Alemanha
Rússia mobiliza 200 mil e divulga treinamento para guerra nuclear
Igor Gielow,* Folha de São Paulo
O Ministério da Defesa da Rússia disse nesta terça (4),que já alistou 200 mil dos 300 mil reservistas que pretende usar na Guerra da Ucrânia em uma contestada mobilização e passou a divulgar ostensivamente que eles estão sendo treinados para lutar num ambiente de guerra nuclear, química ou biológica.
"O pessoal das unidades formadas [desde 21 de setembro] está sendo treinado em 80 campos e seis centros", afirmou o ministro Serguei Choigu em um evento em Moscou. Nele, foram repassados números de destruição de equipamento ucraniano, mas não foi dita uma palavra sobre as contraofensivas de Kiev no leste e no sul do país invadido em fevereiro.
A perda das áreas ocupadas em Kharkiv (nordeste), de um bastião russo em Donetsk (leste) e o rompimento das defesas num ponto de Kherson (sul) têm preocupado a linha dura do governo Vladimir Putin, que passou a fazer críticas públicas à condução da guerra e sugerir o uso de armas nucleares táticas, de menor potência, para deter Kiev.
Militarmente, não parece fazer muito sentido, mas esta é uma carta que o Kremlin tem usado com frequência desde o começo do conflito. Ao decretar a anexação de quatro áreas ucranianas em que não tem controle total, Putin elevou a aposta, dizendo que elas seriam defendidas com "todos os meios possíveis" —e isso inclui o maior arsenal atômico do mundo.
Com efeito, desde domingo (2) o Ministério da Defesa passou a postar no seu canal no Telegram imagens e relatos de treinamento de recrutas, incluindo como lidar com terreno contaminado por armas nucleares, químicas ou biológicas. É rotina, claro, em especial em um país com as capacidades que a Rússia tem, mas a visibilidade ao tema não é casual.
A Alemanha, rival histórica da Rússia que passou a ser sua parceira energética nos anos que precederam a guerra, disse nesta terça que as ameaças nucleares de Putin podem ser para valer. "Não é a primeira vez que ele recorre a tais ameaças, que são irresponsáveis, e nós devemos levá-las a sério", disse a ministra das Relações Exteriores Annalena Baerbock.
"Mas isso é também uma forma de nos chantagear",acrescentou, dando nome ao que está na mesa. Baerbock sabe que a população europeia, particularmente a alemã, antevê um inverno de dificuldades sem gás russo para aquecer os lares e mover a indústria, e que o temor de um conflito nuclear ainda é presente nas gerações que viveram a Guerra Fria.
No cálculo do Kremlin, presumido obviamente, a ameaça pode desestimular o apoio europeu, já bem menos coeso e volumoso do que o americano, a Kiev.
Também nesta terça, o Pentágono fez vazar a repórteres a avaliação de que nada indica que Putin esteja prestes a mobilizar suas forças nucleares. Isso é possível devido ao monitoramento de movimentos em bases por satélites e a informação colhida por espiões.
Mas o emprego de uma arma tática traz complicadores, como por exemplo o fato de que algumas são muito pequenas, facilmente transportáveis. Enquanto isso, a especulação em torno do tema só aumenta, dando uma vitória ao Kremlin.
Na segunda (3), por exemplo, o jornal britânico The Times publicou reportagem dizendo que os russos estariam enviando material nuclear para sua fronteira ocidental. O porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov, disse nesta terça que não comentaria porque não queria "fazer parte do exercício ocidental em retórica nuclear".
Há especulação acerca uma detonação de intimidação sobre o mar Negro, talvez até atacando a ilha da Cobra, rochedo estratégico que os russos ocuparam e perderam. O problema é que o local é muito próximo da Romênia, e parece inevitável que a radiação chegaria a um membro da Otan (aliança militar ocidental), disparando uma resposta.
Da mesma forma, o uso de uma arma tática contra forças ucranianas demanda o emprego de diversas ogivas para ter efeito, o que potencializaria o risco de contaminação da própria Rússia. Para os soldados, há o treinamento de proteção pessoal e descontaminação de blindados e caminhões depois, mas não há o que fazer com uma nuvem radioativa.
Texto publicado originalmente na Folha de São Paulo.
O Brasil na imprensa alemã (21/09)
Made for minds*
Neues Deutschland – Bolsonaro modera o tom (20/09)
Em meados de setembro, vários podcasters evangélicos tiveram um convidado especial em seu estúdio: Jair Bolsonaro. Ao ser questionado, o presidente do Brasil disse se arrepender de algumas declarações sobre a pandemia. Mas um trecho particular da entrevista, que durou mais de quatro horas, circulou nas redes sociais: nele, Bolsonaro contou que passaria a faixa presidencial se não fosse reeleito.
Foram tons incomuns para o radical de direita. Há meses, Bolsonaro vem atacando instituições democráticas e disseminando mentiras sobre o sistema de votação eletrônica. Ele afirmou várias vezes que aceitaria os resultados somente se fosse eleito. "Somente Deus" poderia tirá-lo da Presidência. É claro que Bolsonaro não teve uma mudança repentina de opinião. Os tons mais moderados provavelmente fazem parte de uma estratégia de campanha.
Em todas as pesquisas, Bolsonaro está claramente atrás de seu principal adversário, Lula. Se Bolsonaro ainda quiser vencer as eleições, dependerá dos eleitores do centro e deve tentar superar sua rejeição. E isso não funciona com aparições exageradamente estridentes e visões radicais.
Na verdade, Bolsonaro esperava que os protestos em massa [de 7 de Setembro] lhe pudessem dar um impulso nas pesquisas. [...] Mas o desejado "efeito das ruas" não aconteceu, pelo contrário: em pesquisas recentes, Bolsonaro caiu ainda mais. Os benefícios sociais concedidos pelo governo também tiveram pouco efeito.
Süddeutsche Zeitung – Campanha eleitoral no funeral da rainha (20/09)
Apenas 2 quilômetros em linha reta separam a residência do embaixador brasileiro em Londres do Westminster Hall, no Parlamento britânico. No domingo, o caixão da rainha Elizabeth 2ª ainda estava no local quando Jair Bolsonaro apareceu na sacada da residência do embaixador. Logo embaixo, na rua, apoiadores estavam reunidos e gritavam "mito, mito". [...]
Bolsonaro disse ter profundo respeito pela família real e pelo povo do Reino Unido, mas que estava ali também por outro motivo. "Teremos que decidir o futuro da nossa nação." O presidente afirmou que o Brasil está no caminho certo, e que o país é um exemplo brilhante para o mundo. "Nosso lema é Deus, pátria, família e liberdade", disse Bolsonaro. "Não tem como a gente não ganhar no primeiro turno." [...]
Todas as pesquisas preveem uma vitória clara do adversário: no primeiro turno, Lula está mais de 10 pontos percentuais à frente de Bolsonaro e, de acordo com as projeções, mais da metade dos eleitores quer votar no candidato da esquerda num segundo turno. [...]
Nas últimas semanas, Bolsonaro percorreu incansavelmente o país. Participou de rodeios e cultos evangélicos. O fato de ele ter agora viajado para o funeral da rainha no meio da campanha eleitoral é visto por observadores como uma tentativa de mostrar aos eleitores de seu país que seu governo desfruta de apoio no exterior.
Der Tagesspiegel – Com balas e pistolas (16/09)
Em um comício em Fortaleza, Delegado Cavalcante – deputado estadual pelo Ceará e membro do PL, o partido do presidente Jair Bolsonaro – pegou o microfone. Algumas centenas de pessoas foram ao local para ouvi-lo, a maioria vestindo camisas amarelas que se tornaram a marca registrada do bolsonarismo. [...] Com voz rouca, Cavalcante gritou à multidão: "Se a gente não ganhar nas urnas, se eles roubarem nas urnas, nós vamos ganhar na bala. Na bala!" A multidão aplaudiu. [...] A retórica agressiva de Cavalcante foi extrema, mas nenhuma exceção. E ela tem consequências. [...]
Na corrida pela Presidência, Bolsonaro está claramente atrás de seu adversário, o ex-presidente Lula, em todas as pesquisas. O mais tardar no segundo turno, no final de outubro, Lula pode ser eleito o próximo presidente do Brasil. Seria um retorno surpreendente para Lula – e um pesadelo para Bolsonaro e seus apoiadores.
Por isso, eles reagem de forma agressiva. Bolsonaro chama Lula de "bandido de nove dedos". [...] Repetidamente, Bolsonaro classifica a eleição como um voto "entre o bem e o mal". Ele mesmo é um patriota, diz, e Deus o escolheu para liderar o Brasil. Por outro lado, Lula levaria o país ao socialismo, fecharia igrejas, ensinaria ideologia de gênero nas escolas e legalizaria o aborto e as drogas. [...]
Dois assassinatos de apoiadores de Lula já foram registrados nessa campanha. [...] Os casos são os exemplos mais extremos do clima eleitoral agressivo, mas não são os únicos. Em uma igreja evangélica em Goiânia, uma briga começou porque o pastor disse aos fiéis para não votarem "nos vermelhinhos". Logo depois, um policial bolsonarista atirou na perna de um apoaidor de Lula.
A polarização da sociedade brasileira é frequentemente apontada como a culpada por essa violência. Mas a polarização tem um nome: Bolsonaro. O presidente normalizou a linguagem da violência na política nos últimos quatro anos. [...] Bolsonaro nunca tentou reconciliar o país ou dialogar com seus adversários. Em vez disso, tem criado constantemente novos conflitos. E diante da derrota, Bolsonaro semeia dúvidas sobre a confiabilidade das urnas.
*Texto publicado originalmente no portal do Made for minds.
Cláudio de Oliveira: Política de alto nível na Alemanha. E no Brasil?
Na foto estampada nos jornais de hoje, Angela Merkel, atual primeira-ministra da Alemanha, recebe flores de Olof Scholz, que possivelmente a sucederá no cargo. Detalhe: Scholz é do partido adversário ao de Merkel.
Ela é da União Democrata-Cristã, a CDU, um partido liberal-democrático, de centro-direita, que desde o pós-guerra rivaliza com o SPD, o Partido Social-democrata Alemão, partido de Scholz, de centro-esquerda, agremiação que Karl Marx ajudou a fundar ainda no século XIX.
O SPD nunca abraçou totalmente as ideias revolucionárias de Marx. A maioria dos seus dirigentes sempre preferiu o reformismo de seus fundadores, como Ferdinand Lassale. Mas essa é outra história.
O importante a destacar é que apesar de rivais, CDU e SPD governaram juntos a Alemanha em diversas ocasiões na chamada “Grosse Koalition” (Grande Coalizão), quando os dois maiores partidos do país se juntam por não conseguirem separadamente a maioria. Caso dos dois últimos governos de Merkel, nos quais Scholz foi escolhido ministro da economia.
Mesmo quando a CDU estava no governo e o SPD na oposição, ou vice-versa, ambos os partidos foram capazes de dialogar para chegar a acordos que beneficiaram a Alemanha.
Esse diálogo certamente foi favorecido pela maturidade dos partidos democráticos da Alemanha, que aprenderam com seus erros das décadas de 1920 e 1930, quando não foram capazes de se unir para impedir a ascensão do Partido Nazista de Adolf Hitler.
Diálogo também propiciado pelo sistema político-partidário e eleitoral alemão, baseado no parlamentarismo, que obriga ao entendimento entre os partidos para obtenção da maioria necessária à formação de um governo.
O social-democrata Scholz venceu a eleição parlamentar, pois o seu SPD obteve o maior número de deputados. E vai liderar um governo com os Verdes e o Partido dos Democratas Livres, de centro. Assim, o partido de Scholz desalojará do governo o partido de Merkel.
Mas, esse fato não impede a convivência civilizada desses dois grandes partidos democráticos da Alemanha. As flores de Scholz para Merkel é um gesto de quem valoriza a democracia e o pluripartidarismo.
No Brasil, tivemos uma rara transmissão civilizada de governo em 2002, quando o então presidente Fernando Henrique Cardoso organizou legalmente um gabinete de transição com membros de sua equipe e de assessores do então presidente eleito Luís Inácio Lula da Silva.
Infelizmente, essa oportunidade de diálogo foi desperdiçada. O PSDB foi para a oposição e o PT preferiu formar seu governo com o PMDB de José Sarney e partidos do Centrão.
A visão curta dos grandes partidos brasileiros e o personalismo, fortalecido no regime presidencialista, levaram a disputa entre os dois dos principais partidos responsáveis pela democratização do Brasil, processo que culminou com a Constituição de 1988. Na disputa, PSDB e PT aliaram-se a forças políticas conservadores e do atraso.
O que estamos vivendo no Brasil de hoje é o resultado amargo dessa disputa. Que o bom exemplo dos partidos democráticos da Alemanha ilumine o caminho do Brasil.
*jornalista e cartunista e autor dos livros Era uma vez em Praga – Um brasileiro na Revolução de Veludo e Lênin, Martov. A Revolução Russa e o Brasil, entre outros.
Fonte: Democracia e Novo Reformismo
https://gilvanmelo.blogspot.com/2021/11/claudio-de-oliveira-politica-de-alto.html
El País: A boa vida dos artistas de Hitler décadas após a Segunda Guerra
Criadores favoritos do nazismo gozaram de grandes carreiras durante décadas após a derrota na II Guerra
Miguel Ángel Garcia Vega / El País
Se em 1945 existisse uma pílula do esquecimento, a maioria dos alemães a teria ingerido. Esquecer os milhões de mortos, a destruição, o horror do Holocausto, a devastação. Mas “o passado nunca está morto. Nem sequer é passado”. Impossível contradizer Faulkner. Ao final da II Guerra Mundial, importantes membros do nacional-socialismo continuaram uma vida de “sucesso”. Pensaram: “A Alemanha é outro país”. Engenheiros, políticos e músicos “extraviaram” suas lembranças. A arte moldou sua vergonha. Muitos artistas nazistas continuaram recebendo lucrativas encomendas da Administração, da Igreja e da indústria, seguiram lecionando nas universidades, expondo e erigindo monumentos pelos mortos da guerra. O verdugo honrando as vítimas.
A origem disso repousa em amareladas folhas datilografadas com fita azul em agosto de 1944. Nelas aparece o nome de 378 artistas aos quais Hitler e Goebbels fizeram encargos. É a lista dos “dotados divinos” (Gottbegnadeten-Liste), criadores “indispensáveis” para a estética nazista (Richard Strauss, Carl Orff) que por isso estavam dispensados de lutar na frente de batalha. Willy Meller (que esculpiu as esculturas do Estádio Olímpico), Adolf Wamper, Richard Scheibe, Arno Breker e Georg Kolbe (que presentou o Führer um busto de Franco em 1939) demonstravam que a República Federal permanecia na mesma geografia depois do suicídio de Hitler. Todos continuaram ativos depois da derrota militar.
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Duas exposições em Berlim contam pela primeira vez como isso pôde acontecer. “O setor artístico alemão não estava interessado em questionar as obras e as carreiras dos antigos divinos”, afirma por e-mail Wolfgang Brauneis, curador da exposição Os dotados divinos. “A história situou estes criadores na periferia, mas não os aniquilou”, recorda o especialista Bartomeu Marí. Os primeiros protestos chegariam em 1965 contra uma tapeçaria de Kaspar presenteada a Nuremberg pelo Estado da Baviera. Também houve o escândalo do imenso bronze de Palas Atena, fundido por Breker em 1957, que ainda se encontra diante de uma escola pública em Wuppertal. O que fazer? Destruí-las? Talvez seja melhor contextualizá-las e aprender com o passado. O filósofo alemão Max Horkheimer, que era judeu, sentiu-se humilhado quando voltou do exílio nos EUA na década de 1940. “Fui a uma reunião ontem e encontrei as pessoas tão alegres que dava vontade de vomitar”, escreve. “Todos estavam lá, sentados, igual a antes do III Reich. Como se nada tivesse acontecido.”
Essa indignidade se prolongou na primeira edição da Documenta de Kassel, exposição quinquenal que é hoje um dos mais importantes eventos do Planeta Arte, mas que naquela época, em 1955, queria basicamente vender ao mundo o fim da era nazista. Mentira. “A equipe inicial contava com 21 pessoas, das quais 10 haviam sido paramilitares das SA, das SS ou do Partido Nazista. Isto era algo comum na sociedade”, narra Julia Voss, curadora da exposição Documenta, Politics and Art. E acrescenta: “Do ponto de vista estético, o cofundador, Werner Haftmann [o historiador Carlo Gentile descobriu em julho que ele era procurado em 1946 na Itália por crimes contra a humanidade], e a Documenta se desvincularam da época nacional-socialista. Mas ao mesmo tempo a história da arte moderna se reformulou em uma versão na qual os assassinados não apareciam”. Os nazistas acharam uma Solução Final para a arte: misturar silêncio e esquecimento.
Fonte: El País
https://brasil.elpais.com/eps/2021-11-17/a-boa-vida-dos-artistas-de-hitler.html
RPD || Gianluca Fiocco: Da pandemia se sai pela esquerda?
Alemanha teve eleições com resultado histórico, que favorece a causa europeísta
Gianluca Fiocco / RPD Online
A recente votação na Alemanha marcou, de alguma forma, o fim de uma era. Angela Merkel, cuja chancelaria caracterizou fortemente o cenário alemão e europeu por 16 anos, não se candidatou. Seu afastamento representou sério problema sobretudo para seu partido, o CDU, que ficou órfão de sua presença carismática e estabilizadora. Mas todo o sistema partidário, desprovido de líderes minimamente comparáveis a sua estatura, sofreu com o fechamento desse ciclo.
Podemos considerar históricos os resultados que saíram das urnas: pela primeira vez desde o pós-guerra, as duas colunas tradicionais da política alemã – a socialdemocrata e a democrata-cristã – ficaram ambas abaixo de 30%. A ligeira prevalência do SPD (25,7% dos votos) conduziu as negociações para a formação de uma coligação que está sendo chamada de "semáforo" – vermelha, amarela e verde, respectivamente, dos socialdemocratas, liberais (11,5) e do partido ecológico do Grünen (14,8). As negociações foram anunciadas, porém não são fáceis, e seu fracasso também recolocaria a CDU no jogo.
Em todo caso, o debate antes e depois das eleições favoreceu a causa europeísta. A capacidade de Merkel de colocar a UE em novos caminhos, realçando seu perfil, foi especialmente enfatizada. Com exceção dos partidos mais extremistas (a eleição foi particularmente ruim para a esquerda do Linke, mas também para a direita ultranacionalista do AFD, que seguiu o mesmo ritmo), todos os candidatos se perfilaram para assegurar as responsabilidades alemãs na Europa e a centralidade da dimensão europeia nas grandes escolhas da Alemanha. Também a anunciada intenção de reunir no programa do futuro governo as questões sociais, as necessidades de estabilidade financeira e os objetivos da transição ecológica (com a meta de abandonar o carvão até 2030) representa um dos desafios políticos que hoje está diante de toda a Europa, como "potência civil" capaz de representar um modelo de desenvolvimento equitativo e sustentável.
Uma das primeiras atitudes de Merkel após as eleições foi visitar Roma, onde encontrou Mario Draghi e o Papa Francisco. Foi uma iniciativa significativa já que a própria conexão Merkel-Draghi se revelou fundamental para o lançamento das políticas de auxílio do Banco Central Europeu que têm salvaguardado o euro e a solidez da UE.
A Itália também vivenciou eleições, embora apenas em nível local. Cidades importantes como Roma e Turim estiveram envolvidas. Ao contrário da Alemanha, onde o sistema partidário mostrou sua vitalidade e o nível de participação dos cidadãos foi alto, o voto italiano mostrou um difuso descontentamento com a dimensão administrativa e rachaduras gritantes na relação entre os cidadãos e as forças políticas. Um observador autorizado como Sabino Cassese chegou à amarga conclusão de que "todos perderam. Perderam as forças políticas que tiveram de encontrar seu candidato fora delas, porque dentro delas não foram capazes de selecionar e formar uma classe dirigente. Perderam as classes políticas locais porque os eleitores nas eleições municipais diminuíram na última década mais do que o dobro em relação às últimas eleições gerais. Perderam os vencedores dos segundos-turnos porque só conseguiram o apoio de um quarto ou um quinto do eleitorado".
Se nos anos noventa a eleição direta de prefeitos encarnou na Itália a ideia de renovação das instituições, mais próximas das necessidades das pessoas, agora parece evidenciar as dificuldades dos partidos em manter raízes efetivas na sociedade. Este é um sinal de alerta a ser levado em conta frente às futuras eleições para a renovação do Parlamento. Os dados estatísticos dos últimos anos indicam que existe um interesse pelas questões políticas em comparação com os dados de muitos parceiros europeus, mas a confiança nos mecanismos e no valor da participação na vida política tem caído.
Os resultados da Itália premiaram claramente a centro-esquerda, ao passo que a direita (tanto a Lega, no governo, quanto Fratelli d’Italia, na oposição) sofreu duro golpe. Nestes casos, é difícil, talvez impossível, estabelecer em que medida os fatores locais ou nacionais favoreceram o êxito. Talvez não seja tão forçado dizer que fatores europeus também pesaram: a associação da direita com os chamados soberanistas (embora bastante moderados na versão italiana) não rendeu, e até se mostrou negativa, nesse momento em que o apoio da UE aparece como uma esperança de sair da crise sanitária, econômica e social desencadeada pela pandemia. Os fundos europeus extraordinários da Next Generation EU permitiram o lançamento do ambicioso “Plano Nacional de Recuperação e Retomada”, que é gerido por uma figura intimamente ligada ao plano pró-europeu, como Mario Draghi. O Partido Democrático (PD) foi visto como o defensor mais consistente desse plano, e seus candidatos se beneficiaram dele.
A aposta europeísta expressa precisamente a forte conexão entre os votos da Alemanha e da Itália. Em ambos os países, as questões europeias têm influenciado as escolhas dos eleitores de uma forma que parece demonstrar confiança generalizada no papel que a UE vem desempenhando na segurança e no bem-estar dos seus cidadãos. Como observou o historiador Sandro Guerrieri, “a União Europeia funciona quando se encontram soluções que representam um valor agregado às políticas e linhas de conduta dos governos individuais”. O atual esforço de recuperação é um desses momentos e pode ser decisivo para uma retomada do europeísmo de cunho social e progressista. “Da pandemia se sai pela esquerda”, declarou o secretário do PD, Enrico Letta, comentando o novo equilíbrio político alemão. Se o novo chanceler for realmente uma expressão da aliança vermelho-amarelo-verde, essa perspectiva certamente ganhará impulso.
*Tradução de Alberto Aggio
Saiba mais sobre o autor
Gianluca Fiocco é professor e pesquisador de História Contemporânea vinculado a Universidade Roma2, “Tor Vergata”. É também membro do Conselho de Direção Científica da Fundação Gramsci de Roma. Dentre as suas publicações está Togliatti, il realismo della política, Roma: Carocci, 2018.
Especialistas debatem modelos da Alemanha e Itália para eleições no Brasil
Webinar da FAP será realizado no dia 16 de outubro com participação de Renata Bueno, Arlindo Fernandes e Soninha Francine
Cleomar Almeida,da equipe da FAP
Especialistas vão discutir possíveis contribuições ao sistema eleitoral brasileiro por parte de experiências da Itália e Alemanha, onde os social-democratas de centro-esquerda venceram por uma pequena margem o partido da chanceler Angela Merkel nas eleições realizadas no mês passado. O debate será realizado, no dia 16 de outubro, a partir das 10 horas, em evento online da Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília.
O webinar terá transmissão, em tempo real, no portal, na página do Facebook e no canal da fundação no Youtube. Confirmaram participação a primeira cidadã nascida no Brasil a tornar-se deputada no Parlamento italiano, Renata Bueno, que também é ex-vereadora de Curitiba (PR); a ex-vereadora de São Paulo Soninha Francine e o consultor do Senado Arlindo Fernandes, especialista em direito eleitoral.
Assista!
Fernandes diz ser muito comum o sistema eleitoral alemão ser adotado como referência no mundo quando se discute o assunto. “Lá, eles adotaram sistema eleitoral misto”, afirma o consultor do Senado. “Não havia maioria, na Constituinte de 46, nem para adotar o sistema proporcional nem para adotar o sistema majoritário distrital”, explica.
Na época, conforme lembra o especialista, a Alemanha fez um acordo para adotar o sistema misto, “considerado, tecnicamente, bastante desenvolvido”. “Nas últimas décadas, com a onda de democratização e reformas dos sistemas eleitorais, em democracias mais consolidadas, como Nova Zelândia e Itália, o modelo alemão tem sido o sistema adotado em países que mudam o sistema eleitoral”, diz.
Na avaliação de Fernandes, “o sistema alemão é possível ser adotado no Brasil porque não ofende, não afronta, a cultura política, com a qual o povo brasileiro está acostumado, que é a do voto na pessoa”. “Tem o voto no partido, mas também tem o voto na pessoa”, observa o consultor.
Renata Bueno, por sua vez, acredita que o resultado da eleição na Alemanha, um dos líderes fundadores da União Europeia, provocou uma “boa mudança no cenário político” no país e em todo o restante do quadro europeu, “justamente porque levanta uma bandeira de mais centro-esquerda”.
Ela também acredita que o modelo italiano seja interessante. “Na Itália, é parlamentarismo. São as listas eleitorais que acabam somando a maioria no parlamento, e isso gera a vaga para o primeiro-ministro. Eles votam lei eleitoral próximo a eleição, dando detalhes de como funcionará aquela disputa”, explica.
“Na última lei eleitoral na Itália, eles seguiram muito o modelo alemão, com alguns votos uninominais e outros por listas proporcionais, isso porque ali tem Senado e Câmara e acaba tendo voto misto. Seria quase um distrital misto com vários detalhes também”, compara ela.
Na avaliação de Soninha Francine, a discussão de modelo político, a partir de experiências de outros países, pode ajudar muito o Brasil a adotar um sistema mais adequado para as eleições. “Não tem como evoluir, como discussão política, se não entender melhor do que está falando. Analisar os modelos de outros países pode fazer a maior diferença”, ressalta.
Webinar sobre sistemas eleitorais na Alemanha e Itália
Data: 16/10/2021
Horário: 10 horas
Transmissão: portal e redes sociais (Facebook e Youtube) da FAP
Realização: FAP
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Negros, as vítimas esquecidas da era nazista
Das 75 mil pedras comemorativas dedicadas às vítimas dos nazistas, apenas quatro são em memória de negros
DW Brasil
Os negros são as vítimas esquecidas da Alemanha nazista, diz Marianne Bechhaus-Gerst, professora de Estudos Africanos na Universidade de Colônia. A perseguição deles sob os nazistas definitivamente "não é enfatizada o suficiente", acrescenta.
É difícil estimar quantos negros viviam na Alemanha quando os nazistas tomaram o poder, em 1933. Embora alguns fossem originários do efêmero império colonial alemão na África (1884-1919), tratava-se, na verdade, de "uma população muito diversa e ainda assim consideravelmente móvel", diz Robbie Aitken, professor da Sheffield Hallam University, na Inglaterra, e especializado em história da Alemanha negra. "E já por volta de 1933, diante da ascensão dos nazistas, alguns homens negros e suas famílias deixaram a Alemanha."
Outro grupo importante de afro-alemães ficou conhecido como "Bastardos da Renânia", rótulo racista e depreciativo dos nazistas para crianças, cujos pais se acreditava serem militares franceses de ascendência africana que estavam estacionados na Renânia após a Primeira Guerra Mundial.
"Se incluirmos as 600-900 crianças da Renânia, havia no máximo 1.500-2.000 pessoas que podemos chamar de residentes", disse Aitken, acrescentando que muitos outros negros e negras também viviam temporariamente na Alemanha na época, trabalhando como artistas, desportistas ou diplomatas.
Memoriais para quatro indivíduos
Na Alemanha, assim como em alguns outros países europeus, existem mais de 75 mil Stolpersteine comemorativas, ou "pedras de tropeço". Trata-se de pequenas placas de latão instaladas na calçada para marcar os nomes e destinos de vítimas da perseguição nazista.
Até agora, contudo, a Alemanha tem apenas quatro dessas pedras de tropeço dedicadas às vítimas negras do regime de Adolf Hitler.
Esse pequeno número de negros homenageados com as Stolpersteine, na verdade, nada menos que dobrou recentemente: duas placas do tamanho de um bloco de paralelepípedo foram acrescentadas no final de agosto em Berlim, em memória de Martha Ndumbe e Ferdinand James Allen.
O ato cerimonial reuniu pessoas de diferentes movimentos negros e de descolonização.
Gunter Demnig, o artista que idealizou as pedras comemorativas, também participou da cerimônia, inserindo as placas cuidadosamente em frente ao último endereço de cada vítima antes de terem sido presas pelos nazistas.
Martha Ndumbe: morte no campo de concentração de Ravensbrück
O evento cerimonial começou na Max-Beer Strasse 24, em frente à casa onde Martha Ndumbe morava antes de ser presa.
Martha Ndumbe nasceu em 1902 em Berlim. Seu pai, Jacob Ndumbe, veio de Camarões (então um colônia alemã), enquanto sua mãe, Dorothea Grunwaldt, era alemã de Hamburgo.
O pai de Martha veio para a Alemanha como participante da Primeira Exposição Colonial Alemã em Berlim. Após o término da exposição, ele permaneceu na capital alemã, onde Martha nasceu.
Quando Martha era jovem, a situação social e econômica da maioria dos negros na Alemanha era precária devido à discriminação, tornando impossível para ela encontrar um emprego decente. "Ela se voltou então para a prostituição e pequenos crimes para sobreviver", conta Robbie Aitken, que também documentou o caso desses dois indivíduos.
Os nazistas a prenderam, por fim, por ser uma "criminosa profissional associal". Em 9 de junho de 1944, Martha foi enviada para o campo de concentração de Ravensbrück, onde morreu em 5 de fevereiro de 1945.
Ferdinand James Allen: vítima do programa de eutanásia
A segunda pedra foi inserida na Torstrasse 176-178, o último endereço de Ferdinand James Allen, nascido em 1898.
Seu pai, James Cornelius Allen, era um músico negro britânico natural do Caribe que morava em Berlim. Sua mãe, Lina Panzer, era alemã, e também vivia na capital.
Como negro, Ferdinand enfrentava dificuldades para sobreviver – e além disso, sofria de epilepsia.
Ele acabou sendo esterilizado conforme a Lei Nazista de 1933 para a Prevenção de Filhos com Doenças Hereditárias. De acordo com Aitken, também foi devido à sua saúde e condição biológica que ele foi morto no hospital psiquiátrico de Bernburg, em 14 de maio de 1941, como parte da campanha nazista de extermínio em massa por eutanásia involuntária, a chamada Ação T4.
Mahjub bin Adam Mohamed: fim no campo de concentração de Sachsenhausen
Com essas duas novas Stolpersteine instaladas em 29 de agosto, Berlim possui atualmente três memoriais para vítimas negras da Alemanha nazista.
A primeira fora em 2007, em homenagem a Mahjub bin Adam Mohamed.
Mahjub bin Adam Mohamed nasceu em 1904 em Dar es Salaam, a atual capital financeira da Tanzânia. Na época, a cidade fazia parte da África Oriental Alemã, que incluía os atuais territórios de Tanzânia, Ruanda e Burundi. Lá, ele serviu como criança-soldado para o exército colonial alemão, mudando-se mais tarde para Berlim, em 1929, pouco antes de os nazistas tomarem o poder em 1933.
Com dificuldades financeiras devido à discriminação, Mahjub teve que aceitar diversos empregos, incluindo trabalhar como professor de suaíli, garçom em hotéis e ator em vários filmes coloniais.
Por seus casos amorosos com mulheres alemãs, os nazistas o acusaram de "transgressão das barreiras raciais". Em 1941, Mahjub acabou sendo enviado ao campo de concentração de Sachsenhausen, onde morreu em 24 de novembro de 1944.
Sua pedra de tropeço pode ser encontrada na frente de sua última residência, na Brunnenstrasse 193, local onde foi detido.
Pedras comemorativas para vítimas negras
Essas três pedras comemorativas não estão distantes uma da outra, no bairro de Mitte, em Berlim, onde vivia a maioria dos berlinenses negros na época, segundo Robbie Aitken.
"Eram sobretudo comunidades negras pobres e, mesmo quando tinham dinheiro, não eram aceitas em outros bairros", destaca o ativista tanzaniano Mnyaka Sururu Mboro, residente na capital alemã.
Além das três pedras de tropeço para vítimas negras da perseguição nazista em Berlim, há uma quarta em Frankfurt, na Marburgerstrasse 9.
Trata-se de uma homenagem a um sul-africano, Hagar Martin Brown, nascido em 1889 e trazido para a Alemanha para ser empregado de uma família aristocrática. Durante o Terceiro Reich, ele foi usado por médicos como cobaia de medicamentos, o que acabou levando à sua morte em 1940.
Uma pesquisa em andamento
O professor Robbie Aitken, que é coautor de um livro sobre o assunto – Black Germany: The Making and Unmaking of a Diaspora Community (Alemanha Negra: A construção e a desconstrução de uma comunidade da diáspora) – , desenvolve atualmente sua pesquisa sobre a experiência negra na Alemanha nazista para um trabalho futuro.
O historiador também conseguiu descobrir alguns casos esquecidos investigando reivindicações de indenizações feitas por vítimas negras no período pós-guerra.
"Espero que haja mais Stolpersteine no futuro", disse ele. "Claramente, houve mais vítimas negras, mas a dificuldade está em encontrar evidências documentais concretas para provar a vitimização. A dificuldade reside na destruição dos registros pelos nazistas". Além disso, acrescenta, os raros documentos remanescentes também são difíceis de localizar.
Fonte: DW Brasil
https://www.dw.com/pt-br/negros-as-v%C3%ADtimas-esquecidas-da-era-nazista/a-59115536
Amigos de Israel se necessário, amigos do antissemitismo sempre que possível
A verdade é que, assim como o governo Bolsonaro, a AfD é prova de que é possível defender Israel e, ao mesmo tempo, ser absolutamente questionável em relação à postura diante do Holocausto e dos judeus, assim como tantas outras minorias
Rarael Kruchin e Sebastião Nascimento
Nos últimos dias, a sorridente recepção de Jair Bolsonaro, seu gabinete e deputados da base governista a Beatrix von Storch, representante do partido neonazista alemão AfD (Alternativa para a Alemanha), foi o “último suspiro” para aqueles que ainda achavam que Jair Bolsonaro e seus seguidores tinham qualquer apreço pelos judeus.
Mas não é de hoje que o governo Bolsonaro vem nos familiarizando com algo que se mostra cada vez mais comum nos círculos da extrema direita mundo afora: é possível defender simbolicamente Israel e, ao mesmo tempo, quando o assunto é a memória do Holocausto e as vidas e preocupações dos judeus de carne e osso, ter uma postura negacionista e próxima ao antissemitismo.
Observadores da política brasileira há muito destacam o uso sistemático de símbolos ligados ao Estado de Israel por parte do atual governo. Já durante a campanha eleitoral de 2018, a bandeira israelense tremulou em inúmeros comícios tanto do candidato à Presidência da República quanto de postulantes a cargos do Legislativo próximos a ele. E ainda tremula em manifestações pautadas pelo negacionismo da tragédia da pandemia e de ameaças renitentes ao processo democrático. O próprio Jair Bolsonaro e os chamados “bolsonaristas” têm utilizado estridentes declarações de um suposto apoio a Israel para se defenderem quando veem denunciada sua proximidade a ideias, figuras e expressões do nazifascismo europeu.
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Com a mesma profusão das bandeiras agitadas, avolumam-se os episódios de declarações de membros e aliados do governo que emulam, evocam ou aludem ao legado nazifascista. O Museu do Holocausto, em Curitiba, já se declarou estarrecido por não passar sequer uma semana sem que se veja obrigado a denunciar, reprovar ou repudiar um discurso antissemita, um símbolo nazista ou um ato supremacista.
Alguns desses momentos assustaram pela desfaçatez com que foram acolhidos e normalizados,
- como o slogan da campanha presidencial de 2018 (Brasil acima de tudo), paráfrase direta do slogan nazista Deutschland über alles;
- ou quando Ernesto Araújo em dezembro de 2018 afirmou que a cerimônia de posse de Bolsonaro representava o “triunfo da vontade” do povo, rigorosamente o mesmo slogan celebrizado no filme de propaganda nazista de 1934 Triumph des Willens, que retrata o grande comício de Nuremberg, considerada a cerimônia de entronização de Hitler como Führer da Grande Alemanha;
- ou a homenagem do Exército em julho de 2019 ao major nazista von Westernhagen;
- ou a difusão pela Secretaria de Comunicação Social da Presidência em maio de 2020 de uma versão local do infame bordão Arbeit macht frei,que adornava os portões de entrada de Auschwitz e de tantos outros campos nazistas de extermínio;
- ou quando, em janeiro deste ano, o vice-presidente Hamilton Mourão, após ter sido acusado de tramar para derrubar o presidente, renovou seu compromisso com Bolsonaro proclamando “minha honra está ligada à lealdade”, ligeira paráfrase do bordão hitlerista “Meine Ehre heißt Treue”, adotado como lema pela SS para se contrapor às hostes da SA acusadas de tramar contra a liderança do partido nazista.
Outros momentos, porém, assombraram o mundo, como o vídeo oficial de lançamento do Prêmio Nacional das Artes publicado em janeiro de 2020 pelo então secretário de cultura Roberto Alvim — no qual não só a estética nazista é celebrada como são solenemente reproduzidas passagens inteiras do discurso do ministro da propaganda nazista Joseph Goebbels — e mais recentemente a visita a Brasília de Beatrix von Storch, representante do partido alemão de extrema direita AfD, agremiação reconhecidamente racista e xenofóbica, que abriga grande número de destacadas figuras do neonazismo alemão e que é investigada em diversos processos pelo Estado alemão por conta de sua atuação para minar a ordem democrática do país.
Na Alemanha, provocações da extrema direita com o intuito de acolher ou normalizar o legado nazista e testar os limites da ordem constitucional democrática não foram recebidas com a mesma leniência que no Brasil. Vêm-se acumulando contra a AfD, desde sua fundação em 2013 e mais intensamente desde sua entrada no Parlamento Federal em 2017, investigações, processos e condenações judiciais, além de declarações formais de repúdio e chamados para o isolamento e o boicote ao partido da parte de todo o espectro da sociedade civil organizada na Alemanha. Praticamente todas as entidades representativas da comunidade judaica declararam formalmente a AfD como agrupamento antidemocrático, racista e antissemita, dedicado a reviver a ideologia nazista. Movimentos similares e com alcance igualmente amplo foram observados da parte das comunidades católicas, evangélicas e muçulmanas, das entidades atuantes na proteção de pessoas com necessidades especiais e psiquiatricamente vulneráveis, dos grupos de defesa da comunidade LGBTQIA+, das entidades representativas das comunidades sinti e roma e engajadas no combate ao anticiganismo, todos unidos na denúncia dos esforços do partido em promover a ideologia nazista e de sua incompatibilidade com o convívio numa sociedade plural e democrática.
Na Alemanha, nenhum outro partido no Parlamento Federal ou nos parlamentos estaduais admite negociar com a bancada da AfD, nenhuma figura pública alemã que preze a democracia e o humanismo se digna a ser fotografada ou sequer a apertar a mão de seus representantes. No Brasil, porém, foi com fraternos abraços e amplos sorrisos, que Beatrix von Storch e seu marido foram recebidos na semana passada pelo ministro da Ciência, Tecnologia e Inovação Marcos Pontes (que, diante da repercussão negativa, apressou-se em remover os registros do encontro), pelos deputados federais Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) e Bia Kicis (PSL-DF) e pelo próprio presidente.
Fora da Alemanha, são raríssimos os casos de autoridades de Estado que recebem representantes da AfD. Antes da calorosa recepção em Brasília, as poucas ocasiões em que seus emissários realizaram encontros oficiais com altos escalões governamentais mundo afora haviam sido ao visitar membros do regime genocida de Bashar al-Assad em Damasco em 2018 e 2019 e em viagens à Rússia em 2020 e 2021, no auge da reação internacional à repressão e eliminação física dos opositores, para demonstrar a prontidão que têm em emprestar seu apoio de duvidoso valor a regimes contestados e isolados.
Embora a AfD mobilize fortes e inegáveis elementos neonazistas, costuma também enaltecer Israel e o sionismo. Foi justamente essa a retórica que Bia Kicis utilizou para se defender das acusações de ter se encontrado com a representante de um partido racista, xenófobo e neonazista. Contrariando as críticas, ela disse que a AfD é, no fundo, um partido amigo de Israel. Mas a verdade é que, assim como o governo Bolsonaro, a AfD é prova de que é possível defender Israel e, ao mesmo tempo, ser absolutamente questionável em relação à postura diante do Holocausto e dos judeus, assim como tantas outras minorias. Até porque, a Israel que professam apoiar não condiz com a realidade local. Ao contrário, trata-se de uma construção quase ficcional, que ignora por completo a pluralidade e os elementos progressistas e seculares do Estado de Israel contemporâneo.
Uma pesquisa realizada em 2017, às vésperas da entrada da AfD no Parlamento Federal alemão, procurava avaliar o posicionamento dos candidatos mais viáveis de todos os partidos diante da relação entre Alemanha e Israel. Em todos os tópicos que diziam respeito à política israelense, a AfD se colocava como pró-Israel. Porém, quando o assunto era a situação dos cidadãos judeus na Alemanha, a migração, a responsabilidade alemã sobre o Holocausto e o imperativo da educação das novas gerações sobre o tema — tópicos estes que contavam com posição 100% favorável dos membros de todas as outras agremiações políticas —, ao chegar à AfD, esbarrava em uma posição dividida e ambígua. Ou seja, em meio a todo o espectro político-parlamentar alemão contemporâneo, há um só partido disposto a atentar contra um tema tão sensível na Alemanha, assumindo-se “reticente” em relação ao passado nazista, que foi o partido que o governo brasileiro abraçou.
É nesse sentido que os abraços trocados com Beatrix von Storch constituem o registro mais recente e palpável de que o suposto apoio a Israel, de ambos os lados, não representa apoio algum aos judeus ou à comunidade judaica. Isolados no cenário global, Storch e seu partido, tanto quanto Bolsonaro e seus seguidores, tentam se agarrar à simbologia de Israel como quem se agarra a uma bóia de salvação num abraço de afogados.
Rafael Kruchin é mestre em sociologia pela USP, coordenador executivo do Instituto Brasil-Israel e pesquisador colaborador do Centro de Estudos de Migrações Internacionais (CEMI) da Unicamp
Sebastião Nascimento é mestre em direito internacional pela USP, doutorando em ciências sociais pela Universität-Flensburg, na Alemanha, e pesquisador do CEMI-Unicamp
El País: Queda dos PIBs de EUA e Alemanha prenunciam tombo da economia brasileira
Pessimismo tomou conta das principais bolsas globais nesta quinta. Mercado financeiro estima um recuo de 5,77% da atividade no Brasil neste ano. FMI calcula recuo de mais de 9%
Heloísa Mendonça, do El País
O tamanho do impacto econômico inicial causado pela pandemia do coronavírus começa pouco a pouco a emergir, e os números não são alentadores. A economia dos Estados Unidos, a maior do mundo, encolheu a uma taxa anualizada de 32,9% entre abril e junho, a maior contração desde a Grande Depressão, na década de 1930, segundo dados divulgados pelo Departamento de Comércio na manhã desta quinta-feira. Um colapso da economia sem precedentes. Os efeitos da paralisia da atividade também são sentidos em outros indicadores. A onda de demissões causada pela crise sanitária continuou a avançar nos EUA, onde novos pedidos de seguro-desemprego aumentaram pela segunda semana consecutiva.
Na Alemanha, a maior potência econômica da Europa, o tombo da economia também foi histórico. O Produto Interno Bruto (PIB) alemão de abril a junho recuou 10,1% em relação ao trimestre anterior, de acordo com a agência de estatística do governo federal. É a queda trimestral mais acentuada desde 1970, quando os registros começaram. Se comparado ao mesmo período do ano passado, o recuo foi de 11,7%. Diante dos números divulgados, o pessimismo tomou conta das principais bolsas globais que operaram com perdas. O dia também foi de resultados negativos de balanços de empresas importantes, como o banco Lloyds, a AirBus e a Volkswagen. No Brasil, chamou a atenção a queda de 40% do lucro do banco Bradesco no segundo trimestre.
Os dados do PIB brasileiro de abril a junho ― período em que grande parte das atividades foi paralisada para conter a disseminação do coronavírus ― só serão divulgados no início do setembro, quando a extensão da crise gerada pela pandemia no país começará a se materializar em números. Mostrará um retrovisor do provável pior trimestre de 2020, segundo analistas. Por enquanto, as previsões sobre o tamanho do tombo da economia variam. A projeção do boletim Focus, desta semana, fala em um recuo de 5,77% no fim de 2020, enquanto o Fundo Monetário Internacional (FMI) calcula que o PIB brasileiro irá despencar mais de 9%.
“Há ainda muita divergência sobre o que acontecerá até o fim do ano, porque não há certezas sobre como será de fato a retomada econômica e como irá evoluir o enfrentamento ao coronavírus no país. O que temos de fato agora é uma quebradeira muito grande das empresas no Brasil”, afirma o economista Mauro Rochlin, da FGV. Desde que a pandemia do novo coronavírus chegou ao Brasil, 716.000 empresas fecharam as portas, de acordo com a Pesquisa Pulso Empresa: Impacto da Covid-19 nas Empresas, realizada pelo IBGE e publicada neste mês.
“Nos Estados Unidos, vimos uma leve melhora com a abertura das atividades, mas alguns Estados americanos começaram a ter que fechar parte das atividades e as empresas outra vez com o avanço de novos casos”, diz Rochlin. Os EUA registravam nesta quinta-feira 4,4 milhões de casos de coronavírus e mais de 151.000 mortes pela doença. Embora as piores perdas econômicas tenham se concentrado em abril, a ameaça de pausas na reabertura reduz as esperanças de uma recuperação mais robusta da maior economia do mundo. “Como os EUA são o segundo parceiro comercial do Brasil, essa retomada mais lenta da economia americana pode chegar a comprometer as nossas exportações e ainda mais o PIB brasileiro”, diz o professor.
Na avaliação do economista André Perfeito, da corretora Necton, a ação de enfrentamento à covid-19 por parte do presidente Jair Bolsonaro e governadores não foi suficiente para frear o coronavírus e fez com que as próprias reaberturas das atividades econômicas também fossem menos eficientes. “Não basta liberar a abertura da economia, porque as pessoas estão constrangidas e inseguras. Em vários locais os casos estão aumentando. Países que foram mais duros na quarentena, estão colhendo mais louros, com famílias mais confiantes em sair e consumir”, diz. Para Perfeito, nem a política liberal do ministro Paulo Guedes, que aposta no investimento privado para a retomada da economia, nem reformas, como a tributária que começa a tomar forma, serão capazes de gerar um efeito no curto prazo. “Infelizmente não temos uma evidência de melhora, por isso ainda projeto uma queda de cerca de 7%, 7,5%”.PUBLICIDADE
Também pessimista é a projeção da Comissão Econômica da Organização das Nações Unidas para América Latina e Caribe (Cepal) para a economia da região: um tombo de 9,1% com desemprego e pobreza aumentando. A expectativa da Cepal é de que o número de pessoas desempregadas aumente de 18 milhões para 44 milhões em toda a região, enquanto a pobreza deve subir 7 pontos percentuais, alcançando mais 45 milhões de pessoas.
Demétrio Magnoli: Na pandemia, sociedades atemorizadas por monstros entregam sua sorte aos médicos
Polarização política no Brasil e nos EUA destila polêmica estúpida, mas não é assim na Alemanha
Nos EUA, é Anthony Fauci; no Brasil, Mandetta. Os dois médicos ocuparam o centro dos palcos, ofuscando Trump e Bolsonaro. O presidente americano resiste prudentemente ao perigoso instinto de demitir o diretor dos Institutos Nacionais de Saúde. O brasileiro, comandado por sua própria seita de sicários de redes sociais, acaba de dispensar o ministro da Saúde.
Lá, como aqui, ainda que em tons menos primitivos, a polarização política destila uma polêmica estúpida que contrapõe saúde pública e economia. Não é assim na Alemanha, onde ninguém discute que os dois elementos pertencem à mesma equação.
A pandemia oferece um curso inteiro sobre os efeitos do populismo. Trump e Bolsonaro falaram numa "gripezinha". As sociedades reagiram, atemorizadas pelos monstros, entregando sua sorte aos médicos.
Nesse passo, enquanto a direita populista agrupava-se atrás do estandarte da "economia", todos os demais constituíam uma frente ampla em defesa da "vida". A quarentena converteu-se em programa político e, quanto mais à esquerda, mais radical é a convocação ao isolamento social.
Há uma certa lógica na atração da esquerda pela quarentena. A China fez a mais completa delas. Quarentenas reforçam o poder estatal, em detrimento das liberdades públicas e individuais. É a hora da polícia: a emergência propicia o controle da informação, a mordaça à imprensa. A paralisia econômica demanda agressivas políticas de distribuição de fundos públicos. A "mão invisível" do mercado cede lugar à mão bem visível do Estado. O fechamento de fronteiras promove desglobalização.
Contudo, diante dos monstros, a atração estende-se bem além da esquerda. Quem quer ficar à mercê de ideólogos descontrolados, santos guerreiros da salvação pela cloroquina? Como tolerar governantes que se associam a bispos de negócios empenhados na restauração da prática medieval de preces coletivas para expulsar a peste? Daí, a escolha majoritária pelo "governo dos médicos".
O populismo está longe do núcleo do poder na Alemanha. Por lá, o colchão de um robusto sistema de saúde pública propiciou a adoção de medidas de isolamento social menos draconianas que as da Itália ou da Espanha. O governo central e os governos estaduais operaram em estreita cooperação, ouvindo recomendações de equipes de especialistas. O sistema federal provou que é capaz de agir. A curva de óbitos foi achatada em níveis relativamente baixos. No processo, os médicos nunca tomaram o lugar dos representantes eleitos pelo povo.
A transição para a reabertura começou numa reunião da primeira-ministra Angela Merkel com os governadores. Merkel guiou-se por um relatório encomendado à Academia Nacional de Ciências. O roteiro foi preparado por 26 experts "“entre os quais, além de médicos, contam-se economistas, sociólogos, juristas e filósofos. A frase-chave diz que as medidas emergenciais devem ser gradualmente removidas "por razões constitucionais". A equação alemã tenta equilibrar não dois, mas três imperativos: saúde, economia, liberdades constitucionais.
Não é o paraíso, a morada dos anjos. Há divergências, dissonâncias, tensões, acesos debates políticos. Mas, por lá, praticamente ninguém discute sobre o valor relativo da vida e do dólar (ou do euro), pois dá-se como óbvio que economia é vida e, também, que os negócios não podem decolar em meio à instabilidade gerada por um colapso hospitalar.
"Saúde ótima e a rápida retomada da vida social não são fundamentalmente incompatíveis entre si, mas mutuamente dependentes", escreveram os experts, sintetizando um consenso nacional.
Na ausência do personagem do monstro, a novela sobre o médico e o monstro ficou fora das telas alemãs. A diferença não está na "cultura" dos alemães, mas numa paisagem política menos envenenada pelo populismo. Lá, o vírus é, exclusivamente, um microrganismo.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
Hélio Schwartsman: O êxito alemão
Junto com Coreia do Sul, país já passou pelo primeiro pico epidêmico
Qual o segredo do sucesso da Alemanha no manejo da Covid-19? São vários. O mais óbvio deles é matemático. Por testar muito mais que outros países, os números teutônicos estão um pouco menos distantes dos reais.
Se você só testar cadáveres, terá 100% de letalidade; se testar apenas casos graves, essa cifra cai um pouco, chegando a índices como o italiano (12%), o britânico e o espanhol (10%). Mas, se testar de forma mais indiscriminada (o que também facilita identificar precocemente as cadeias de transmissão e desfazê-las), as taxas caem para menos de 2%, como é o caso da Alemanha e da Coreia do Sul, dois países duramente atingidos e que já passaram pelo primeiro pico epidêmico.
Isso, porém, é só parte da história. A Alemanha não se sai melhor apenas por apresentar números menos distorcidos. Ela também conseguiu achatar a curva exponencial, evitando sobrecarga sobre seu sistema de saúde, que já era bom e foi reforçado. Médicos alemães, ao contrário de italianos, não tiveram de decidir entre quem iria ou não para o ventilador, o que significa que salvaram proporcionalmente mais pacientes críticos que os colegas da Lombardia.
Um aspecto menos comentado do sucesso dos alemães é que, mesmo em condições normais, eles já vivem em maior isolamento social que os italianos (e ao menos outros seis povos europeus). Num interessante trabalho de 2008, com o objetivo de reunir dados comportamentais para a modelagem de infecções respiratórias, Joël Mossong e colaboradores monitoraram os contatos sociais de 7.290 participantes de oito países europeus. Enquanto os italianos apresentaram média de 19,77 interações diárias (a maior das oito nações), os alemães mantiveram apenas 7,95 (a menor).
Pode haver algo de verdade no clichê de que povos latinos são calorosos e efusivos enquanto os germânicos são frios e distantes. Não é uma constatação de muito bom augúrio para nós brasileiros.
Monica De Bolle: Guerras industriais
O Brasil tem lições a dar ao mundo, com a experiência fracassada da política industrial do governo Dilma
As guerras comerciais, como a travada entre a China e os EUA, sempre suscitam bastante atenção. O protecionismo, ao expor rivalidades, é terreno fértil para especulações a respeito do impacto macroeconômico e dos desdobramentos geopolíticos, sobretudo quando os países envolvidos são as duas maiores economias do planeta. Já as guerras industriais, ou os embates entre políticas industriais, têm recebido muito menos atenção, ainda que os efeitos possam ser tão perigosos para a estabilidade global quanto o das guerras comerciais. O exemplo mais claro disso é o desprezo com que foi tratada a recente política industrial da Alemanha delineada pelo Ministro da Economia Peter Altmaier.
Há um mês, o ministério da econômica alemão publicou documento intitulado “Estratégia Nacional para a Política Industrial 2030”, claramente como uma resposta à política industrial chinesa conhecida como Made in China 2025 de Xi Jinping anunciada em 2015. A proposta chinesa pretende acelerar o crescimento da indústria tecnológica por meio de metas setoriais, subsídios e crédito direcionado que somam centenas de bilhões de dólares, e o apoio intensivo de empresas estatais.
Desde o anúncio, a política industrial chinesa tem suscitado muita preocupação entre países desenvolvidos pelos efeitos que pode vir a ter nos setores de alta tecnologia mundo afora. As ambições da China também são vistas com extrema desconfiança, já que as práticas para produzir os resultados pretendidos são opacas e podem aumentar substancialmente os riscos de roubo de propriedade intelectual. Foi em resposta a esses riscos que a Alemanha anunciou seu próprio plano, espécie de retaliação, ou estratégia defensiva, contra a China.
Antes de pincelar os pontos principais do plano alemão é importante ter em mente que Peter Altmaier não é um nacionalista ferrenho, tampouco membro de algum partido extremista. Ao contrário, ele é filiado ao partido de centro-direita da primeira-ministra Angela Merkel, o CDU. Contudo, o documento elaborado por ele e sua equipe contém altíssimo teor nacionalista.
Ao tecer diagnóstico de que a indústria alemã poderia ter tido desempenho melhor nos últimos anos e enfatizar que o país, ao contrário dos EUA e do Japão, pouco fez para alavancar os setores de tecnologia de ponta – como a robótica e a inteligência artificial – o documento enumera medidas para reverter esse quadro e introduzir a Alemanha como potência na “economia da internet”.
A proposta está estruturada em torno de cinco prioridades: defender a atividade industrial; exigir que as empresas europeias participem apenas das cadeias de valor europeias; promover campeões nacionais relaxando as leis de concorrência da União Europeia e lançando mão de crédito subsidiado, desonerações para setores específicos, além de outras medidas; defender a intervenção estatal para impedir que empresas locais sejam adquiridas por investidores estrangeiros; facilitar a intervenção direta do Estado na economia, com o objetivo de prover apoio financeiro e o desenvolvimento dos setores desejáveis.
O documento insiste que o livre comércio e o multilateralismo serão preservados, contudo, as prioridades elencadas indicam o oposto. Por exemplo, se as cadeias de valor europeias forem reservadas apenas para as empresas europeias, naturalmente barreiras ao comércio terão de ser erguidas – seja por meio de tarifas ou de outras medidas. A defesa de grandes campeões nacionais também exigiria não apenas o afrouxamento das políticas de concorrência, como possíveis entraves ao comércio e ao investimento internacionais, bem como a restrição para a aquisição de empresas locais por estrangeiros.
O cunho nacionalista da proposta para a nova política industrial alemã é inegável, uma vez que define o desempenho da economia do país europeu no futuro, em termos de uma corrida global pela supremacia industrial e tecnológica. Caso outros países avançados decidam seguir essa mesma linha, as chances de termos uma imensa balbúrdia mundial com consequências econômicas e geopolíticas altamente indesejáveis é enorme.
O Brasil tem lições a dar ao mundo com a experiência fracassada da política industrial do governo Dilma. Problemas fiscais, corrupção endêmica associada à promoção de campeões nacionais, crises econômicas, políticas e institucionais. Infelizmente, o mundo não está nos ouvindo, pois, nossa perda de relevância é contínua e a força do nacionalismo é arrebatadora.
* Monica de Bolle é economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais / Johns Hopkins University