transição pacífica para um regime constitucional alinhado ao “Ocidente”. Mas a coisa não parece estar tão à mão, ainda que cautela analítica em situações voláteis seja bom.

Se tal saída não rolar, até onde o Brasil está disposto a ir na colaboração com o “regime change” em Caracas? A questão, de ordem prática, talvez seja o foco mais emblemático da tensão entre as duas tendências. Que algumas vezes é explicada como oposição entre alas “adulta” e “infantil”, ou “racional” e “irracional”. São descrições insuficientes.

Uns parecem acreditar que a sobrevivência do bolsonarismo depende centralmente de livrar a América do Sul de qualquer núcleo de poder relacionado aos partidos do Foro de São Paulo. Outros talvez achem que é melhor cuidar de consolidar o poder por aqui mesmo, a arriscar um conflito de consequências políticas - regionais e internas - potencialmente desestabilizadoras.

Ambas as correntes têm argumentos. A favor da segunda, há duas coisas que governos precisam pensar muitas vezes antes de fazer: convocar um plebiscito e começar uma guerra. #FicaaDica.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Alon Feuerwerker: A lógica da ofensiva contra os sindicatos e por que ela enfrenta pouca resistência

Na entradinha do Carnaval o governo editou medida provisória proibindo na prática descontar em folha qualquer taxa para sindicato. O mecanismo vinha sendo aprovado em assembleias após a reforma trabalhista acabar com o imposto sindical. Era uma forma de contornar a asfixia.

Margareth Thatcher e Ronald Reagan atuaram contra os sindicatos, com sucesso. Fernando Henrique Cardoso abriu seu governo quebrando a espinha dos petroleiros. Faz parte dos ciclos político-econômicos orientados a dar mais oxigênio ao capital, para relançar a economia.

Não é novidade que o atual período político se inspira no de 1964. Mas aquele regime nunca precisou - ou vai saber nem quis - eliminar o sindicalismo. Manteve, buscando extirpar os elementos para ele malignos. A repressão foi brutal. Mas não teve como meta eliminar os sindicatos.

Seria porém errado centrar a análise no desejo do governo. Todo poder faz o possível para enfraquecer e no limite eliminar qualquer resistência. Bolsonaro, como Temer, não ataca a estrutura porque quer, mas porque precisa, pela agenda. E principalmente porque pode.

E resmungar contra a ofensiva antissindical é inócuo. Para o resmungo ter efeito, o bolsonarismo precisaria sofrer algum dano de imagem por tentar liquidar os sindicatos. É o contrário: o eleitorado do presidente quer mesmo que ele quebre a coluna vertebral do trabalhismo.

Pois é uma necessidade objetiva para a estratégia de relançamento econômico. O crescimento brasileiro desde os anos 80 é baixo, e um fator central é o muito lento avanço da produtividade. O Brasil não é competitivo globalmente nesse aspecto, com exceção da agricultura.

A recuperação das margens pós-crise continua dependendo da contração dos custos. Especialmente do trabalho. Se não dá para produzir muito mais por hora, que ela custe menos. Nisso ajuda a alta taxa de desemprego. Por isso ela é em boa medida estrutural.

Onde está o problema? Na baixa participação das exportações na economia. O Brasil não é a China, aqui as coisas dependem mais do mercado interno (lá também isso está aumentando). Uma hipótese para nem a economia nem o emprego terem mudado de dinâmica após a reforma trabalhista.

Mas a persistência da estagnação não vem tendo maior efeito político, ainda que seja provável uma reação político-sindical futura. E o retardo na reação explica-se também pela fraqueza orgânica dos movimentos trabalhistas. Ela tem três razões, e a mais importante fica algo escondida.

Há a mudança organizacional do mundo do trabalho, aspecto muito na moda nos debates. E há o relativo desenraizamento das cúpulas sindicais, após trinta anos em que ir aos gabinetes do poder e ao Ministério Público trazia mais resultado que ir aos locais de trabalho.

O aspecto menos debatido: a pulverização da organização sindical, nascida da reação ao avanço do sindicalismo petista-cutista a partir dos anos 80, finalmente cobra o custo. As razões históricas da “indústria de sindicatos” são conhecidas. E num governo firmemente disposto a matar o sindicalismo, a dispersão pinta ser fatal.

O “fatal” não deve ser lido como “definitiva”, pois as ondas sempre provocam contraondas. Mas que o sindicalismo está numa sinuca, isso está.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação

 


Alon Feuerwerker: Os riscos para o Brasil na crise venezuelana. E uma lembrança da Guerra do Paraguai

Cada um vê o imbroglio venezuelano conforme as lentes da ideologia, e esse é um direito inalienável. Há poucas coisas mais inúteis em política internacional do que discutir “quem tem razão”. Costuma ter razão quem tem a força para impor seu desejo. Os propagandistas entram na história para dar um trato na cena, fazer a limpeza e o embelezamento. Como aquele sujeito em Pulp Fiction. Não viu o filme? Veja.

Quem “tem razão” na Venezuela? Depende. Se você defende que o melhor para a América do Sul agora é estancar a penetração russa e chinesa, e quem sabe iraniana, e de quebra varrer a esquerda que apoia o chavismo, faz sentido apoiar as pressões contra o governo de Nicolás Maduro. Se você acha que o mais importante é conter a tentativa americana de retomar a região como esfera de influência, fique do outro lado.

Mas se você é movido por teses como a defesa dos direitos humanos, da autodeterminação dos povos e do respeito irrestrito à separação dos poderes numa democracia que permita a alternância real no governo, aí talvez seja o caso de cautela. Porque a cada acusação contra o chavismo nesses temas há pelo menos um caso de país amigo dos Estados Unidos, e agora do Brasil, onde isso é deixado para lá. Então deixemos para lá.

A Venezuela é o país da hora onde enfrentam-se as potências que disputam a hegemonia planetária. Os Estados Unidos têm força militar suficiente para tentar resistir à perda de protagonismo para a economia da China. E a Rússia parece ter retomado o poderio militar para conter o declínio deflagrado pela dissolução da União Soviética. Por que a Venezuela? Tem muito petróleo e a América do Sul é um celeiro de commodities.

Está em curso portanto um movimento baseado na interpretação mais crua da Doutrina Monroe, “A América para os americanos”. E no princípio da projeção de poder (militar). Se a Ucrânia, a Síria e a Coreia do Norte são muito longe dos Estados Unidos, a Venezuela é muito longe da China e da Rússia. O recado de Trump é claro: se longe de casa precisamos negociar e aceitar acordos, aqui nas redondezas fazemos o que dá na telha.

E o Brasil? Se o plano de uma derrubada “limpa” do chavismo der certo, com as Forças Armadas dali coesas degolando o governo sem maiores reações e conseguindo estabilidade social e militar, e eventualmente política, tudo bem. O bolsonarismo celebrará a queda de mais um desafeto e vida que segue. Quem sabe até com oportunidades econômicas, com o Brasil entrando de sócio minoritário no desmonte da PDVSA.

Mas, e se der errado? Um risco para o Brasil é a disputa política na Venezuela enveredar para a guerra civil, coisa de que o continente parecia ter se livrado com o acordo de paz na Colômbia. E já que o Brasil decidiu ser protagonista na “guerra pela Venezuela”, será difícil simplesmente voltar para casa e dizer “virem-se, não temos nada a ver com isso”. Até porque nossa fronteira norte é extensa, porosa e cheia de povos indígenas.

Povos para os quais a fronteira e as nacionalidades produzidas após a ocupação hispano-portuguesa têm importância apenas relativa. Em miúdos, gente para quem ser da tribo é mais importante do que ser “brasileiro” ou “venezuelano”. Em tempo de paz, isso tem sido um desafio latente para o Brasil, particularmente para nossas Forças Armadas. Como ficaria a coisa em tempo de guerra? Especialmente se ela transbordar para cá?

Isso traria um conflito bélico para dentro de nossas fronteiras pela primeira vez desde a Guerra do Paraguai. Ela deu na Abolição e na República. #FicaaDica.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação

 


Alon Feuerwerker: Exigir que o poder mande os mais fiéis para a degola a troco de nada é um passaporte para a desgraça

As escaramuças (por enquanto são só isso) em torno do presidente da República (e com a participação dele) têm sido retratadas como disputa entre um núcleo fundamentalista imaturo e outros núcleos maduros e, portanto, carregados de razão.

O primeiro reuniria antes de tudo os filhos, em primeiro lugar o do meio. Na periferia, alguns ministros da esfera de influência do chamado olavismo. Já os segundos congregariam a equipe econômica e os militares.

Desconfie das simplificações. Elas são como a Física do ensino médio: úteis para fins didáticos mas inúteis quando precisam explicar o fenômeno na essência. Dizer que “o problema de Jair Bolsonaro são os filhos” explica tudo e ao mesmo tempo não explica nada.

Duvida? Faça o teste. Tente responder a esta pergunta que deriva da afirmação acima: “Se o presidente precisar afastar do entorno os filhos, especialmente Carlos, com quem exatamente poderá contar?”

Hoje em dia, a lista mais comprida da área que reúne a Praça dos Três Poderes e a Esplanada dos Ministérios é a de candidatos a tutelar o presidente da República. É consequência, esperada, do projeto “vamos eleger o Bolsonaro para derrotar o PT e depois a gente vê o que faz”.

O então candidato do PSL aceitou jogar esse jogo, cuidando de reduzir a incerteza na política econômica. Mas nunca deu qualquer sinal de que, no poder, faria um governo de paulos guedes.

Presidentes muito fracos são levados a engolir a tutela, e isso não costuma ser suficiente. Fernando Collor, acuado, montou um ministério dito ético, vertebrado pelo PFL, e mesmo assim caiu. Dilma Rousseff entregou a articulação política a Michel Temer, e o resultado é sabido.

Nos dois casos, o que era para ser ampliação da base de governo acabou virando o centro ou parte da conspiração para derrubar o governo. Bolsonaro tem muitos defeitos, mas não nasceu ontem.

Há exceções? Uma que confirma a regra foi Itamar Franco. No começo achou que governaria. Foi trucidado pela imprensa do Sudeste (nessas horas Minas Gerais não faz parte do Sudeste). Teve de entregar a presidência de fato ao ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso.

Só sobreviveu porque abriu mão de qualquer poder, ou perspectiva de poder imediato. Caiu sem cair, esperando voltar em quatro anos. Mas FHC aprovou a reeleição e deixou Itamar na mão.

Bolsonaro, ao contrário de Collor, Dilma e Itamar, não está fraco. O núcleo da sua base social continua mobilizado pela agenda maximalista de endurecimento penal, valores conservadores e alinhamento com Donald Trump.

E o empresariado só quer saber da reforma da previdência, remédio do momento para curar a economia atacada pela estagnação. E na hora “h” o mercado vai apertar o torniquete no pescoço do Congresso até este entregar a mercadoria.

O que pode dar errado? Alguém das internas reunir massa crítica e começar a drenar poder. O vice dá seus passinhos mas, notem, Bolsonaro nunca passa recibo. O vice tem estabilidade no emprego.

Então, a bazuca presidencial volta-se contra quem ensaia apresentar-se como moderado, confiável e racional. É por aí que o poder começa a cortar cabeças. O que fica mais fácil quando o alvo potencial comete um erro.

E o erro número zero em palácio é o sujeito achar que há espaço para fazer uma política própria diferente da do chefe. Ainda mais quando o chefe está forte e cercado por fiéis.

Exigir que o poder mande os mais fiéis para a degola a troco de nada é um passaporte para a desgraça.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação

 

 


Alon Feuerwerker: O resultado político da reforma da previdência se medirá por uma função de duas variáveis

Por enquanto são só escaramuças, apimentadas pelo folclore de figuras algo exóticas em posição de visibilidade. A guerra mesmo virá quando entrarem em debate dois pontos: a reforma da previdência, de Paulo Guedes, e o pacote de Sergio Moro. Isso, claro, se não estourar antes uma guerra de verdade na nossa fronteira norte, com o Brasil de coadjuvante dos Estados Unidos.

Mas é algo provável que a situação da Venezuela ainda fique um tempo em banho-maria, dada a tática de cerco “humanitário”. Então é também esperado que um belo dia as flores deste “recesso estendido” (pela internação do presidente) deem lugar ao debate duro sobre as aposentadorias e a segurança pública. E nos dois temas a avenida está aberta para vitórias expressivas do governo.

Aí, as impressões de que “fulano foi derrotado, sicrano não se dá com beltrano, ninguém segue a orientação do outro fulano” etc vão deixar de ser notícia, e vai sobrar a realidade crua: os líderes de fato do governo na Câmara e no Senado são os presidentes da Câmara e do Senado. E líderes de direito fracos nessa circunstância não chega a ser problema. Talvez seja solução.

E na hora do concerto os maestros vão encontrar orquestras com imensa vontade de tocar afinadas. A disputa será para ver quem é mais duro no enfrentamento dos bandidos, em certas categorias de crime. Como por exemplo a corrupção e o banditismo urbano rotineiro. E na mudança previdenciária haverá briga de rua pelo protagonismo que atraia simpatia do mercado.

Onde e quando começarão os problemas? No pacote de Moro, o céu pinta ser de brigadeiro. Também pelo ministro ter se tornado um enfant gâté da opinião pública. Mas o decisivo é não haver resistência social expressiva no horizonte para a nova ideologia dominante na área criminal. A chacina desta semana em Santa Teresa foi recebida com bocejos. É o novo normal.

Já na Previdência há um risco. Se o governo quer mesmo fazer da reforma um instrumento de justiça social, precisará apontar para as camadas burocráticas privilegiadas que engolem dezenas de bilhões/ano do orçamento. Guedes está certo: a previdência social no Brasil é um mecanismo de concentração de renda. O problema dele: esses grupos estão politicamente fortalecidos.

Os velhos ameaçados pela miséria, os idosos do campo, os jovens que provavelmente vão morrer antes de se aposentar não irão ao salão verde da Câmara pressionar e ameaçar os parlamentares. A elite burocrática sim. E dirá que atacar seus privilégios é - surpresa! - enfraquecer a “luta contra a corrupção”. E na hora h será tentador para o Congresso ceder ao poder real.

Mas isso terá um custo. Os militares, por exemplo, têm dificuldade de aceitar sacrifícios maiores e ver um procurador em início de carreira ganhar mais que um general quatro estrelas. E alguém sempre poderá lembrar aos deputados e senadores que vão esfolar o povão enquanto continua dormindo numa gaveta da Câmara dos Deputados a proibição dos supersalários do Judiciário.

Alguma reforma da previdência vai passar. E a resultante política será função de duas variáveis: 1) quanto produzirá de percepção de ter promovido justiça social e 2) quanto trará de investimentos, empregos e renda. O ótimo para o governo será muito das duas. Mas muito só de uma até ajudará a justificar por que a outra não desempenhou tão bem assim.

Agora, se a resultante for pouco das duas, aí a avenida da política vai se abrir para a oposição.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação