Alias
O Estado de S. Paulo: Cientista político narra a vida de Karl Marx em três volumes
O colossal 'Karl Marx e o Nascimento da Sociedade Moderna' chega ao Brasil pela Boitempo
Marcelo Godoy, de O Estado de S.Paulo/Aliás
Biógrafos não devem ter a ilusão de contar a história completa de uma vida, algo impossível de se conhecer na plenitude. Seu desafio será mais intenso quanto maiores forem as rupturas e as ações possíveis em uma existência, observada em meio ao tempo e às relações sociais e espaciais. O cientista político Michael Heinrich decidiu escrever sobre a vida de Karl Marx. Pode-se imaginar o tamanho da tarefa pelas dimensões do personagem.
Karl Marx e o Nascimento da Sociedade Moderna, cujo primeiro dos três volumes a Boitempo publica, pretende representar todo um programa, cumprido pelo autor, sobre o ofício do biógrafo e a finalidade desse tipo de obra. O desafio assumido por Heinrich é o mesmo de todos os seus colegas.
No ensaio A Ilusão Biográfica, Pierre Bourdieu atacava a reconstrução do biografado por meio de um “artefato socialmente irrepreensível, que é a história da vida”. É conhecida a conclusão de Bourdieu: “Tentar compreender uma vida como uma série única e por si suficiente de acontecimentos sucessivos, sem outro vínculo que não a associação a um sujeito, cuja constância não é senão aquela de um nome próprio, é quase tão absurdo quanto tentar explicar a razão de um trajeto do metrô sem levar em conta a estrutura da rede”.
Absurdo seria também tratar a vida como se fosse condicionada por um fim último desde o início. Essa perspectiva teleológica é comum tanto aos que consideram o percurso do homem como resultante do espírito do tempo quanto às biografias beletristas que pretendem desvendar a essência de personagens, seus fracassos e sucessos, valendo-se de consultas a psicanalistas ou da revelação proporcionada por anedotas, episódios que explicariam o biografado. Em jargão jornalístico, essas obras estariam no terreno da cascata, da história turbinada pelo autor. A restrição às biografias se completava com um determinismo estrutural que – diz Heinrich – não dava “espaço à ação individual fora dos sujeitos coletivos de classe e partido”.
A resposta a essas críticas deve levar ao reconhecimento do valor epistemológico das biografias, caminho trilhado por autores como o historiador francês Jacques Le Goff, cujo São Luís marcou a revalorização do gênero. É sobre esse trajeto que Heinrich construiu sua obra.
Por muito tempo se pensou que os historiadores fossem juízes dos infernos, capazes de distribuir elogios ou vitupérios aos mortos. Assim Marx pôde ser para o anticomunista o responsável pelos crimes de Stalin ou, nas visões hagiográficas, o profeta da emancipação humana. A figura do biógrafo, portanto, não pode ser desprezada. Heinrich é ligado aos pesquisadores responsáveis pela Marx-Engels Gesamtausgabe-2 (Mega-2), as obras completas de Marx e Engels. Desde 1975, publicaram 65 volumes – e devem chegar a 114. Logo no começo do livro diz que Marx não será posto em pedestal, tampouco condenado. E se propõe a analisar o processo histórico em que ele se desenvolveu como “pessoa, teórico, político e revolucionário”, produto da ruptura de duas épocas. Alguém que tivesse nascido 150 anos antes dele não reconheceria o mundo moderno. O mesmo não valeria para Marx. Para Heinrich, ele era de um tempo cujas condições fundamentais não se diferenciam do presente, o que garante atualidade ao pensador.
Não significa, porém, que a obra marxiana promova discussões atemporais sobre ideias fundamentais. Marx intervém nos debates políticos de seu tempo, e a reconstrução detalhada deles ocupa boa parte da biografia. Vemos ali as transformações de Trier, a cidade natal do pensador, e da região do Reno, com o domínio prussiano. Ali estão as tensões entre liberais e conservadores assim como o antissemitismo que levou os pais de Marx a se converterem ao protestantismo.
É sobre a família, a infância e a juventude de Marx – mas não sobre o que se convencionou chamar de “jovem Marx”, com os temas do humanismo e da alienação que ocuparam filósofos como o húngaro Georg Lukács – que o primeiro volume da obra de Heinrich se debruça. Cartas, exames escolares, relatos e documentos ajudam a rever a vida do pensador e seu desenvolvimento, desde o ginásio até a conclusão da tese de doutorado. É o período em que ele se casa com Jenny Westphalen e toma contato com A Ciência da Lógica, de G. W. F. Hegel – a recepção de suas ideias também é abordada por Heinrich. É aí que surge com toda força o debate religioso ligado à política do estado prussiano. Aparece o espírito hegeliano, que mais do que uma faculdade, é algo ativo que estabelece relações cuja essência é a liberdade – por meio da observação sensível na arte, da representação na religião e do pensar conceituante na filosofia. O leitor da biografia vai acompanhar a relação entre filosofia e religião em Hegel, no contexto da crítica da última, e a evolução do conceito da autoconsciência (Selbstbewusstsein) de Hegel a Bruno Bauer.
Então amigo de Marx, Bauer achava que a colisão entre Igreja e ciência desencadearia uma crise política e social de dimensões históricas. Na mesma época, em sua tese de doutorado, Marx escreveu sobre a contradição entre essência e existência, entre forma e matéria. Ali ainda Marx analisa as provas da existência de Deus. Primeiro, a ontológica. “As provas da existência de Deus não passam de provas da existência da autoconsciência humana essencial (...). Que ser tem existência imediata ao ser pensado? A autoconsciência. Nesse sentido, todas as provas da existência de Deus são provas de sua não existência, refutações de todas as representações de Deus.”
Marx começava, do idealismo, a rumar ao materialismo. Quatro anos depois, já rompido com Bauer, escreveria com Engels em A Sagrada Família: “O humanismo real não tem, na Alemanha, inimigo mais perigoso do que o espiritualismo – ou idealismo especulativo – que, no lugar do ser humano individual e verdadeiro, coloca a autoconsciência ou o espírito e ensina conforme o evangelista: O espírito é quem vivifica, a carne não presta”. Por fim, Heinrich é implacável com várias biografias de Marx e suas invencionices e lacunas. Seu trabalho não é a mera reprodução objetiva dos acontecimentos da vida do personagem, mas uma representação em perspectiva. O rigor com as fontes e a disciplina do autor impressionam. Se não há como escapar do acontecer da tradição, Heinrich não abdica de modificá-la e recriá-la sob as condições de compreensão de nosso tempo. Tem a consciência de que uma biografia definitiva de Marx não existirá, pois cada geração, como diz, “a partir de condições históricas transformadas, desenvolverá uma nova perspectiva em relação à vida e à obra de Marx”. E também novas biografias.
O 'velho' Karl Marx
Exilado na Inglaterra desde 1849, o filósofo Karl Marx era em 1881 uma personalidade cujas intenções e ideias eram vistas com desconfiança pelos governos da Europa. Ele era para a Scotland Yard o “famigerado agitador alemão, propugnador de princípios comunistas que não havia sido leal nem a seu rei nem a seu país”. Era na imprensa chamado de “doutor do terror vermelho.” Os dois últimos anos da vida do pensador são o objeto da obra O Velho Marx, do filósofo italiano Marcello Musto, que também se vale do material inédito da Mega-2, as obras completas de Marx e Engels, para surpreender um Marx às voltas com a antropologia, a matemática, os povos coloniais e as possibilidades do movimento revolucionário na Rússia.
Debruçado sobre o cálculo diferencial e a função derivada, Marx se distraía de outras tarefas. A atenção multidisciplinar o levava à uma série de estudos, como as investigações antropológicas de Lewis Henry Morgan sobre estruturas sociais de populações primitivas. É neste Marx distante da ortodoxia que caracterizou muitos de seus seguidores no século 20 que Musto joga luz. Um Marx que, ao tratar da terra comunal na Rússia, surpreende ao mostrar as possibilidades de a revolução chegar àquele país sem que os efeitos do capitalismo se impusessem à propriedade no campo.
Seu último ano foi dedicado a superar as tragédias familiares – a perda da mulher e da filha mais velha – em meio à luta contra a doença. É este o contexto de sua viagem à Argélia. Por fim, Marx nunca se preocupou em responder aos detratores, dentro e fora do movimento socialista. “Se fosse responder a tudo o que foi dito e escrito sobre mim teria de contratar 20 secretárias.” Musto mostra que ele precisaria de muito mais para se defender dos áulicos. Diante de escritos dos que tentavam bajulá-lo sem conhecer suas ideias, Marx escreveu: “Tudo o que sei é que não sou marxista”.
O Estado de S. Paulo: Dois livros inéditos no Brasil repassam a história da Revolução Russa
Historiadores Sheila Fitzpatrick e Jean-Jacques Marie têm trabalhos lançados no ano do centenário da Revolução
Marcelo Godoy, de O Estado de S. Paulo / Aliás
As grande rupturas na história permanecem raras e escrever sobre elas jamais é um ato neutro ou inocente. Sheila Fitzpatrick é uma historiadora consciente das armadilhas que seu ofício reserva aos que o escolhem. Uma delas está ligada à necessidade ou não de cortar a história em períodos e como fazê-lo. É este o principal desafio lançado por essa australiana, que frequentou o St Antony’s College, de Oxford, e se tornou uma das maiores especialistas na antiga União Soviética, em seu livro A História da Revolução Russa. Após três décadas de omissão, a obra de Sheila chega atualizada ao Brasil pela editora Todavia.
No último livro de sua obra – A História Deve ser Dividida em Pedaços? –, o francês Jacques Le Goff escreveu que “os períodos têm, por consequência, uma significação particular; na própria sucessão, na continuidade temporal ou, ao contrário, na ruptura que essa sucessão evoca, eles constituem um objeto de reflexão essencial para o historiador”. Diante da raridade das rupturas, Le Goff descreve o “modelo habitual” para a periodização histórica, a longa duração, como “aquele que é mais ou menos longo, com a mais ou menos profunda mutação”. Sheila estuda assim um desses eventos raros na história, cuja primeira vida parecia indicar uma grande ruptura: a Revolução Russa.
E sua obra é marcada por esse desafio: circunscrever o tempo da Revolução. Sheila escolheu o período 1917-1938 como o período revolucionário. Nos anos de Stalin, até o Grande Terror (1937-1938), Sheila vê a conclusão do processo iniciado em 1917. É a revolução pelo alto, iniciada pelo georgiano em 1929, com a coletivização do campo, a rápida industrialização e a eliminação da oposição ao regime. Só depois o regime soviético teria entrado no período pós-revolucionário. A questão é das mais difíceis enfrentadas pelos historiadores. Há quem veja o início do processo revolucionário em 1905 e seu término no Grande Terror. A maioria, porém, circunscreve a revolução ao período de 1917 a 1921, quando é concluída a vitória bolchevique na Guerra Civil.
Para Sheila, o tema das classes sociais é importante para a compreensão do fenômeno histórico até porque “seus participantes-chave o percebiam como tal”. Por fim, a historiadora analisa a violência do período e o terror, cujo principal objetivo era destruir os inimigos da revolução e remover os obstáculos para a mudanças sociais. Sua obra não traz as mutações mais ou menos profundas e mais ou menos longas na vida das pessoas e nas mentalidades. Esse não era seu objetivo.
Sheila começou a pesquisar a história da União Soviética nos anos 1960 e se tornou próxima do grupo que dirigia o jornal Novy Mir. Por enquanto, algumas das principais obras da historiadora – Everyday Stalinism, The Commissariat of Enlightenment (sobre Anatoli Lunacharski) e o Stalin's Peasants – permanecem sem edição no País. Crítica do marxismo, ela diz que a revolução teve duas vidas – a primeira quando era presente e objeto do escrutínio de cientistas políticos. A segunda quando se tornara história. Para Sheila, o significado da Revolução “permanecerá fortemente disputado na Rússia em seu primeiro centenário e depois”.
Guerra Civil. Sheila enfrenta seu objeto de estudo com uma abordagem original e sóbria. De fato, não se encontra em Sheila aquele estilo ou construção intelectual que tornam a história um objeto vulgar a pretexto de fazê-la mais atraente ao leitor comum. Não é esse ainda o caso de outro autor publicado no Brasil nesse ano do centenário de 1917: o historiador francês Jean-Jacques Marie.
Faltam, porém, a Marie a vivacidade e a originalidade de Sheila. Jean-Jacques constrói seu História da Guerra Civil Russa com uma forte presença de relatos de combatentes – falta-lhe a dimensão do povo, o cheiro dos mortos nos povoados abandonados, o rumor das assembleias, o caos econômico e demográfico. Sua pesquisa é extensa, apesar de o livro não trazer notas para esclarecer fontes bibliográficas e documentais.
Jean-Jacques é simpático aos bolcheviques, o que não lhe impede de dar a dimensão da guerra. Primeiro em relação à sua amplitude – cerca de 4,5 milhões de mortos. Depois em relação aos grupos combatentes e suas composições sociais. Por fim, mostra como a fortuna esteve ao lado dos vermelhos, não como resultado do terror ou da violência de brancos, verdes ou vermelhos, mas pela síntese entre a prudência e as armas feita por tantos comandantes bolcheviques que souberam quando era o momento da espada e quando o caminho era o discurso e o convencimento.