Alberto Aggio
RPD || Alberto Aggio: A política em tempos de pandemia
Filtro político das recomendações para o combate à pandemia do novo coronavírus desnudou as perspectivas filosóficas dos governantes, suas concepções de civilização, sua visão do presente e do futuro, avalia Alberto Aggio
Alberto Aggio*
É uma verdade relativa a que se pode deduzir da expressão “o cidadão vive no município, não no Estado ou na Federação”. A vida mudou profundamente nos últimos tempos, tornando-se cada vez mais complexa e cosmopolita. Se as fronteiras entre os países se enfraqueceram, o que dizer então dos limites meramente administrativos das cidades? A pandemia da Covid-19, que já ceifou mais de 1 milhão de vidas no mundo, é mais uma evidência da mudança. Em meio a esses trágicos resultados, ou precisamente por conta deles, teríamos pelo menos um saldo positivo desse sofrimento todo se pudéssemos assimilar a nova forma de pensar a relação do cidadão com a Pólis e, em função dela, construir uma maneira contemporânea de pensar a política no nosso tempo.
A começar pelo reconhecimento de que sobreviver à pandemia só foi possível com a adoção de parâmetros de orientação científica que transcenderam qualquer dimensão municipal. O isolamento social, primeiro, e o distanciamento social, em seguida (uso de máscaras, periódica e meticulosa higiene das mãos etc.), foram as principais orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS), para tentar estancar o alastramento do vírus. Mesmo que ambas tenham sido cumpridas de maneira bastante parcial no Brasil, nossas condutas, sociais e pessoais, assemelharam-se a de inúmeros países do globo.
A contestação a essas recomendações desnudou as perspectivas filosóficas dos governantes, suas concepções de civilização, sua visão do presente e do futuro. Em uma palavra, as recomendações dos especialistas foram filtradas, em toda parte, pelo crivo da política. Não poderia ser diferente. Viver ou morrer, no contexto da pandemia, estaria assim submetido a uma orientação global e se consubstanciaria em um plano político concreto em cada país, desde o nível regional até os entes locais do território. Nesse pacote estariam iniciativas referentes à montagem de hospitais, alocação e distribuição de medicamentos e de recursos financeiros e humanos etc.
O mesmo raciocínio pode ser usado em relação à vacina contra o novo coronavírus. A produção da vacina deriva do avanço da ciência e da especialização dos cientistas em nível global e, essencialmente, da troca de informações entre eles, além do grau de evolução e especialização da economia médico-farmacêutica de cada país. Da mesma maneira, o sucesso ou o fracasso no tratamento dos pacientes contaminados pelo vírus.
Em suma, a pandemia demonstrou, de forma cabal, que as cidades não são mundos encapsulados, que vivem para si mesmas – como se algum dia houvessem sido. Nos momentos mais agudos, elas se “fecharam” e restringiram o movimento dos seus cidadãos, mas se mantiveram conectadas com o que de mais importante se fazia ao redor do mundo no enfrentamento da pandemia.
Contudo, as orientações dos especialistas não responderam de imediato às expectativas de contenção do vírus e, com o correr dos meses, foram alteradas, embora tenham sido mantidas como as referências mais seguras para enfrentar a emergência sanitária que se apresentava. Em uma palavra: elas eram insuficientes diante da complexa realidade que se instalava. Sabia-se do alcance, dos benefícios e dos limites do isolamento social confrontado com a realidade social e econômica. Se é verdade que a fala dos especialistas não poderia ser tomada de maneira absoluta, era rematada tolice vocalizar que a pandemia estava sendo politizada. Em suma, não havia sentido em pensar que as decisões quanto à pandemia estivessem fora da dimensão política.
Por ser assim, o comportamento dos principais dirigentes políticos do mundo esteve em causa no contexto pandêmico. O presidente Jair Bolsonaro notabilizou-se, dentro e fora do país, porque politizou a pandemia da forma mais equivocada possível. Desdenhou de suas consequências e principalmente dos mortos; recusou-se a colaborar com governadores e prefeitos no combate à pandemia, alegando falsamente suposta obstrução do STF; impediu a comunicação e a transparência a respeito do avanço e do combate à pandemia; e, por fim, buscou, a todo custo, “abater” politicamente seus supostos concorrentes às futuríssimas eleições presidências de 2022. Assim se comportou com dirigentes democraticamente eleitos e com ministros que ele próprio convocou como seus auxiliares.
Governadores, prefeitos e todos os cidadão ficaram a mercê de orientações conflitantes e o resultado foi a desorientação total da população, com as consequências sabidas: mais de 150 mil mortos em pouco mais de seis meses. No essencial, em relação à pandemia, Bolsonaro entregou uma política truculenta e beligerante, eivada de incompreensão e de ausência de solidariedade, além da absoluta falta de empatia para com aqueles que perderam seus entes queridos.
Se há algum saldo positivo a esperar é que os brasileiros, nas próximas eleições e nas vindouras, exerçam suas escolhas estabelecendo claramente a diferenciação entre lideranças e dirigentes políticos que se comprometeram em superar a crise e aqueles que se aproveitaram dela visando apenas seus interesses pessoais.
Marcus Vinicius Oliveira analisa desafios da esquerda com base na via chilena
Em artigo publicado na revista Política Democrática Online, historiador toma como base livro de Alberto Aggio
Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP
Em 1970, a coalizão da Unidade Popular elegeu Salvador Allende como presidente do Chile, conforme analisa o doutor em história Marcus Vinicius Oliveira, em artigo que produziu para a 23ª edição da revista Política Democrática Online. “Tal eleição representava, para não só o Chile, mas também as esquerdas, o desafio de elaborar as transformações históricas necessárias para a construção do socialismo dentro da ordem e das instituições democráticas, o que implicava a produção de uma novidade no patrimônio das culturas políticas das esquerdas socialistas e comunistas, habituadas a uma visão instrumental da democracia e aferradas aos paradigmas revolucionários”, afirma.
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A publicação é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília e que disponibiliza todos os conteúdos com acesso gratuito em seu site. Em seu artigo, Oliveira analisa, cinco décadas após o início da “experiência chilena”, o livro “Democracia e socialismo: a experiência chilena”, de Alberto Aggio (1993), marcando suas potencialidades para a compreensão dos dilemas políticos contemporâneos.
“Na medida em que não abandonava os posicionamentos revolucionários, as ações da Unidade Popular terminaram por pressionar a própria ordem democrática que havia permitido sua ascensão ao poder, “ escreve o doutor em história, para continuar: “Incapaz de compreender os rumos da revolução passiva chilena, a coalizão política vitoriosa, em determinados momentos, procurou, sem consensos políticos estáveis, acelerar e aprofundar o ritmo das transformações históricas, contribuindo para o rompimento daquele consenso democrático”.
De acordo com o autor do artigo, é preciso refletir em torno dos significados da experiência para a política contemporânea. “Não revisitamos a ‘experiência chilena’ para perscrutar seus fracassos ou mesmo reconstruir a oportunidade perdida para a construção do socialismo no século XXI”, afirma.
Distante de qualquer perspectiva socialista, segundo Oliveira, a via chilena dialoga com o nosso tempo na medida em que marca um ponto de inflexão que aponta a necessidade de abandono das expectativas revolucionárias e um redirecionamento das políticas de esquerda para o enfrentamento da democracia, enquanto perspectiva civilizacional capaz de garantir transformações históricas, sem a perda das liberdades e das individualidades.
“Cinco décadas após, o desafio apontado por Aggio na via chilena, marco da história da política democrática das esquerdas de hoje, ainda nos pertence”, afirma o doutor em história. Para o presente, conforme acrescenta, marcado pela ascensão de discursos autoritários e de perspectivas antipolíticas, considerar o tempo da política significa abandonar o sentido de ruptura como um momento condensado no tempo, tanto quanto compreender que o enfrentamento desse desafio civilizacional ocorre em uma temporalidade alongada e multidirecional, na qual devemos produzir os caminhos a partir dos dilemas do presente.
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RPD || Marcus Vinícius Furtado da Silva Oliveira: A "experiência chilena" e o tempo da política
Após cinco décadas, o desafio apontado por Alberto Aggio em sua obra “Democracia e socialismo: a experiência chilena”, ainda nos pertence, marcando suas potencialidades para a compreensão dos dilemas políticos contemporâneos, avalia Marcus Vinicius Furtado em seu artigo
Livros e leitores se transformam ao longo do tempo. Longe de ser uma recepção passiva, o ato de ler é capaz de recriar o sentido dos textos a partir das experiências e expectativas vivenciadas no presente, de modo que revisitar um livro pode se tornar a descoberta de significados não acessados durante a primeira leitura. Pensando nessas várias possibilidades que a leitura pode assumir no tempo, esse artigo pretende revisitar, cinco décadas após o início da “experiência chilena”, o livro “Democracia e socialismo: a experiência chilena”, de Alberto Aggio (1993), marcando suas potencialidades para a compreensão dos dilemas políticos contemporâneos.
Em 1970, a coalizão da Unidade Popular elegeu Salvador Allende como presidente do Chile. Tal eleição representava, para não só o Chile, mas também as esquerdas, o desafio de elaborar as transformações históricas necessárias para a construção do socialismo dentro da ordem e das instituições democráticas, o que implicava a produção de uma novidade no patrimônio das culturas políticas das esquerdas socialistas e comunistas, habituadas a uma visão instrumental da democracia e aferradas aos paradigmas revolucionários. Na perspectiva de Aggio, a construção dessa novidade passava pela resolução das ambiguidades entre democracia e revolução, e pela criação de uma nova concepção de tempo político adequada à modernidade política chilena, que se construía, em um processo histórico tenso e conflituoso, ao menos desde a primeira metade do século XX, com a ativação da participação das massas na política e a construção de um consenso democrático.
Na medida em que não abandonava os posicionamentos revolucionários, as ações da Unidade Popular terminaram por pressionar a própria ordem democrática que havia permitido sua ascensão ao poder. Incapaz de compreender os rumos da revolução passiva chilena, a coalizão política vitoriosa, em determinados momentos, procurou, sem consensos políticos estáveis, acelerar e aprofundar o ritmo das transformações históricas, contribuindo para o rompimento daquele consenso democrático.
Na modernidade ocidental, como afirmou Gramsci, o fortalecimento da sociedade civil tornou frívola a perspectiva de um assalto frontal ao aparelho do Estado. Nessa nova configuração política, trata-se de, por meio das relações de força que caracterizam a política, disputar a hegemonia na sociedade. Com isso, o tempo da revolução se torna incompatível com o tempo da política. Enquanto o primeiro é marcado por urgências, o segundo se alonga indefinidamente e constrói novo significado de ruptura, marcado pela ideia de que as transformações históricas devem ocorrer a partir de consensos pactuados politicamente no interior de uma moldura democrática. Por isso, Aggio afirma que “sem conseguir traduzir o seu projeto numa grande criação em que o novo nascesse, de fato, da particularidade chilena que havia possibilitado a existência daquela experiência, e sem formular uma nova noção de tempo político na construção do socialismo, o que implicava uma nova noção de ruptura – pactuada e reformadora –, a via chilena apenas conseguiu anunciar-se como uma via democrática”.
Diante disso, precisamos refletir em torno dos significados dessa experiência para a política contemporânea. Não revisitamos a “experiência chilena” para perscrutar seus fracassos ou mesmo reconstruir a oportunidade perdida para a construção do socialismo no século XXI. Distante de qualquer perspectiva socialista, a via chilena dialoga com o nosso tempo na medida em que marca um ponto de inflexão que aponta a necessidade de abandono das expectativas revolucionárias e um redirecionamento das políticas de esquerda para o enfrentamento da democracia, enquanto perspectiva civilizacional capaz de garantir transformações históricas, sem a perda das liberdades e das individualidades.
Cinco décadas após, o desafio apontado por Aggio na via chilena, marco da história da política democrática das esquerdas de hoje, ainda nos pertence. Para o presente, marcado pela ascensão de discursos autoritários e de perspectivas antipolíticas, considerar o tempo da política significa abandonar o sentido de ruptura como um momento condensado no tempo, tanto quanto compreender que o enfrentamento desse desafio civilizacional ocorre em uma temporalidade alongada e multidirecional, na qual devemos produzir os caminhos a partir dos dilemas do presente.
*Marcus Vinicius é doutor em História e membro do Conselho Curador da Fundação Astrojildo Pereira.
Alberto Aggio: Brasileiros de esquerda no Chile de Allende
“Irarrazabal chama-se a rua por onde caminhávamos em setembro. É um nome inesquecível porque jamais conseguimos pronunciá-lo corretamente em espanhol e porque foi ali, pela primeira vez, que vimos passar um caminhão cheio de cadáveres. Era uma tarde de setembro de 1973, em Santiago do Chile, perto da Praça Ñuñoa, a apenas alguns minutos do toque de recolher”.
É com essas palavras que Fernando Gabeira inicia a narrativa do seu famoso O que é isso, companheiro?, publicado em 1979, depois da anistia e de seu retorno ao Brasil. O livro alcançou um êxito tão fulminante quanto duradouro, especialmente em função da polêmica que criou ao questionar os valores e crenças daqueles que se lançaram à luta armada no Brasil. Gabeira era um deles e como muitos outros brasileiros que haviam saído do país por vincularem-se à esquerda – armada ou não –, ele estava no Chile no dia do golpe militar de 11 de setembro de 1973.
Naquele final de tarde Gabeira conheceria, mais uma vez, o sabor amargo da derrota. A sensação era pesada e a decisão difícil. Um tanto disfarçadamente, alguns companheiros caminhavam junto com ele pelas ruas de Santiago rumo à Embaixada da Argentina com o intuito de conseguir asilo político. Certamente não passava pela cabeça daqueles jovens a letra de “Para não dizer que não falei de flores”, de Geraldo Vandré, na qual se cantava, com outro espírito, os versos: “caminhando e cantando e seguindo a canção … a certeza na frente, a história na mão”. Ao contrário do voluntarismo daquela canção que animara os corações e mentes no final da década de 1960, ali só havia uma certeza: para salvar a própria vida, caminhava-se para um “exílio dentro do exílio”. A história lhes escapava das mãos e, como registrou Gabeira, o reconhecimento era inevitável: “as ditaduras militares estavam fechando o cerco no continente”.
Entretanto, aquela era uma explicação compreensivelmente unilateral a respeito do que se passava na América Latina e bastante superficial em relação ao que estava ocorrendo no Chile. Era, enfim, a visão daqueles que haviam investido sua juventude na luta armada e que viam a sua situação pessoal se complicar ameaçadoramente a partir da eclosão do golpe militar contra o governo de Salvador Allende. Isto porque àquela altura já não havia mais – se é que alguma vez houve – um movimento guerrilheiro de perfil latino-americano que estava sendo acuado pelas forças da reação, como Gabeira, de alguma forma, supunha em seu registro. As mudanças que se produziam naquela hora teriam, como se confirmará depois, um caráter muito mais profundo do que apenas o de reação a movimentos armados ou governos eleitos pela esquerda. As ditaduras que se impuseram por meio de golpes militares, especialmente a chilena, refundariam seus países e as repercussões disso eram ainda insondáveis para os homens contemporâneos àqueles fatos, especialmente aos que militavam na esquerda latino-americana.
Salvador Allende havia assumido o poder no Chile depois de vencer a eleição presidencial de 1970 sendo candidato da Unidade Popular (UP), uma coalizão de esquerda que abrigava os partidos Comunista, Socialista, Radical, Social-Democrata, a Ação Popular Independente e o Movimento de Ação Popular Unificado (MAPU). Ao longo de três anos, Allende exerceu a presidência da República e foi deposto por um golpe militar na manhã daquela terça-feira, dia 11 de setembro de 1973. Seu governo ficou conhecido como a “experiência chilena” porque se propunha realizar uma tarefa inédita: construir o socialismo mediante a manutenção e o aprofundamento da democracia. Essa perspectiva política havia sido denominada por Allende como a “via chilena ao socialismo”, uma consigna que visava expressar o caminho que deveria levar à realização do objetivo maior de seu governo. Analiticamente, a “via chilena” era o projeto que deveria embasar a atuação do governo e da esquerda enquanto a “experiência chilena” constitui-se no processo que marcou todas as realizações, contradições e vicissitudes do governo conduzido por Allende e pela Unidade Popular.
Contrastando com a situação chilena do início da década de 1970, o Brasil vivia, naquela conjuntura, um aprofundamento do autoritarismo e da repressão política que caracterizavam o regime ditatorial implantado no país em 1964. No final de 1968, o Ato Institucional n. 5 (AI5) impôs severas restrições à vida política do país com o fechamento do Congresso, a implantação da censura prévia aos principais veículos de comunicação e a cassação do mandato de diversos parlamentares. Contudo, o Brasil não viveu, no início da década de 1970, apenas os “anos de chumbo” da ditadura militar. Esse também foi o período do chamado “milagre brasileiro” no qual a economia cresceu aceleradamente, com base numa combinação de arrocho salarial e entrada maciça de capitais internacionais, proporcionando uma vigorosa legitimidade ao regime militar. Com ela vieram o ufanismo do “Brasil Grande Potência” bem como o agressivo slogan “Brasil: ame-o ou deixe-o”, uma dramática resposta aos críticos do regime. A situação política do país para aqueles que se situavam ideologicamente à esquerda, vindos do trabalhismo, do comunitarismo cristão, do comunismo, do socialismo ou do trotskismo, e que vislumbravam atuar em oposição ao regime militar quer do ponto de vista político-partidário quer do ponto de vista acadêmico e intelectual era visivelmente restrita e em alguns casos absolutamente impeditiva.
Não à toa muitos brasileiros tiveram que rumar para o exterior ou lá permanecerem, voluntária ou involuntariamente. Alguns o fizeram como último recurso para salvar a própria vida, outros simplesmente para conseguir dar seqüência à sua carreira profissional, especialmente aqueles vinculados ao meio acadêmico. Dentre estes últimos, muitos haviam se mudado para o Chile, depois de 1964, e lá permaneceram como pesquisadores da CEPAL (Comissão Econômica para América Latina) quando o regime militar deu mostras de recrudescimento da sua ação repressiva após a promulgação do AI5. Outros, contudo, como o já mencionado Fernando Gabeira, chegaram ao Chile depois de trocados pela liberdade de algum embaixador estrangeiro seqüestrado pela esquerda armada no Brasil. Naquele momento, o Chile tornou-se um dos destinos preferenciais dos exilados brasileiros tanto em função da sua longa trajetória de democracia quanto da vitória da esquerda em 1970. Para todos esses brasileiros, como Fernando Henrique Cardoso, Francisco Weffort, Plínio de Arruda Sampaio e José Serra, dentre outros, uma frase do hino nacional chileno, em que se canta que o Chile deverá ser sempre “el asilo contra la opresión”, soava bastante literal, além de garantir efetivamente um amparo seguro para eles e, em alguns caos, para suas famílias.
Darcy Ribeiro, um dos principais representantes da intelligentsia trabalhista brasileira, talvez tenha sido a liderança política vinda do Brasil que alcançou mais proximidade com o então presidente Salvador Allende. Darcy Ribeiro foi seu assessor especial e, nessa função, redigiu partes do famoso discurso presidencial de 05 de maio de 1971 no qual Allende define a via chilena como uma segunda forma de construção da sociedade socialista, procurando distinguir o caminho chileno das experiências soviética e cubana. Nesse discurso – que se tornou a principal referência a respeito da via chilena ao socialismo –, Allende menciona explicitamente trechos extraídos dos clássicos do marxismo, especialmente de F. Engels, em que se admite um caminho pacífico para o socialismo. A fala de Allende procurava enfatizar que o caminho chileno seria realizado “dentro dos marcos do sufrágio, em democracia, pluralismo e liberdade”, indicando que o principal desafio do Chile sob o governo da esquerda seria “institucionalizar a via política para o socialismo”.
Anos mais tarde, em suas Confissões (Cia. das Letras, 1997), Darcy Ribeiro relata que, juntamente com outro assessor, o valenciano Joan Garcés, defendera perante o presidente que o primeiro objetivo de seu governo deveria ser a criação de uma legalidade democrática de transição ao socialismo e não a ênfase na política de nacionalizações e estatizações. Assim, para ele, além das grandes transformações estruturais desenhadas no programa da UP – e que deveriam ser realizadas com muito equilíbrio –, o grande desafio da opção assumida no Chile residia no percurso que se deveria trilhar para se conquistar a institucionalização da via política para o socialismo.
Entretanto, os partidos da esquerda chilena se colocaram contra essa idéia, estabelecendo uma outra linha de ação. Nos três anos que se seguiram, a ação transformadora do governo da UP ficou concentrada no Poder Executivo, sob comando do presidente Allende. Acreditando que a legalidade chilena suportaria as transformações que o governo da UP colocaria em curso, adotou-se uma posição intransigente nas ações governamentais, visando incrementar a industrialização do país mediante processos de nacionalização e estatização, intensificar a integração social por meio de políticas públicas de corte popular e aprofundar a democratização com o aumento dos espaços de participação. A temática político-institucional, presente na reflexão de Darcy Ribeiro no inicio do governo, permaneceu em segundo plano e, mais tarde, meses antes do golpe, quando Allende lhe perguntou se a alternativa que propusera teria sido mais viável e eficaz, Darcy não teve como dar ao presidente uma resposta definitiva, preferindo um argumento mais consensual para o momento no sentido de reconhecer que a dimensão econômica já havia chegado ao seu limite e que o governo necessitava de outras soluções para enfrentar a severa crise que já vivenciava. Apesar das divergências de condução política, Darcy Ribeiro compartilhou com Allende a visão de que era preciso compatibilizar as transformações econômicas com o andamento político do processo e manter um comportamento hábil e cauteloso no sentido de “acumular forças” para passos mais decisivos que estariam por vir.
Contudo, desde o inicio, muitos viam com ceticismo a chamada via chilena ao socialismo. Influenciados pela Revolução Cubana e capitaneados pelo Movimiento de Izquierda Revolucionário (MIR), parcelas do MAPU e pelo Partido Socialista – o partido de Allende –, estes setores entendiam que esquerda e governo deveriam seguir a estratégia de “pólo revolucionário”, contestando de maneira antagônica o “poder burguês”, agindo no sentido de aprofundar as contradições e conflitos até se produzir uma situação pré-revolucionária. Para isso, era preciso “avanzar sin transar”, ou seja, aprofundar as transformações sociais e econômicas sem negociação alguma com outros segmentos do espectro político chileno. O MIR não apoiara a eleição de Allende e, durante todo o período, permaneceu como a força oposicionista mais ativa no campo da esquerda. Seu líder mais expressivo, Miguel Enriquez (que anos mais tarde seria brutalmente assassinado pela ditadura) qualificava de “mentirosa” a formulação da via chilena como um segundo caminho para se chegar ao socialismo. De uma forma geral, todos esses setores de esquerda eram contundentes críticos do projeto da via chilena ao socialismo – e a maior acusação era de que ela se mantinha equivocadamente no interior da institucionalidade do Estado burguês – e visceralmente contrários ao encaminhamento político adotado pelo governo Allende. Há que se mencionar também o fato de que, nessa avaliação, esses setores da esquerda chilena se viam acompanhados por intelectuais que expressavam o pensamento da então chamada gauche revolutionnaire que brilhou na Europa entre os anos 60 e 70. Estes intelectuais (dentre eles a italiana Rossana Rossanda do grupo Il Manifesto, jornal critico e dissidente do velho Partido Comunista Italiano, o PCI) vaticinavam em seus textos de avaliação da chamada experiência chilena que, mais cedo ou mais tarde, como em todos os reformismos, Allende seria forçado a mudar de estratégia, aderindo, por fim, ao caminho revolucionário – definido, para eles, por meio da ruptura armada com o Estado burguês.
Essa divisão marcaria profundamente a avaliação dos brasileiros que lá estiveram, refletindo a divisão que existia no seio da esquerda latino-americana a respeito do que se passava no Chile. Para boa parte da intelectualidade e da militância política da esquerda brasileira que se exilou no Chile, ao contrário do que defendia Allende, a experiência chilena teria que operar uma inflexão radical: passar do reformismo à revolução e do nacional-desenvolvimentismo ao poder democrático-popular. Um dos mais expressivos representantes dessa posição política foi Theotônio dos Santos, que era inclusive filiado ao Partido Socialista Chileno e dirigia, em 1973, o Centro de Estudos Socioeconômicos da Universidade do Chile (CESO). Nesse mesmo alinhamento poderíamos mencionar também os irmãos Eder e Emir Sader, Rui Mauro Marini, bem como Marco Aurélio Garcia, todos mais ou menos aderentes ou simpáticos às posições do MIR. Para se ter uma dimensão da contundência dos argumentos dessa corrente política, Theotônio dos Santos, no balanço final de um simpósio internacional realizado em Santiago, em outubro de 1971, procurou indicar o que ele entendia que deveria ser o papel chave do governo da UP: “criar condições para a tomada do poder (…) através da constituição do poder alternativo e não da conquista gradual do poder do Estado existente”. Depois do golpe, ao reavaliar todo o período, o que se deveria “julgar”, de acordo com Eder Sader, não eram os homens ou suas condutas no âmbito da esquerda e sim o próprio projeto da via chilena ao socialismo. O veredicto seria implacável: tratou-se de um equívoco trágico e fatal, ainda de acordo com Sader.
Para Darcy Ribeiro, esses setores praticavam um “radicalismo verbal exacerbado” e pretendiam – dogmaticamente – “cubanizar o processo chileno”. Para Darcy Ribeiro, essa “esquerda desvairada” ajudou a direita a dar o golpe definitivo em Allende. Essa avaliação, ainda que insuficiente enquanto uma explicação integral daquele processo histórico, nunca pode ser contestada cabalmente. Por outro lado, em sentido contrário ao que propugnavam no período e ao que escreveram posteriormente, aqueles que, como por exemplo, Theotônio dos Santos, à época criticavam Allende, entendem hoje – numa espécie de tour analítico surpreendente – que o governo da UP deve ser reivindicado “como vanguarda dos ideais revolucionários no nosso continente” e a sua experiência deve ser compreendida como um “projeto possível”.
Entretanto, para além da polarização acima apresentada, é possível identificar também entre os brasileiros uma posição intermediária, que chegou a ser formulada no correr do período Allende. Num texto publicado por Fernando Henrique Cardoso na extinta revista Argumento – escrito antes, mas vindo a público depois do golpe de Estado –, chamava-se atenção para algumas importantes dificuldades do processo político chileno no sentido de superar a situação de dependência existente no país por meio da estratégia e das práticas adotadas pela UP e pelo governo Allende. Para Fernando Henrique Cardoso, os conflitos políticos e sociais que envolviam o governo Allende ameaçavam chegar a um patamar incontrolável e lançavam uma nuvem de pessimismo sobre a situação política. Segundo o sociólogo brasileiro, em função dos graves acontecimentos que marcavam o governo Allende, o cenário que se apresentava não era dos mais auspiciosos para a democracia chilena. Contudo, essa percepção de Cardoso – em tudo distanciada do protagonismo polarizador que marcavam as posições dos dirigentes da esquerda brasileira no Chile – não se transformaria em uma orientação política relevante, permanecendo no seu universo estritamente acadêmico e reflexivo. Deve-se lembrar que Fernando Henrique Cardoso – no Chile, um funcionário da CEPAL – havia publicado, com o chileno Enzo Faletto, em 1967, o livro Dependencia y desarrollo en América Latina que se tornaria um clássico dos estudos sobre a dependência. A superação da dependência do Chile em relação à presença dominadora dos EUA em sua economia era uma das questões centrais do programa da UP e do governo de Allende.
De toda maneira, o que se pode observar é que expressas de forma contrapostas, as falas dos principais protagonistas invadem integralmente o campo de análise, mantendo o passado envolto em uma bruma que não se dissipa. Ao testemunharem sobre o Chile de Allende, é ainda a perspectiva da derrota da esquerda diante da direita que, de maneira exclusiva, conduz o repensar histórico. Evita-se pensar a experiência chilena como o fracasso de um governo conduzido pela esquerda. Nas avaliações publicadas pelos principais protagonistas que participaram daquele processo – e dentre eles alguns dos brasileiros que acima mencionamos – não se toma como relevante o fato de que o governo atuou como nucleador de uma política que seguia a via institucional e as bases sociais da esquerda como um outro pólo que buscou permanentemente resolver a chamada questão do poder para implantar o mais rapidamente possível o socialismo. Essa dissociação foi geradora de uma tensão permanente no campo da esquerda e invadiu o coração do governo da UP. A partir dessa perspectiva de análise é possível perceber que efetivamente Allende foi se tornando, com o passar do tempo, uma liderança disfuncional uma vez que não advogava pela ruptura institucional e, por outro lado, não revelava capacidade para dirigir e controlar por inteiro o processo político que, por fim, redundou numa polarização catastrófica.
De uma forma geral, pode-se dizer que a experiência chilena fracassou por razões que pareciam despreocupar os principais atores da esquerda chilena e que eram anteriores a qualquer possível erro de condução política do processo e que também não tinham que ver diretamente com o desafio inédito de construir o socialismo por meio da democracia. Hoje está claro que jogou um papel fundamental o fato de Allende ter sido um Presidente da República com apoio político minoritário do ponto de vista da representação, uma vez que ele havia sido eleito com apenas 36% dos votos e sua posse havia sido aprovada, em segunda instância, pelo Congresso chileno. Efetivamente, somente o “clima revolucionarista” do final dos anos sessenta e a poderosa influência da Revolução Cubana na esquerda latino-americana explicam a temeridade de se buscar avançar na construção do socialismo pela democracia com um percentual tão exíguo de apoio eleitoral. Hoje sabemos também que há, no Chile de Allende, uma extraordinária importância o fato de que as forças políticas à época se dividiam em três correntes político-ideológicas – os liberais e nacionalistas, a democracia-cristã e o eixo socialista-comunista –, com projetos de sociedade distintos e até antagônicos entre si, dificultando a convivência e o equilíbrio do sistema político ao extremarem suas posições. É importante chamar a tenção para o fato de que o Chile nesse momento não tinha um centro político com funções negociadoras. Ao contrario, a DC buscava também implementar o seu projeto de sociedade. Em outras palavras, a DC era um centro excêntrico e isso, senão impossibilitava, dificultava ao extremo qualquer negociação mais substantiva ou duradoura entre esquerda e centro político. Em terceiro lugar, se poderia mencionar um tema programático: as reformas implementadas por Allende, aprofundando a reforma agrária, estatizando bancos e empresas (especialmente aquelas vinculadas à área mineradora), eram excessivamente maximalistas e o caminho adotado para realizá-las, por meio do executivo, acabaram efetivamente abrindo espaço para a ingovernabilidade. A exacerbação da idéia de que socialismo era estatização no plano econômico gerou uma política de tipo “soma zero”, que agregada aos outros fatores acima mencionados, geraram uma crispação sem remissão entre as forças políticas do país. Por fim, há que se agregar o fator externo: o apoio dos EUA à oposição – democrática e não-democrática – e, em seguida, ao golpe de Estado, não deixa dúvidas a respeito da transcendência do que se passava no Chile no início da década de 1970. Impedir uma nova Cuba era essencial para os EUA e, de fato, se configurou como um processo impossível de ser levado a bom termo num país que havia experimentado décadas de vida democrática antes de 1973.
Dividida e aquém dos acontecimentos e dos ditames que a historia lhe colocava, a esquerda buscava, sob Allende, realizar uma revolução feita por mecanismos legais do Estado chileno, mas pretendia implantar um socialismo que não era outra coisa senão algo equivalente ao que se passava na União Soviética, na China ou em Cuba. Realizar uma coisa e outra se mostrou inviável naquelas condições, indicando que, em nenhum sentido, estava amadurecido o significado da via democrática ao socialismo que a esquerda chilena, a partir do governo, vocalizava e dizia querer implementar.
Por essa razão, o governo Allende não deve ser entendido como uma experiência prática da impossibilidade histórica de uma via democrática ao socialismo, como pensou a esquerda brasileira e latino-americana por vários anos, depois daquele 11 de setembro de 1973. Naquele governo apenas se anunciou essa possibilidade. Allende e a UP concebiam o socialismo a partir de uma cultura política convencional que predominava na esquerda latino-americana. Enquanto que o desafio que emergiu no Chile era novíssimo e obrigava a que se concebesse tanto o socialismo de outra maneira quanto um tipo novo de estratégia para se chegar a ele. Ator e circunstâncias se contraditaram e a história, por meio de outros personagens, se impôs implacavelmente.
‘Programa de ‘destruição’ pauta governo Bolsonaro’, afirma Alberto Aggio
Em artigo publicado na revista Política Democrática Online de agosto, historiador explique porque ‘a guerra do presidente’ não é efetiva
Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP
“O que pauta o governo Bolsonaro, em autodeclaração contundente, é o programa de ‘destruição’ dos atores, das instituições e da cultura política de convivência democrática que se erigiu nas últimas três décadas, sob a égide da Constituição de 1988”. A avaliação é do historiador Alberto Aggio, professor da Unesp (Universidade Estadual Paulista), em artigo que publicou na revista Política Democrática Online de agosto, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília.
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Todos os conteúdos da revista podem ser acessados, gratuitamente, no site da FAP. Segundo o historiador, em momentos nos quais a eloquência do presidente buscou mobilizar seus partidários, Bolsonaro chegou a ser explícito: “Isso é uma guerra, pô”. “Em outras situações, nas quais quis aparentar concórdia e distensão, seu discurso procurou operar com o antônimo, pedindo ‘paz, em nome do Brasil’”, observa o autor.
Na avaliação de Aggio, a “guerra de Bolsonaro” não é “a continuação da política por outros meios”. “Não é uma guerra efetiva, embora ambicione impor uma ‘suspensão da política’, como se estivesse num contexto revolucionário, à la Lenin, para quem a guerra deveria ser vista como desdobramento da revolução. Não é sem propósito observar também que Mussolini venerava a guerra e se dizia um revolucionário” explica Aggio.
Em outro trecho, o historiador lembra que, sentindo o mandato ameaçado, o presidente acusou o golpe e, depois disso, assumiu estratégia híbrida de congelamento do movimentismo e adoção de uma “guerra de posições”, para evitar o impeachment. “A estratégia de ‘suspensão da política’ esgotou-se. Cooptar os parlamentares do centrão para o campo governista tornou-se elemento essencial”, analisa.
No artigo publicado na revista Política Democrática Online, o professor da Unesp também observa que a ameaça de destruição integral da democracia parece estancada, embora o estrago tenha sido enorme. “Desorientada, a oposição viu o impeachment fugir-lhe entre os dedos, o que inevitavelmente voltou a aprofundar suas divisões. Isso fez com que Bolsonaro se recuperasse e saísse das cordas”, diz Aggio.
“Uma coisa é certa: Bolsonaro vacilou e criou obstáculos para não ‘abrir o cofre’ para salvar vidas (empresas e empregos), mas parece não ter dúvidas em fazê-lo para garantir sua reeleição, o que poderá agregar às crises que já temos um aprofundamento da nossa eterna crise fiscal, de consequências imprevisíveis”, acentua o historiador.
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RPD | Alberto Aggio: As modulações da guerra de Bolsonaro
O aumento do número de mortos provocado pela pandemia, a desastrosa atuação do governo no tratamento dado a ela, a inépcia do Executivo para manter um nível minimamente razoável de governança e o avanço da Justiça sobre as sinistras falcatruas dos filhos do presidente estancaram a linha de ação da guerra de Bolsonaro
Não estamos em guerra, nem internacional, nem de libertação nacional, nem mesmo contra a pandemia que se abateu sobre nós. No entanto, a metáfora da guerra invadiu, com palavras e expressões do mesmo campo semântico, o espaço discursivo da política desde que Jair Bolsonaro assumiu o poder. Até a cultura foi atingida em nome de uma insana “guerra cultural” contra tudo o que os partidários do presidente definem como “esquerda”. A militarização de parcela da gestão pública federal é parte dessa aparentemente insólita situação, com um general à cabeça do Ministério da Saúde asseverando que lá está “para cumprir ordens”.
O que pauta o governo Bolsonaro, em autodeclaração contundente, é o programa de “destruição” dos atores, das instituições e da cultura política de convivência democrática que se erigiu nas últimas três décadas, sob a égide da Constituição de 1988. Em momentos nos quais a eloquência confrontacional do presidente buscou mobilizar seus partidários, Bolsonaro chegou a ser explícito: “Isso é uma guerra, pô”. Em outras situações, nas quais quis aparentar concórdia e distensão, seu discurso procurou operar com o antônimo, pedindo “paz, em nome do Brasil”.
A “guerra de Bolsonaro” não é “a continuação da política por outros meios” (Clausewitz). Não é uma guerra efetiva, embora ambicione impor uma “suspensão da política”, como se estivesse num contexto revolucionário, à la Lenin, para quem a guerra deveria ser vista como desdobramento da revolução. Não é sem propósito observar também que Mussolini venerava a guerra e se dizia um revolucionário.
Talvez por isso a sensação de crispação política nos remeta tanto à guerra como à revolução. Esta última, um devaneio rupturista que os ideólogos do bolsonarismo curam em “fogo morno” contra a democracia em seus valores, instituições e direitos. Ruptura travestida como eliminação de “comunistas” e “corruptos” do solo pátrio. Como o presidente não lidera um partido fascista ou um movimento orgânico (embora tenha mobilizado massas) que combine a rua com redes sociais e instituições da sociedade política, pode-se dizer que ele e o “núcleo duro” do bolsonarismo guardam alguma similitude com a subsistência de experiências do tipo “45 cavaleiros húngaros”, mencionada por Gramsci, nas quais uma minoria, em meio à paralisia ou desorientação das massas, consegue alcançar um sucesso inesperado.
Garantir o êxito conquistado e levá-lo avante no mesmo padrão da campanha eleitoral foi o que se fez neste ano e meio, ao se acionar uma “guerra de movimento”, aberta e confrontacional, visando a uma vitória esmagadora e histórica que impusesse uma “nova hegemonia”. Esse movimento, permanente e multifacetado, que pediu “intervenção militar” e um “novo AI-5”, atingiu seu ápice no “bombardeio fake” ao STF com fogos de artifício, sugerindo que se passasse da encenação a um efetivo “golpe de mão”. Em maio, Bolsonaro cogitou efetivamente de “intervir” no STF e destituir seus ministros[1].
Mas havia mais de uma pedra no caminho. O crescente número de mortos provocado pela pandemia e o desastroso tratamento dado a ela, a inépcia do Executivo para manter um nível minimamente razoável de governança (cujo desastroso ápice foi a saída de Sergio Moro), e, por fim, o avanço da Justiça sobre as sinistras falcatruas dos filhos do presidente, envolvendo a milícia carioca, estancaram aquela linha de ação.
Ato contínuo, sobreveio uma contraofensiva democrática capitaneada pelas instituições da República, notadamente o STF, que, ladeada pela postura crítica da mídia tradicional, ganharia as redes sociais e, mesmo em plena pandemia, as ruas. Em manifestações múltiplas, a sociedade civil passou a confrontar simbolicamente as hostes bolsonaristas conclamando à defesa da democracia. Infelizmente, em função de históricas divisões, o saldo político dessa contraofensiva foi pequeno, mostrando a debilidade das forças democráticas.
Entretanto, sentindo o mandato ameaçado, o presidente acusou o golpe e, depois disso, assumiu estratégia híbrida de congelamento do movimentismo e adoção de uma “guerra de posições”, a visando evitar o impeachment. A estratégia de “suspensão da política” esgotou-se. Cooptar os parlamentares do Centrão para o campo governista tornou-se elemento essencial.
A mudança forçou um “retorno à política”, mesmo sem as convicções que uma operação como essa exige. Há claro dissabor nessa operação para quem pretendia vitória fulminante. Mas o movimento de Bolsonaro não é apenas defensivo. Ele pretende, de um lado, impedir a aproximação e uma eventual aliança entre a oposição e as principais lideranças de centro ou centro-direita no Congresso; e, de outro, capturar bandeiras sociais como o auxílio emergencial, que se somaria a outras propostas de cunho assistencial. Impedir o impeachment, por meio de uma “guerra de posições” e manter o ativismo eleitoral, rumo a 2022, define o sentido dessa mudança de estratégia; somente a severidade da crise, ao que tudo indica, pode comprometer seu êxito.
Por ora, a ameaça de destruição integral da democracia parece estancada, embora o estrago tenha sido enorme. Desorientada, a oposição viu o impeachment fugir-lhe entre os dedos, o que inevitavelmente voltou a aprofundar suas divisões. Isso fez com que Bolsonaro se recuperasse e saísse das cordas. Uma coisa é certa: Bolsonaro vacilou e criou obstáculos para não “abrir o cofre” para salvar vidas (empresas e empregos), mas parece não ter dúvidas em fazê-lo para garantir sua reeleição, o que poderá agregar às crises que já temos um aprofundamento da nossa eterna crise fiscal, de consequências imprevisíveis.
[1] Gugliano, Monica. “Vou intervir! O dia em que Bolsonaro decidiu mandar tropas para o Supremo”, Piauí, edição 167, agosto de 2020.
‘Bolsonaro transformou saúde em território de guerra’, diz Alberto Aggio
Professor da Unesp critica postura do presidente
Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP
O historiador e professor titular da Unesp (Universidade Estadual Paulista) Alberto Aggio critica o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) por minimizar a pandemia do coronavírus. Em artigo publicado na 20ª edição da revista Política Democrática Online, Aggio destaca que Bolsonaro “confronta governadores e prefeitos, ataca a mídia e insanamente perambula, sem máscara, por Brasília e cidades próximas, promovendo aglomerações e apoiando manifestações contra a democracia”.
Acesse aqui a 20ª edição da revista Política Democrática Online!
“Pensou-se que o Brasil teria um gap de vantagem frente aos países onde o vírus emergiu mais cedo”, diz Aggio. “Mas essa vantagem foi perdida a partir do momento em que Bolsonaro transformou a saúde num território de guerra. Isso inviabilizou que se estabelecesse uma estratégia séria e planejada de ‘isolamento social’”, lamenta. Todos os conteúdos da revista podem ser acessados, gratuitamente, no site da FAP.
Aggio lembra que, enquanto a pandemia avançou, Bolsonaro martelou pela “volta ao trabalho” e também propôs, na reunião ministerial de 22 de abril, um decreto para armar a população contra as restrições adotadas por governadores e prefeitos. “Mais do que politizar o combate à pandemia, Bolsonaro avançou o sinal, sugerindo uma ‘rebelião armada’ de ‘resultados imprevisíveis’ e seguramente deletérios para a Nação”, afirma o professor da Unesp.
De acordo com o historiador, sem Estado nem governo, indefesos, os brasileiros se socorrem nas informações da mídia e nos profissionais da saúde, vistos como verdadeiros heróis. “Exauridas, as autoridades subnacionais, que continuam resistindo, empreendem, sob pressão de diversos setores, uma temerária flexibilização da quarentena em situação absolutamente desfavorável”, diz o autor, em outro trecho.
O professor da Unesp observa que, entrar ou sair do confinamento foi, em vários países, determinação impingida pelo vírus e não uma opção irrefletida. “O que esteve em jogo foi a vida das pessoas e o bem comum”, acentua, para continuar: “Foram escolhas políticas a partir de orientações científicas, mas sem obediência cega, ressaltando a importância tanto da complexidade quanto da responsabilidade coletiva que tem a política em âmbito local, nacional e mundial”.
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RPD || Alberto Aggio: Em meio à pandemia, um espectro nos assola
A pandemia da Covid-19 está obrigando a repensarmos a economia, a cultura, a política e até nossa “filosofia de vida”, Avalia Alberto Aggio. O avanço do coronavírus mostrou onde a política falhou e onde acertou
Ao contrário da filosofia por vezes alucinante de Slavoj Zizek, que passou a profetizar o “novo comunismo” como resultado da superação da pandemia e da tresloucada contestação de Ernesto Araujo, que o tomou como dado de realidade a atestar a existência da ameaça comunista, não há nenhum espectro desse tipo a assombrar o mundo[1]. O que há é a realidade factual da pandemia a ditar: “decifra-me ou te devoro”.
O enfrentamento do coronavírus implicou ouvir especialistas e procurar seguir suas orientações. Contra algo desconhecido, os cientistas de todo o mundo trabalham para produzir medicamentos mais eficazes e uma vacina duradoura. Mobilizaram-se recursos, organização e informações claras à população. Mas o alarme foi dado: somos nós, os humanos, que precisamos decifrar o mundo que inventamos. Essa peste não vem dos céus, vem da natureza, e fomos nós que a disseminamos. Não haverá o nascimento da “boa sociedade” a partir de ruínas. Não é razoável supor isso. A pandemia nos obriga a repensar a economia, a cultura, a política e até nossa “filosofia de vida”. Força-nos a repensar a necessidade de governança em plano mundial – Daniel Innerarity construiu uma bela imagem: Pandemocracia, seu mais recente livro[2].
O avanço da pandemia mostrou onde a política falhou e onde acertou. Lideranças previdentes agiram rápido e obtiveram êxitos. Lideranças obtusas, como Jair Bolsonaro, agiram sob interesses pessoal e eleitoral, e as consequências estão sendo desastrosas.
Fernando Gabeira observou que, diferente de outros países, nosso problema é termos “o vírus e Bolsonaro”. O presidente minimiza a epidemia, confronta governadores e prefeitos, ataca a mídia e insanamente perambula, sem máscara, por Brasília e cidades próximas, promovendo aglomerações e apoiando manifestações contra a democracia.
Pensou-se que o Brasil teria um gap de vantagem frente aos países onde o vírus emergiu mais cedo. Mas essa vantagem foi perdida a partir do momento em que Bolsonaro transformou a saúde num território de guerra. Isso inviabilizou que se estabelecesse uma estratégia séria e planejada de “isolamento social”.
Enquanto a pandemia avançou, Bolsonaro martelou pela “volta ao trabalho” e também propôs, na reunião ministerial de 22 de abril, um decreto para armar a população contra as restrições adotadas por governadores e prefeitos. Mais do que politizar o combate à pandemia, Bolsonaro avançou o sinal, sugerindo uma “rebelião armada” de “resultados imprevisíveis” e seguramente deletérios para a Nação.
O resultado da política de Bolsonaro em relação à pandemia não tardou e instalou a cizânia entre autoridades, acabando com a sinergia entre os entes federativos. A conexão informativa do Ministério da Saúde com a sociedade evaporou-se. A consequência veio no aumento do número de mortos e de contaminados, que o governo só não seguiu a estratégia de sonegar informações porque a reação foi generalizada e a ameaça de impeachment seria real.
Sem Estado nem governo, indefesos, os brasileiros se socorrem nas informações da mídia e nos profissionais da saúde, vistos como verdadeiros heróis. Exauridas, as autoridades subnacionais, que continuam resistindo, empreendem, sob pressão de diversos setores, uma temerária flexibilização da quarentena em situação absolutamente desfavorável.
Entrar ou sair do confinamento foi, em vários países, determinação impingida pelo vírus e não uma opção irrefletida. O que esteve em jogo foi a vida das pessoas e o bem comum. Foram escolhas políticas a partir de orientações científicas, mas sem obediência cega, ressaltando a importância tanto da complexidade quanto da responsabilidade coletiva que tem a política em âmbito local, nacional e mundial.
Em Zizek e Araujo só há fantasmagorias advindas de uma visão mitológica do comunismo, no primeiro, e de um anticomunismo em roupagem antiglobalista, no segundo. O espectro que ameaça o país é outro. Isolá-lo e superá-lo demandará que nossa “intransigência democrática” caminhe ao lado do realismo e conte com muita articulação política. Mesmo sob ameaças reiteradas do bolsonarismo – com sugestões golpistas envolvendo as FFAA –, observam-se crescentes sinais de que os brasileiros começam a se mover para enfrentar essa insensatez que, entre nós, acompanha o vírus, na sua senda de exaurimento da democracia e da Nação.
*Alberto Aggio é historiador e professor-titular da Unesp
[1] Cf. Žižek, Slavoj. Virus. Milão, Ponte Alle Grazie, 2020; o texto de Ernesto Araujo está em https://www.metapoliticabrasil.com/post/chegou-o-comunav%C3%ADrus
[2] Innerarity, Daniel. Pandemocracia – una filosofia de la crisis del coronavirus. Barcelona: Galaxia Gutemberg, 2020.
Webinar da FAP lança o livro A Arquitetura Fractal de Antonio Gramsci
Além do autor da obra, Marcus Vinícius Oliveira, Alberto Aggio e Marcos Sorrilha participaram da conversa online com interação do público
Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP
Um grande debate online marcou o lançamento do livro A Arquitetura Fractal de Antonio Gramsci: história e política nos Cadernos do Cárcere (280 páginas), do historiador Marcus Vinícius Furtado da Silva Oliveira. O livro já está à venda na internet e foi editado pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), que realizou, nesta quarta-feira (27), a partir das 19 horas, a webinar com a participação do autor e dos historiadores Alberto Aggio, professor-titular da Unesp (Universidade Estadual Paulista), e Marcos Sorrilha Pinheiro, um dos grandes especialistas brasileiros em história dos Estados Unidos. Haverá ampla interação com o público.
A conversa online foi realizada por meio do canal da FAP no Youtube, com retransmissão no site da entidade e em sua página no Facebook. O livro de Marcus Vinícius é uma versão revisada de sua tese de doutorado, apresentada na Unesp, sob a orientação de Aggio. A obra é dividida em três capítulos: os Cadernos do Cárcere como objeto histórico; os anos que parecem ser séculos: o ritmo de pensamento do jovem Gramsci; e a arquitetura fractal: uma leitura dos Cadernos do Cárcere, além do pós-escrito.
Assista ao vídeo da webinar de lançamento abaixo!
Gramsci, político e intelectual italiano nascido na ilha da Sardenha, no Sul da Itália, é certamente um dos intelectuais mais lidos nas ciências humanas. Em sua apresentação, o livro registra que a bibliografia gramsciana foi agrupada inicialmente por John Cammet e continuada por Francesco Giasi e Maria Luisa Righi. Contabiliza mais de 20 mil documentos escritos em 41 línguas. “Diante disso, explorar o universo gramsciano se mostra uma tarefa hercúlea, seja em razão da aspereza imposta pela formatação fragmentária das notas carcerárias, seja pelo volume exponencial da bibliografia que se acumula com o passar do tempo”, afirma um trecho.
No livro, Marcus Vinícius assume a perspectiva de um diálogo entre filologia e historicismo integral, conforme o prefácio, escrito por Aggio. “Também não esconde sua permanente intenção de convocar Gramsci para a grande discussão dos dilemas políticos da nossa contemporaneidade, centrada nas temáticas da interdependência e do cosmopolitismo, dois vetores essenciais para a compreensão e o enfrentamento dos conflitos e dos desafios de um mundo globalizado”, diz o professor da Unesp, que também publica análises sobre história e política no Blog do Aggio.
Na avaliação do prefaciador, o autor não prescindiu, em momento algum, de enfatizar o caráter aberto do texto gramsciano, reconhecidamente uma das razões da grandeza do seu pensamento. “Outro aspecto importante é que não há no livro a perspectiva, como se fez no passado, de procurar extrair do pensamento de Gramsci orientações imediatas para a ação política ou então concepções de mundo integrais sobre a moral e a cultura, a sociedade e a história, o que invariavelmente produz operações reducionistas”, afirma, para continuar: “É preciso enfatizar, assim, que o autor comunga a ideia da impossibilidade de se pensar em um gramscismo como sistema ou esquema que deveria ser seguido por seus supostos adeptos”.
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Sorrilha, que também é professor assistente da Unesp e tem um canal no Youtube, analisa que o pensamento de Gramsci goza de larga repercussão no debate acadêmico e político no Brasil. “Desde a abertura democrática, suas ideias apareciam como um norte capaz de conciliar os anseios dos setores progressistas às novas demandas da democracia”, pondera. “Hoje, porém, é propagandeado como uma espécie do gênio do mal, capaz de incluir na sociedade uma moral comunista responsável pela deterioração dos valores ocidentais”, continua.
De acordo com Sorrilha, o autor do livro elabora um retrato histórico de Gramsci, devolvendo o intelectual italiano ao seu tempo, às discussões de sua época e às suas influências intelectuais, o que, segundo avalia, torna-o mais assimilável ao Ocidente e condizente com as sociedades democráticas. “O resultado é uma representação de Gramsci, pois não se está atrás do Gramsci ‘verdadeiro’, o que deve promover um estímulo ao leitor interessado, além de ampliar o debate com interlocutores especializados”, escreve.
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Alberto Aggio: 'Bolsonaro é o responsável por essas mortes provocadas pela Covid-19'
Em entrevista para o Papo Com Cabeça, o professor titular de história da UNESP/Franca, Alberto Aggio, responsabiliza o governo Bolsonaro pelo aumento exponencial das mortes, nos últimos dias, por Covid-19, ao minimizar a gravidade do vírus e ao trazer instabilidade política ao país, confrontando governadores e demitindo ministros
Permitam-me iniciar a introdução desta entrevista com uma explicação sobre o blog. Este blog tem como objetivo fazer entrevistas com atores diversos de nossa sociedade, como esportistas, políticos, intelectuais e entre outras pessoas que direta ou indiretamente tornam-se notáveis pelas suas ações em nosso meio social. Este blog, notadamente, também possuí um viés mais liberal, e procura compartilhar noticias que se aproximem desta corrente. Entretanto, não é um espaço fechado, pelo contrário, é um lugar que procura trazer o pensamento antagônico para se abrir ainda mais o leque do debate.
Dito isso, na semana passada, entrevistei o professor e doutor de história da UNESP/Franca, Jean Marcel, um intelectual reconhecidamente liberal. Nesta semana, trago uma entrevista que pode ser um contraponto em relação ao que tivemos com o professor Jean. O entrevistado da vez para o Papo Com Cabeça, é o também professor e doutor de história da UNESP/Franca, Alberto Aggio, intelectual de centro-esquerda e grande especialista do pensamento gramsciano.
Aggio se destaca no cenário intelectual por sua incisiva defesa pela democracia. Para o professor, a conquista da democracia no Brasil, após o regime militar, “foi muito custosa e difícil”. Por isso, ao ser indagado se Bolsonaro representava um risco ao campo democrático, Aggio foi enfático: “o governo Bolsonaro fez uma opção estratégica pelo confronto e isso gera uma sensação de ameaça e insegurança permanentes em relação à manutenção da democracia”.
No auge da crise sanitária do Covid-19, não poderíamos deixar de discorrer sobre o assunto e como Aggio analisa as ações do governo Bolsonaro frente ao problema. Para o professor, o presidente brasileiro é o grande responsável pela instabilidade política no país, pela extensão do número de contaminados e pelo aumento do número de mortes, que ultrapassa a casa dos 22 mil mortos. “Bolsonaro minimiza a epidemia, confronta governadores e prefeitos, mantem os ataques à mídia, demite dois ministros da saúde e outro que é símbolo da luta contra a corrupção”, avalia Aggio.
Ainda nesta entrevista falamos sobre Democracia Liberal, Social Democracia, Liberalismo e outros assuntos que envolvem nosso dia a dia social e político. Confiram!
Como você avalia o governo Bolsonaro, antes da crise, e agora na forma como está lidando com o Covid-19?
Alberto Aggio - O governo Bolsonaro é resultado de uma eleição legítima, uma rotina em qualquer democracia. Contudo, desde o início, o presidente se pauta por uma estratégia de “destruição” de tudo o que o país construiu nos últimos 30 anos, ou seja, tudo que vem do processo de democratização assentado na Constituição de 1988. Bolsonaro diz que seu objetivo é acabar com a “esquerda”. Na sua versão, com as instituições sociais, politicas e culturais que deram curso à democratização do País. É um equívoco. A democratização foi compartilhada para além da esquerda. Com essa concepção, Bolsonaro expressa a visão da ala mais reacionária do regime militar (1964-1985), aquela que quer repor um regime autoritário por meio de mecanismos democráticos. A estratégia de Bolsonaro é a do confronto. Ele não governa, é um ativador de tensões que busca construir inimigos, muitas vezes imaginários (como a exumação do comunismo como ameaça). Ele instaura um clima de ameaça, afastando-se da ideia basilar de que numa democracia há adversários e não inimigos que precisam ser eliminados. É uma dinâmica que não pode ser parada só pode ir adiante. É o que chamei em um artigo de “guerra de movimento” (https://blogdoaggio.com.br/isso-e-bolsonaro/). A “obra de destruição” que busca Bolsonaro não pode ser realizada em apenas um mandato. Por isso, seu horizonte é a reeleição. Quando vem a crise sanitária provocada pelo coronavírus, tudo fica mais crispado pois suas consequências, principalmente econômicas, ameaçam sua reeleição. O que faz então Bolsonaro? Minimiza a epidemia, confronta governadores e prefeitos, mantem os ataques à mídia, demite dois ministros da saúde e outro que é símbolo da luta contra a corrupção, apoia e vai a manifestações públicas que pedem o fechamento do STF e do Congresso, ou seja, radicaliza sua “guerra de movimento”. O resultado é a queda de popularidade nas pesquisas. Começa-se a se falar em impeachment. Bolsonaro é obrigado a rever, pelo menos em parte, a estratégia de confronto. Move-se em direção ao Centrão no intuito de constituir uma base parlamentar para evitar o impedimento. É aí que estamos: incerteza, insegurança, preocupação com a continuidade da democracia no Brasil e com a licitude dos recursos públicos uma vez que, como disse Sérgio Abranches, Bolsonaro visa formar com o Centrão não uma “coalizão de governo” mas uma “colusão”, ou seja, um arranjo para enganar (http://www.fundacaoastrojildo.com.br/2015/2020/05/19/sergio-abranches-bolsonaro-em-modo-defesa/). Se o governo se sustenta na “ala ideológica” de extrema-direita mais a dos militares, agora Bolsonaro dá passos em direção a um campo que contradiz o seu discurso de campanha contra a alegada “velha política”, promovendo um claro “estelionato eleitoral”. Mas pode bloquear o impeachment, que é o objetivo da operação.
As mortes no Brasil estão crescendo, no entanto, proporcionalmente, por milhões de habitantes, estamos atrás de muitas nações desenvolvidas. Ou seja, mesmo países como Inglaterra, Espanha, Itália etc., não souberam lidar da melhor forma com o vírus. Neste ponto, você não acha que existe uma tentativa da oposição política e parte mídia em responsabilizar o governo Bolsonaro por um problema que tem sido difícil combater até mesmo nas nações mais avançadas?
A.A. Não, não acho. Embora o enfrentamento da pandemia seja complicado porque se trata de algo desconhecido, não creio nem que o Brasil esteja se saindo melhor que países europeus, nem que a mídia atue contra o governo Bolsonaro. O exemplo europeu (e chinês, antes) mostra que a quarentena foi obrigatória, uma imposição, e não uma escolha. Os países europeus, agora, estão saindo dela enquanto o Brasil está entrando na pior fase, com o aumento expressivo do número de mortos. Cabe a pergunta: quem seria o principal responsável no combate à epidemia no Brasil? O governo Bolsonaro, quem mais seria? O Ministério da Saúde deveria fazer a mediação dos entes federativos para enfrentar a epidemia. Mas Bolsonaro atacou de saída os governadores que tinham que dar respostas imediatas à enfermidade. Criticou Mandetta quando o ex-ministro, em meados de março, esteve em São Paulo reunido com o governador João Doria discutindo providências diante da pandemia. Foi Bolsonaro quem politizou o combate a epidemia da Covid-19. Pensou que iria prejudicar sua reeleição, se sentiu ameaçado. Bolsonaro não fez outra coisa senão atrapalhar as ações da saúde, abandonando qualquer relação positiva com os governadores e prefeitos. Jamais convocou o país para juntos – congresso, sociedade civil, mídia, etc. –, enfrentar a epidemia. Ele não acredita nas indicações científicas, não aceita o isolamento social e se fixou obcessivamente nas supostas virtudes da cloroquina para curar os contaminados. Minimizou as mortes com o patético “E daí?”. Estimulou seus apoiadores a irem às ruas defender a volta ao trabalho, adotando a estratégia de opor economia e vida. E mais: na dantesca reunião de 22 de abril (como corretamente a definiu Vera Magalhães (https://gilvanmelo.blogspot.com/2020/05/vera-magalhaes-o-inferno-de-dante.html), Bolsonaro propôs um decreto para armar a população com o suposto intuito de enfrentar decisões de dirigentes eleitos democraticamente a respeito do isolamento social. E aqui estamos, ultrapassando a casa dos 22 mil mortos e isso vai se acelerar. Bolsonaro é sim o responsável por essas mortes provocadas pela Covid-19. Seria dele que os brasileiros deveriam esperar liderança, apreço e convicção na ciência além de compaixão nesse momento tão difícil. Mas ele só ofereceu deboche, desorientação e morte.
Aggio, a economia brasileira é marcada pela informalidade, milhares de pessoas não possuem nem CPF para receber o auxílio emergencial. Nossa realidade é bem distinta dos países mais avançados que permitem ações mais restritas quanto o isolamento social. Como lidar com essa situação na qual as pessoas necessitam, como diz o jargão popular, de vender o almoço para garantir a janta?
A.A. - Esse país conseguiu criar um “cadastro único” para os mais pobres receberem mensalmente as várias bolsas, desde FHC, e o bolsa família. Não conseguiria fazer algo similar nessa situação de emergência? É uma “desculpa deslavada”, como se diz popularmente. Isolamento social não é coisa de rico, como o discurso bolsonarista quer fazer crer. Inclusive, nenhum prefeito ou governador propôs isolamento total (lockdown). Atividades essenciais continuam a operar e por isso se fala que o ideal seria um isolamento entre 50% e 70%; ninguém falou em 100%. Claro que existem dificuldades, mas onde elas existem, como na favela Paraisópolis, em São Paulo (quer um lugar onde tenha mais pobreza e necessidades?), os moradores se organizaram para se ajudar e garantir algum isolamento. Recentemente se inaugurou um hospital de campanha na área para atender aquela população. E de Bolsonaro veio o quê? A noção de “isolamento vertical”, que é uma falácia: imagina-se que confinando os grupos de risco (idosos e quem tem comorbidades) se diminui o contágio e possíveis complicações. Isso não é verdade. As pessoas que convivem com eles levam o vírus para dentro das casas. Além disso, no Norte do país, no Amazonas, está morrendo gente jovem de coronavírus; perto de 40% ou mais não são de grupo de risco. Os problemas da pandemia podem ser enfrentados com solidariedade, ciência e espirito público. Mas isso o governo Bolsonaro parece que não carrega como uma de suas virtudes, se é que em alguma.
Aggio, embora Bolsonaro fale grandes bobagens e possua algumas ações que flertam com a ditadura brasileira, como ter comparecido em um movimento de rua que pedia a volta do AI-5, vemos que os poderes legislativo e judiciário continuam agindo de forma independente, nossas instituições parecem preservadas e a opinião pública livre e independente para se manifestar. Mediante ao que escrevi acima, para você, o governo Bolsonaro representa uma ameaça à democracia brasileira? Se sim, por que?
A.A. - Como eu disse acima, o governo Bolsonaro fez uma opção estratégica pelo confronto e isso gera uma sensação de ameaça e insegurança permanentes em relação à manutenção da democracia. As instituições da democracia só continuam funcionando em função de atores políticos, sociais e culturais que dão vigor a elas. Bolsonaro não apenas diz bobagens. Ele dirige e orienta ações contra a democracia. Vide suas posições em relação à imprensa (creio que não preciso mencioná-las), ao meio ambiente, à cultura, ao patrimônio histórico, às universidades, etc.. Está claro que é um governo extremista de direita, nada liberal e que atenta contra direitos básicos que estão da Constituição. Pior, ele isola o país internacionalmente, faz com que a sociedade regrida em inúmeras pautas civilizatórias e humanistas que tínhamos avançado em termos sociais e culturais, como as dimensões de gênero, a questão da violência, da solidariedade, da laicidade do Estado, etc. Uma das marcas de Bolsonaro é o seu antiintelectualismo e isso faz com que todo o governo seja impactado por essa visão. Contra a Constituição de 1988, Bolsonaro retira (ou expulsa) do Estado a sociedade organizada, que é um dos elementos de sua desoligarquização, ou seja, da ampliação do próprio Estado, pela via da democracia. Com Bolsonaro, a democracia está bloqueada e regride. E isso gera uma sensação de retrocesso que é sentida no conjunto da sociedade. Não é atoa que ele despenca nas pesquisas e mantem seu apoio apenas no núcleo mais radical, que o apoia cegamente.
Existem elementos suficientes que justifiquem um possível pedido de impeachment? Caso existam, você acredita que ele possa ocorrer?
A.A. - Inúmeros especialistas em direito constitucional já disseram que sobram elementos para o impedimento de Bolsonaro. Em geral, os crimes contra o decoro lideram a lista. Tentar utilizar, por exemplo, a Polícia Federal para defender a família e os amigos é prevaricação, ou seja, é mais do que intervenção, o que já é inconstitucional. Manter um sistema de informações privado (que não se sabe muito bem o que é) está fora das atribuições constitucionais de um presidente da República, é um outro exemplo. Contudo, a questão é política, antes de tudo. Olhando a situação com as lentes de hoje, creio que não existe maioria suficiente na Câmara dos Deputados para avançar um processo de impeachment. Lançá-lo poderia reforçar Bolsonaro ao invés de enfraquece-lo. A operação realizada em direção ao Centrão surtiu efeito. Por outro lado, a crise sanitária e a necessidade de isolamento social impedem que o sentimento de desencanto com o governo transborde para as ruas numa contestação massiva. Penso que a ameaça de existência ou de criação de uma “milícia armada” dentre os apoiadores de Bolsonaro é outra coisa preocupante. Ambos os fatores definem muito da situação complicada para o impeachment, em termos políticos. O processo de crime comum que seria encaminhado pela PGR ao STF, aparentemente mais rápido, tem outros obstáculos. É difícil dizer hoje por onde esse processo irá ser encaminhado ou se será encaminhado.
Aggio, em 2018 você participou do Ato do Polo Democrático Reformista, um movimento de políticos e intelectuais de centro que, naquela ocasião de eleições, visava combater os chamados extremos, Bolsonaro e o PT. Em recente artigo (https://gilvanmelo.blogspot.com/2020/05/mathias-alencastro-vida-e-morte-da.html), Mathias Alencastro, doutor em Ciência Política por Oxford, disse que na Europa partidos políticos, até de diferentes vertentes, têm se unido para combater o extremismo de direita, citando a “Geringonça” de Portugal. Pois bem, em 2018 e trazendo para os dias atuais, se os partidos de centro, e até mesmo o Polo Democrático Reformista, estavam tão preocupados em “salvar” a democracia dos considerados extremos, por que não houve uma união entre os nomes e partidos democráticos de centro, como Ciro, Alckmin e Marina?
A.A. - É difícil responder a isso. É claro que cada opção eleitoral feita deve se responsabilizar por suas consequências. Creio que houve muitos erros de encaminhamento e de opções. Havia um clima muito desfavorável à política. Eu mesmo escrevi sobre a antipolítica como um caldo de cultura antidemocrático naquela conjuntura. E todos nós perdemos. Mas mesmo assim, continuamos preocupados em “salvar” a democracia. A sua conquista no Brasil foi muito custosa e difícil. É justo que nós a defendamos. É verdade que na Europa existiram articulações que impediram, em alguns países, a ascensão da extrema-direita ao poder. Na Itália isso é bastante claro. Matteo Salvini imaginou que poderia conquistar “plenos poderes”, mas fez uma manobra desastrada que abriu a possibilidade de retirá-lo do poder. É um caso especifico. Na Espanha houve uma espécie de renascimento do PSOE e o Podemos, depois de muitas reviravoltas, moveu-se para uma aliança de “governo de esquerdas” e o VOX (extrema-direita) foi anulado. Creio que a Geringonça, em Portugal, pelas informações que tenho, nunca foi uma coalisão eleitoral e sim uma colisão de governo. Hoje ela não existe mais. Mas em Portugal, a extrema-direita é fraquíssima.
Você enxerga a necessidade de uma união dos partidos para vencer Bolsonaro e/ou o PT, assim como colocou Mathias Alencatro?
A.A. - Mais do que união de partidos, creio que será necessário unir todos os democratas, da direita à esquerda, para vencer Bolsonaro. O PT não está no governo. Ele já foi derrotado. O PT representa setores importantes das classes populares, mas não é um sujeito democrático confiável, além de ter um passivo terrível no que se refere à corrupção e ao aparelhamento do Estado. Além de uma liderança ancilosada, que é o Lula. O problema do Brasil hoje é Bolsonaro e não o PT, que está em declínio, enfraquecido, embora tenha alcançado um bom desempenho nas majoritárias de 2018. De qualquer forma, a sociedade reconhece a polarização entre Bolsonaro e o PT. O problema é superar esse reconhecimento, indicar que a situação hoje é outra. Bolsonaro nos leva para o precipício. O vídeo revelando a reunião ministerial de 22 de abril é pavoroso, nos enche de vergonha, demonstra que o Brasil precisa ultrapassar o erro de 2018 e voltar a pensar em novas possibilidades, novas lideranças, que sejam capazes de unir o país e voltar a pensar no seu futuro.
Aggio, quando você vê a ascensão de grupos denominados de extrema direita no mundo, como um todo, você acredita que isso é parte da democracia, dar voz a pluralidade de ideias políticas, ou você analisa como uma ameaça ou crise “DA” democracia liberal?
A.A. - Essa extrema-direita que está aí é iliberal. Foi Viktor Orban, primeiro ministro da Hungria, que criou a expressão “democracia iliberal” para caracterizar esse movimento. D. Trump e J. Bolsonaro a representam à sua maneira e em seus países. Isso é público e insofismável. Essa corrente política é contra o pluralismo que caracteriza a democracia liberal que conhecemos. Contradita também as diversas correntes do liberalismo democrático que vicejou no final do século XX nos países mais avançados e que ainda está aí. Essa extrema-direita é visceralmente contra a democracia como civilização. A ascensão da extrema-direita não é resultado do pluralismo, justamente o contrário, é resultado de uma fragilidade e de equívocos que permitiram que isso ocorresse. A virtude da democracia aponta para a ampliação da emancipação humana e não para um projeto de individualismo exacerbado e de guerra de todos contra todos. Penso que o crescimento dessas forças políticas expressa uma crise da e na democracia ocidental; uma coisa não exclui a outra, como pensam alguns. E se prende a conflitos políticos e econômicos da nossa contemporaneidade e não a batalhas ideológicas simplesmente. É um problema que tem que se abordado pela política e não pela gramática da ideologia.
Admitindo a radicalidade desses extremos, qual autocritica que os democratas liberais poderiam fazer e quais mudanças poderiam realizar para contornar este cenário?
A.A. - Creio que autocrítica devemos fazer todos, pois perdemos eleitoral e politicamente. Mas devemos continuar a defender a democracia. Estamos num momento defensivo e para melhor defendê-la é preciso também avançar. A democracia não é um sistema ou regime político que possa existir sem uma defesa intransigente dos seus princípios e valores: liberdade, emancipação, deveres e direitos, compromisso político, institucionalidade, transparência, justiça social, etc… Dois pontos são importantes. Primeiro, pensar a democracia como complexidade. Ela não se materializa, não se concretiza, não se torna real, a partir da simplificação, uma visão branco e preto, com todas as perversões do pensamento binário. Essa visão da política, no nosso caso, leva rapidamente para as ideias sempre estúpidas de um “salvador da pátria” ou de um “mito” que muitos seguem cegamente. Segundo, que a democracia só se vitaliza, só avança com “mais democracia” ou, em outros termos, democratizando a democracia. Essa é uma formulação presente nos liberais progressistas que se aproxima bastante de formulas progressistas da esquerda democrática, socialdemocrática e reformista.
Aggio, a analista econômica, Renata Barreto, em artigo para o InfoMoney, disse para “não confundirmos o modelo nórdico com socialista”. Durante o artigo, ela discorre que apesar das altas taxas de impostos cobradas pelo governo, a Dinamarca, por exemplo, tem várias características de um país liberal. Pois bem, este debate Liberalismo versus Social Democracia ainda existe? Os países nórdicos são, de fato, sociais democratas?
A.A. - Tem que se olhar o liberalismo do ponto de vista histórico. Lembro que Harold Lask, historiador inglês, dizia, que o socialismo seria uma consequência natural da aplicação do liberalismo. Muito pouca gente sabe que o liberal G. Mazzini, um dos líderes da unificação italiana e o comunista K. Marx, publicavam seus escritos pela mesma editora londrina, por volta de 1846/48, a “Northern Star”, que se notabilizou pelos debates sobre democracia e o movimento operário às vésperas das revoluções de 1848. Os socialdemocratas que, no final do século XIX, começaram a participar das eleições e ascenderam ao governo em países que cada vez mais se tornavam democracias liberais, como E. Beirstein e K. Kautsky, foram criticados como liberais e traidores de classe. Por conta deles e de outros, passou-se a se falar em “socialismo liberal”. Veja, são exemplos históricos que anulam a versão de que há uma contradição antagônica entre liberalismo e socialdemocracia. O liberalismo é uma concepção de mundo enquanto a socialdemocracia foi e é uma política de massas no contexto do Estado Ampliado. Para finalizar, a noção de “regulação” nasce nos países nórdicos com os socialdemocratas entre as duas guerras e era uma alternativa tanto ao fascismo quanto ao comunismo nos anos 30. Não há dúvida que os países nórdicos são socialdemocratas e que o liberalismo não seja algo estranho àquela construção histórica. O que é certo é que eles não permanecerão congelados historicamente.
O nacional desenvolvimentismo petista trouxe grandes prejuízos ao Brasil, sem falar do grande “projeto” de corrupção descortinado pela Lava-Jato. Depois do petismo, do excesso de Estado e funcionalismo público, temos visto muitas pessoas (inclusive eu) defendendo menos Estado e mais mercado. Como você avalia as ideias liberais, hoje até mais representadas pelo Partido Novo e pelo ministro Guedes, na sociedade brasileira como um todo?
A.A. - Veja, o PT não adotou o nacional-desenvolvimentismo durante todo período dos seus governos. O primeiro governo Lula e o último de Dilma são completamente distintos nesse sentido. A questão da hipertrofia do Estado em nossa história é muito anterior a isso. O nosso estatismo forma parte de uma espécie de tradição que nos acompanha deste a colonização portuguesa, se acentuou no Império e não pode ser excluída de nenhuma fase de nossa história republicana. O regime militar foi ao mesmo tempo estatista e liberal, dando vazão aos apetites empresariais no período do chamado milagre brasileiro (1968-1973), o tal “espirito animal” ou “selvagem” do empresariado a que se referia Delfim Neto, ex-ministro da Fazenda do regime militar. Contudo, nos dias de hoje, pensar de forma apartada e até oposta os conceitos de Estado e mercado talvez não faça mais sentido e nem seja produtivo. O pensamento neoliberal quer mantê-los apartados. Mas não tenho dúvidas que as ideias liberais no Brasil vão muito além das referências ao partido Novo ou a Paulo Guedes. Aconselho a se visitar as páginas de um grande jornal liberal, O Estado de São Paulo, para ver como uma das mais importantes linhagens do nosso liberalismo avalia o país sob Bolsonaro. Por outro lado, há diversos liberais que pensam de forma independente e são muito críticos tanto ao Novo e mais ainda ao Guedes, um neoliberal que, formado em Chicago e inspirado no caso chileno do período pinochetista, distancia-se da tradição das linhagens mais importantes e relevantes do liberalismo aqui no Brasil, que podem ir de Pedro Malan, Bolivar Lamounier até Monica de Bolle e Elena Landau, para citar apenas alguns da boa cepa que esse país já produziu.
Para encerrar, falando em projeto de poder para o Brasil e frente a este debate de mais ou menos Estado, o que você considera ser essencial para o nosso país mediante toda a nossa realidade socioeconômica?
A.A. - Este talvez seja um tema para uma outra entrevista de tão complexo que é elaborar um projeto aqui, em poucas linhas. De qualquer forma, creio que temos que ultrapassar essa situação terrível que estamos vivendo, acossados por uma pandemia e submetidos à deriva que nos é imposta por um governo como o de Bolsonaro. Temos que resgatar a nossa capacidade de diálogo, de nos atualizarmos ao mundo e de olharmos para as nossas particularidades enquanto país que se modernizou carregando inúmeros déficits que expressam a nossa dramática desigualdade bem como nossa miséria cultural e moral, sérios obstáculos à democracia. Não há salto a ser dado nem “fuga para frente” a ser seguida, como se pensou no passado. O nosso destino está dado aqui e agora. Esse é o desafio.
Alberto Aggio: Sobre o artigo de Hamilton Mourão
Em relação ao sentido político do artigo do vice-presidente Hamilton Mourão [O Estado de S. Paulo, 14 de maio], creio que se deverá especular muito sobre o seu sentido diretamente político, ou seja, de conjuntura e de ação política. O ambiente bolsonarista instaurou uma "guerra de movimento" em que o confronto é o tom mais habitual (no mesmo 14 de maio, Bolsonaro foi explícito ao falar com empresários contra o governador de São Paulo João Doria: "É guerra").
A complexidade da situação pode ser mobilizada sugerindo que, em certo sentido, Mourão revela que sob o bolsonarismo estaríamos imersos naquela metáfora dos "45 cavaleiros húngaros" comentada por Gramsci em referência a situações abertas ou que são maturadas para um possível assalto ao poder por parte de um grupo minoritário [cf. o texto de Gramsci no post abaixo]. A fala de "um jipe, um cabo e um soldado para fechar o STF", pronunciada pelo Eduardo Bolsonaro, bem como os “300 de Brasília” são exemplares dessa situação.
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O artigo de Mourão faz, no essencial, uma defesa do governo e cita várias vezes os "pais fundadores" do federalismo norte-americano. É possível especular sobre as fontes, sua validade, correção ou mesmo instrumentalização. Mas é preciso considerar que o artigo tem nível e Bolsonaro seria incapaz de escrever algo minimamente similar.
Bastante preocupante talvez seja aquilo que se pode inferir em termos de ação política, ou seja, a ênfase de que as FFAA, que foram colocadas por Bolsonaro para dentro do sistema político, parece que serão os principais atores a resolver a nossa profunda e enorme crise, já que o autor condena veementemente a imprensa e os outros poderes, notadamente o judiciário, além de eximir inteiramente o presidente de qualquer responsabilidade. Mourão sugere que as FFAA são "o ator" capaz de, novamente, salvar o Brasil de "tanto mal" que se faz contra o País. Creio que Mourão alerta para o fato de que está se aproximando o momento em que as FFAA terão que cumprir, novamente, um papel estabilizador: nem Bolsonaro nem as forças de oposição a ele. Podem até manter Bolsonaro (que terá que pagar o seu preço), mas se abrirá uma luta interna forte entre grupos militares.
O artigo de Mourão seria destinado aos generais que estão no governo, seria uma advertência para salvá-los, ao mesmo tempo que indicaria um caminho para salvar as FFAA de um desenlace desastroso deste governo. No fundo, Mourão adverte que há possibilidade de salvar o país: com eles no comando. Se vai se dar por um golpe clássico ou não, só se saberá no momento certo. Creio que nessa hipótese de análise do artigo de Mourão o País poderia deixar o clima de "45 cavaleiros húngaros", que é o movimento de Bolsonaro, para entrar numa lógica mais próxima daquela do regime militar brasileiro.
No essencial, o artigo é, por ora, uma advertência. Mas pode-se depreender um sentido maior: sair da guerra de movimento, da lógica que levaria inevitavelmente aos "45 cavaleiros húngaros". Os atores para isso são os militares. Não há outra sugestão no artigo, nem mesmo a presidência da República: Bolsonaro não é sequer mencionado. Creio que, de acordo com Mourão, os militares assumiriam o poder diretamente, com ou sem Bolsonaro, e não seriam moderadores. Esse seria o preço a ser pago por Bolsonaro. Por ora, há uma advertência, mais à frente pode-se montar as condições para isso. Talvez aí Bolsonaro pague o preço para não ser defenestrado. E, com certeza, essa história não terminaria assim.
*Alberto Aggio, historiador é professor titular da Unesp
‘Tudo está em profunda transformação’, diz Roberto Freire na última aula da Jornada da Cidadania
Curso de formação política chega à etapa final com discussão sobre a Era Digital; alunos têm até 15 de junho para concluírem curso e receberem certificado
“Estamos no limiar de novo mundo e, portanto, não podemos imaginar que as instituições, as relações sociais entre as pessoas, o mundo do trabalho e a sociedade permaneçam como estão”, afirma o presidente nacional do Cidadania, Roberto Freire, em videoaula de encerramento da Jornada da Cidadania. Realizado pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), o curso multimídia de formação política disponibiliza, nesta quarta-feira (13), o último pacote de aula na plataforma de educação a distância totalmente online, interativa e com acesso gratuito.
Os conteúdos são disponibilizados, exclusivamente, para alunos cadastrados na Jornada da Cidadania, com login e senha. Em sua videoaula, Freire explica o futuro da política e dos partidos na Era Digital, a qual, segundo ele, é alcançada por meio da revolução da inteligência artificial e da comunicação em redes. “Tudo está em profunda transformação”, afirma o presidente nacional do Cidadania. Ele cita, por exemplo, que estão mudando as relações institucionais e a própria democracia representativa.
Em seguida, o historiador Alberto Aggio, professor da Unesp (Universidade Estadual Paulista), analisa o governo Bolsonaro no contexto da pandemia do coronavírus. Em seguida, o diretor de Treino da empresa Ideiais Radicais, Renato Diniz, explica gestão de voluntários e o especialista em educação Rafael Parente destaca pontos importantes da educação e formação continuada.
Na última aula multimidia, os alunos também deverão assistir a um vídeo do sociólogo Manuel Castelo, em que ele aborda escola e internet no mundo de constante aprendizagem dos jovens. Além disso, também terão de ler parte do livro A sociedade em rede e ouvir o podcast em que Roberto Freire complementa a sua aula ao analisar a pandemia da Covid-19 e o futuro do Brasil, antes de responderem ao questionário e à pesquisa de satisfação.
Etapa final
Todos os alunos terão até o dia 15 de junho para concluírem o curso na plataforma de ensino a distância e receberem certificado com camiseta e caneca personalizadas da Jornada da Cidadania, no endereço cadastrado no ato da inscrição. Possíveis alterações do endereço devem ser comunicadas pelos alunos à FAP, realizadora do curso.
A Jornada da Cidadania teve início no dia 12 de fevereiro, oferecendo 36 horas de conteúdo multimídia para os internautas, ao longo de 14 semanas. O objetivo é capacitar cidadãos acerca de conteúdos relevantes da política, além de fornecer bases fundamentais para possíveis candidatos que pretendem disputar as eleições municipais deste ano.
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