Alberto Aggio

Alberto Aggio: Ainda imersos na falácia do golpe

Faz algum tempo que estamos imersos numa hiperinflação do uso da palavra “golpe”. Mesmo após ser consumado o impeachment de Dilma Rousseff, parece que continuaremos a ter essa expressão, e seus derivados, a soarem em nossos ouvidos por algum tempo. Ainda mais agora que Dilma foi constitucionalmente destituída da presidência, mas não perdeu seus direitos políticos.

Quando aplicado à política, a palavra golpe é antes uma metáfora que carrega uma carga significativa de dramaticidade. Faz lembrar imediatamente soldados, armas e tanques, agressões e violência, imposição e repressão no sentido de silenciar opositores. Convencionalmente, a palavra “golpe” quer indicar uma ação incisiva, fulminante e até traiçoeira que visa constranger, agredir e, no mais das vezes, anular ou eliminar o adversário político. Chamar alguém de “golpista” não seria propriamente um xingamento, mas no contexto em que vivemos, efetivamente o é.

Em termos políticos, um “golpe” pode ser caracterizado como qualquer ação intencional de violação da legalidade que rompa com a representação soberana nas instituições políticas, notadamente no Estado. Uma ação impetrada em detrimento do andamento normal da vida institucional de uma comunidade política. Um “golpe de Estado” é convencionalmente entendido como um ato de destituição ilegal de um governante que chegou e ocupa legitimamente um determinado cargo e encontra-se no exercício pleno das funções estabelecidas por esse cargo. Um “golpe de Estado” ceifa o mandato desse governante de maneira ilegal e ilegítima.

Contudo, historicamente, há vários tipos de golpe. Pode haver golpes de Estado que impeçam a renovação da representação política, cancelando eleições, como fez Getúlio Vargas, em 1937, instalando o Estado Novo ou como fez Fulgencio Batista em Cuba, em 1952. No regime parlamentar, um golpe palaciano pode alterar regras de sucessão ou manipular o andamento político que levaria à efetivação dessa sucessão, por meio de ações conspiratórias, como fez Hitler para chegar ao poder. No regime presidencialista, os golpes são, em geral, aqueles que destituem os presidentes por meio da força. São os golpes considerados clássicos na América Latina, como aqueles que derrubaram João Goulart, em 1964, no Brasil, e Salvador Allende, em 1973, no Chile.

Nos últimos meses, o petismo e os filopetistas falaram ad nauseum que o impeachment da presidente Dilma Rousseff configurava-se num golpe. Entretanto, em todo esse tempo, não se tem noticia de tanques, soldados, pessoas presas, repressão, mortos, etc., nas ruas do país. Em razão da impossibilidade de alguém ser convencido de que estivesse havendo um golpe contra Dilma, eles mudaram o enfoque. Passaram a falar que o que estava em curso era um “golpe” adaptado aos nossos tempos. E essa fala Dilma Rousseff repetiu em sua defesa no Senado, sem entretanto convencer ninguém a não ser aqueles que já estavam convencidos. Escrevi sobre isso faz alguns meses, desmascarando essa nova retórica (veja aqui “O paradigma do golpe de novo tipo”)

Por ser logicamente difícil argumentar que havia golpe de Estado num processo conduzido inteiramente dentro dos marcos constitucionais, com amplo direito de defesa, o petismo foi variando a sua retórica. Agregou-se ao golpe a noção de que havia um “atentado” à democracia. Alguns chegaram a dizer que não era Dilma que estava sendo julgada e sim a democracia. Por sua vez, representantes da intelectualidade mais nobre do país saíram-se com a fórmula de um “golpe ético”, dando signos estéticos a uma tese estapafúrdia. O jornal francês Le Monde foi mais tímido e lascou: “se não é golpe, é uma farsa”, desconhecendo o que se passa do outro lado do Atlântico, ao sul do mundo, desrespeitando as instituições representativas do Estado brasileiro, além do Poder Judiciário que dirigiu a sessão de definição do impeachment.

Seguindo tais delírios, na sessão de defesa de Dilma eis que seus apoiadores explodem em sorrisos e, por algumas horas, a “carnavalização do golpe” se instaurou. Junto com sorrisos largos, óculos escuros em pleno Senado, selfies aos montes com Chico Buarque, Lula, seguiu-se uma confraternização geral dos “golpeados”. Talvez o que petismo chama de “golpe parlamentar” seja assim mesmo, uma espécie de “golpe do bem”, que permite aos “golpeados” sorrirem e festejarem em público. Acertou na mosca o jornalista Lauro Jardim quando agregou mais um qualificativo para o nosso golpe jabuticaba: trata-se de um “golpe risonho”. Ufa, podemos enfim dormir tranquilos, o “nosso” golpe, como dizem os jovens, “é de boa”!

Ao final do julgamento, na tarde de 31 de agosto, sabendo que a derrota era certa e Dilma seria destituída, o petismo reformulou sua estratégia: dividir a votação por meio de um destaque que mantivesse os direitos políticos a Dilma Rousseff. Com isso, poderiam garantir e ampliar a única conquista que tiveram nesse processo: a “vitória da narrativa”; não há golpe, mas a narrativa e os termos dela permanecerão.

A função da narrativa agora não é mais convencer que estava ocorrendo um golpe. Agora sua função será atacar os “golpistas”. Ampliou-se assim o escopo dessa formulação política. Nesse novo cenário, a narrativa do golpe só serve para uma única coisa: estabelecer um discurso de vitimização, tão comum ao PT, para ser usado como mantra acusatório, imputando àqueles que lutaram pelo impeachment a pecha de “golpistas”. Por isso, a reiteração dessa narrativa era tão necessária.

Há que se ter clareza dessa nova situação. O PT sai desse processo fora do poder, o que não é pouco. Derrotar a falácia do golpe não se dará apenas por meio de um discurso contraposto, uma contra narrativa, mas sim pela defesa do andamento normal da política e da democracia, com as eleições que estão aí e com propostas para enfrentar a crise e fazer o país voltar a crescer, superando o legado tenebroso do lulopetismo.

Alberto Aggio é historiador, professor da Unesp e presidente da FAP


Fonte: pps.org.br


Alberto Aggio*: O pós-PT e o retorno da política

A conjuntura política do País segue normalmente seu curso, sem contramarchas, desde a admissão do processo de impeachment pelo Congresso, o afastamento de Dilma Rousseff e a assunção de Michel Temer ao comando interino do governo da República. Malgrado temores de uns e desejos de outros, não há recuo no sentido que se impôs ao processo. Apesar das críticas e das indefinições iniciais do governo interino, das ocupações de prédios públicos e das manifestações de rua, nenhum abalo expressivo foi produzido. Aguardam-se para agosto os lances finais do processo de impeachment e poucos são os que creem na volta da presidente afastada. Crescem a aprovação do governo interino e a esperança na recuperação econômica, enquanto é visível o isolamento político de Dilma e do PT.

As avaliações do cenário político feitas pelos intelectuais petistas, salvo raras exceções, reiteram ad nauseam o paradigma do “golpe de novo tipo” (Opinião, 8/6). Algumas delas, sem nenhuma razoabilidade, beiram a alucinação. A favor do novo governo também houve manifestações destoantes de impaciência, desconsiderando as condicionantes da governabilidade nesta fase de interinidade.

Mesmo premido por uma herança dramática, Temer tomou iniciativas administrativas importantes. As medidas econômicas de restrição de gastos, de difícil implementação, ainda dependem de aprovação do Congresso. Elas compõem um ajuste fiscal de perfil estrutural, necessário e realista para recolocar o País nos eixos. Dilma tem argumentado que tais medidas não foram aprovadas pelas urnas e jamais seriam caso fossem apresentadas. Trata-se de uma crítica vazia e sem sustentação, uma vez que Dilma abandonou seu discurso eleitoral para adotar um ajuste fiscal mitigado, que não se concretizou por tibieza sua e por oposição do seu próprio partido. Traindo a si mesma e ao País, Dilma cometeu um “estelionato eleitoral” que lhe custou a confiança da sociedade. Agora, o País precisa enfrentar a crise sem tergiversações.

As mudanças mais significativas verificaram-se, contudo, no âmbito político. A renúncia de Eduardo Cunha e a eleição de Rodrigo Maia para a presidência da Câmara dos Deputados são sinais de um “retorno da política” e apontam para uma valorização da representação, para a superação das crispações decorrentes da clivagem “nós versus eles” e para mais autonomia, articulação política e eficiência do Parlamento.

A renúncia de Cunha e suas derrotas subsequentes nas Comissões de Ética e de Constituição e Justiça da Câmara jogam por terra mais uma falácia petista. Afirmava-se que o afastamento de Dilma levaria a um governo Temer/Cunha e aprovar o impeachment era colocar Cunha na Presidência da República, razão por que o ex-presidente da Câmara havia posto em pauta o processo de impeachment, “vingando-se” de Dilma. Mas essa fábula se foi e Cunha, neste mesmo agosto, poderá perder o mandato de deputado.

Os primeiros lances do “retorno da política” exigiram que o PT negociasse seus votos na eleição para presidência da Câmara, mesmo com a condenação de alguns de seus intelectuais e parlamentares, evidenciando mais uma vez sua crise de orientação. O PT ainda não é capaz de admitir que sua decaída, cristalina pelo fracasso de Dilma e pela montanha de casos de corrupção, é a base da imagem negativa que o partido criou para si mesmo, uma consequência que não pode ser enfrentada com escapismos do tipo “o PT é atacado por suas virtudes, e não por seus erros”.

É uma situação dramática para um partido que, longe de ser revolucionário, promoveu um reformismo débil e instrumental com o objetivo de se perpetuar no poder. O PT fracassou porque não conseguiu combinar reformismo social e democracia política de maneira progressista, o que lhe bloqueou a possibilidade de se tornar uma esquerda simultaneamente “transformadora” e “de governo”. A consequência foi a perda da vocação majoritária e a regressão a um discurso de “resistência” a tudo: ao suposto “golpe”, ao governo Temer, ao imperialismo e ao capitalismo.

Somado ao pragmatismo de sempre, o PT vive hoje envolto pela sedução de um regresso a posições remotas da esquerda do século 20, em companhia desajeitada daqueles que creem num “movimentismo” permanente.
No mundo político fora do PT, os resultados da débâcle petista são diferenciados. Um deles foi o ressurgimento de um anticomunismo anacrônico e obtuso, idêntico ao seu objeto de rechaço. O outro foi abrir espaço para o liberalismo voltar a ocupar o centro da cena e, renovado, apostar suas fichas num programa para sair da crise e retomar o crescimento. Na bússola do liberalismo constam a contração do Estado e o estímulo à economia privada, que parecem convencer o conjunto da sociedade.

Embora divididos, os liberais passaram a ser tratados como o núcleo de articulação de uma nova proposta hegemônica. Em nossa História contemporânea, a aliança entre esquerda e liberais operou em defesa das liberdades: foi assim no Estado Novo e na luta contra o regime militar. Não há razão para que ela não seja perenizada e ganhe novos patamares, novos direitos.

Luiz Sérgio Henriques publicou neste espaço artigo sobre a crise do PT e a possibilidade de uma “outra esquerda”, democrática e reformista, fundada nos valores da Constituição de 1988 e no Estado Democrático de Direito. Certamente, ela deverá também buscar uma maneira justa e progressista de combinar reformismo social e democracia política. Assim, além de perenizar a aliança com o liberalismo em defesa das liberdades, na quadra que atravessamos será preciso avaliar os termos de uma nova concertação que possa empreender uma reforma histórica do Estado brasileiro, rompendo privilégios e corporativismos, sem eliminar sua presença reguladora, solidária e em defesa da cidadania. Seria um grande desafio e um belo destino.


*Alberto Aggio é historiador, é professor titular da Unesp

Publicado no Estadão em 31/07/2016


Alberto Aggio: Unesp, 40 anos e uns tantos sinais

Meio ano se passou e mesmo em meio à turbulência política que nos acompanha cotidianamente, dentro e fora do País, não podemos deixar de lembrar que uma de nossas mais importantes universidades, a Unesp, completa 40 anos. Não é muito tempo para que uma universidade alcance a maturidade e por ela seja reconhecida, se tivermos como parâmetro as mais importantes universidades do mundo. A Unesp é filha e protagonista de um tempo vertiginoso que tem conduzido o País pelos caminhos da modernidade, cujo saldo, apesar de problemas de toda ordem, é largamente positivo. Depois de 40 anos é justo saudar o percurso realizado por essa universidade que, ao consolidar o seu perfil multicâmpus, se tornou modelo para instituições de ensino superior que foram criadas depois dela em outros Estados.

Por suas origem e trajetória, a Unesp representa o êxito e as vicissitudes do processo de modernização do Estado de São Paulo. Hoje ela está presente em 24 cidades por meio de 29 faculdades e institutos, que abrangem todas as áreas do conhecimento e oferecem 155 cursos de graduação a cerca de 37 mil alunos, além de 146 programas de pós-graduação a outros 13.500 alunos, sendo 112 deles em nível de doutorado. Abriga em seus quadros cerca de 3.800 docentes e 6.700 servidores técnico-administrativos. Seus professores participam de centenas de pesquisas e são responsáveis por parte significativa da produção científica do País.

A Unesp guarda em si os elementos essenciais que compõem a visão que o mundo moderno reserva à universidade – essa notável sobrevivente do medievo europeu, ainda legitimada entre nós. No centro dessa visão está o entendimento de que uma universidade deve afirmar-se na justa relação entre o ideal do conhecimento e uma instituição organizada para sua produção. Essas duas dimensões muitas vezes andaram juntas na História e outras vezes se distanciaram, chegando a segunda a se sobrepor à primeira por questões religiosas, ideológicas ou por imposição de regimes autoritários.

Como ideal, a universidade nutre-se da inquietação de homens e mulheres dedicados às ciências, ao pensamento, às artes, à investigação. Mas essa instituição também é uma relação social que se funda e se reproduz tendo como base aquilo que a sociedade demanda dos que procuram saber mais, buscam conhecer melhor a realidade material e espiritual dos homens, seus desafios e limites. Ela forma profissionais que procuram responder às suas necessidades e, ao mesmo tempo, se esforçam para superar o conhecimento já produzido.

A universidade não pode viver sem uma íntima conexão com os problemas do seu tempo. Ela precisa apurar a sua percepção a respeito das demandas da sociedade, dialogar com ela, mas também refletir criticamente sobre seus impasses e descaminhos. Como instituição, deve procurar ainda estabelecer novas orientações organizacionais quando isso se impuser como uma necessidade.

Criada e consolidada a partir dessa perspectiva, a Unesp seguiu o modelo das grandes universidades públicas multifuncionais, vocacionadas para a unidade entre ensino e pesquisa. No mundo ocidental, esse tipo de universidade, nem sempre gratuita, é essencialmente mantida com recursos governamentais. Atualmente, há um reconhecimento quase generalizado de que esse modelo deve passar por reformas. A autonomia acadêmica e financeira parecem ser duas teses já assimiladas. No entanto, há questões que precisam ser enfrentadas, tais como sua expansão, os critérios de acesso, a modernização de sua gestão e, por fim, o problema do seu financiamento. No Brasil, a questão do financiamento é reconhecidamente dramática em função da gritante desigualdade social, da injustificada gratuidade para determinados segmentos sociais, além das determinações constitucionais.

Por quase um século a adoção daquele modelo possibilitou que o País produzisse um conhecimento de alta qualidade, que não pode ser negligenciado. Nas últimas décadas a universidade assumiu uma tarefa cidadã da maior relevância, tornando-se parte integrante das lutas para fazer avançar a democracia na sociedade brasileira.

Como resultado, a universidade foi gradativamente se tornando de massa, aberta cada vez mais à cidadania e preocupada com o bem comum. A essas afirmações veio a somar-se o paradigma da sociedade do conhecimento como mais uma referência importante da nossa contemporaneidade. Mas todas essas mudanças foram acompanhadas de transformações sociais marcadas por intenso processo de individuação, que acabaram produzindo uma espécie de mescla paradoxal de democratização social e de imposição do mundo dos interesses privados, sem que ainda possamos saber qual deles vai vingar ou que combinação entre eles poderá emergir no futuro. Tudo isso invadiu o espaço acadêmico, alterando a sociabilidade universitária.

Não há dúvida que a universidade brasileira e a Unesp, em particular, seguiram um curso democrático e republicano nos últimos tempos, obedecendo aos anseios da sociedade. Um processo de mão dupla que instituiu no País uma universidade ideológica e politicamente plural, aberta a vocações diferenciadas e atenta às necessidades da comunidade em que atua.

São 40 anos de uma história positivamente inconclusa e aberta. Contudo, dado o estado de ruínas que o País vivencia, os riscos de uma regressão não estão fora do radar. Corporativismos e ideologismos ancilosados e anacrônicos, que povoam o ambiente universitário, são cada vez mais ameaçadores, visíveis na Unesp e em suas coirmãs. Não é demais lembrar que, em termos éticos, racionais e profissionais, é imperioso impedir a fratura entre o ideal do conhecimento e a instituição que o alberga. Trata-se de um requisito essencial para que a universidade continue a ser produtivamente desafiada pelo seu presente. (O Estado de S. Paulo – 05/07/2016)


Alberto Aggio é historiador e professor titular da Unesp


Alberto Aggio: O paradigma do ‘golpe de novo tipo’

Em abril de 1964, após o golpe de Estado, o presidente João Goulart exilou-se no Uruguai e só retornou ao Brasil para ser enterrado, em São Borja, em 1976. Depois de sua exumação, foi sepultado, passados 37 anos, com honras de chefe de Estado. Em setembro de 1973, Salvador Allende foi retirado morto do Palacio de la Moneda, após intenso bombardeio. A circunstância dramática levou Allende ao martírio em nome da causa que defendia. Hoje ele é o único presidente do Chile a ter um memorial vizinho ao palácio presidencial, no centro de Santiago.

Era uma época de golpes de Estado na América Latina, com o seu cortejo de violência e terror. O de 1964, no Brasil, e o de 1973, no Chile, são considerados paradigmáticos. Não se resumiram numa quartelada e, mesmo diferentes entre si, solaparam a democracia então existente para, em seguida, instalarem regimes autoritários de longa duração.

O que ocorre no Brasil com o processo de afastamento ainda em curso da presidente Dilma Rousseff não encontra parâmetro comparativo nem com o que ocorreu com Goulart e menos ainda com o que se passou com Allende. Com a aprovação no Senado do procedimento constitucional de investigação e julgamento dos crimes de responsabilidade de que é acusada, a presidente foi notificada e deixou o Palácio do Planalto, com toda segurança. Ato contínuo, discursou para uma plateia de apoiadores que não foi molestada de nenhuma maneira. Depois se dirigiu ao Palácio da Alvorada, sua residência oficial, e tem garantidas suas prerrogativas de presidente da República. Tais circunstâncias, além de evidenciarem uma distância de anos-luz em relação ao destino imposto aos dois ex-presidentes mencionados, mostram que a presidente afastada continua agindo politicamente, sem constrangimentos e com muita desenvoltura.

O parâmetro comparativo entre as situações é evidente por si mesmo e contribui para que o processo de impeachment não deva ser qualificado como golpe de Estado. Os acontecimentos que marcaram o final dos governos de Goulart e Allende são tipicamente os de um golpe de Estado, enquanto os eventos a que assistimos no processo contra Dilma Rousseff nada mais são do que uma série de episódios e decisões afeitas ao funcionamento da democracia e de suas instituições, com seus ritos e seu ritmo, todos sancionados pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Nessas circunstâncias, caso se consume o impeachment de Dilma, por óbvio, não se instalará nenhum novo regime político, como ocorreu nos dois casos paradigmáticos mencionados. A democracia segue seu curso, sem ter arranhada sua legitimidade.

No entanto, a presidente afastada, o PT e seus aliados insistem em qualificar de golpe o processo político em curso, inflacionando, com essa insistência, as redes sociais e os meios de comunicação em geral. Além de contrafatual e da clara intenção vitimista, o que esses atores objetivam é a difusão de uma “nova epistemologia do golpe”, diversa dos casos paradigmáticos e de quaisquer outros.

Como hoje vivemos outro tempo histórico, diverso da guerra fria, cuja centralidade repousava na luta entre capitalismo e comunismo, e como as democracias na América Latina, mesmo com seus problemas, contam com uma história razoável de implantação, obtendo com isso uma adesão generalizada, até mesmo dos movimentos e partidos de esquerda, os apoiadores de Dilma e do PT percebem que o argumento do golpe, vocalizado nos velhos termos, não se sustenta pela simples evidência dos fatos, ou, mais precisamente, pela ausência destes.

Isolado e fragilizado, o petismo manteve o discurso do golpe, mas buscou encontrar uma justificativa teórica plausível para sustentá-lo, visando a dar a ele um caráter próprio ao novo tempo, próprio às democracias. De acordo com o petismo, posto em andamento, esse golpe “fere a democracia”, mas não a elimina. Segundo essa nova teorização, as condições jurídico-políticas das democracias hoje existentes permitiriam que as classes dominantes, apoiadas na mídia monopolista e nas classes médias reacionárias, urdissem um golpe de Estado não mais com tanques e soldados, mas por meio de ações comunicacionais, jurídicas e parlamentares. Todos esses elementos fariam parte de um mesmo dispositivo: um “golpe de novo tipo”.

Assim, de acordo com essa teorização, não estaríamos diante de um golpe violento, de tipo convencional, e tampouco de um “golpe parlamentar”. O “golpe de novo tipo” tem seu fundamento num raciocínio de natureza sofística que parte do pressuposto de que nenhuma Constituição possui mecanismos de autodefesa contra quem a use contra ela mesma. Ora, a supremacia formal que tem a Constituição além de suas cláusulas pétreas compõe sua autodefesa, juntamente com o papel ativo dos cidadãos, e não de uma normativa específica. O pressuposto não tem base jurídica, mas é extremamente perigoso para o ordenamento democrático.

O PT, na sua avaliação de conjuntura, após o afastamento de Dilma, lamentou não ter seguido o caminho venezuelano, que impôs desde o início uma Constituição com os devidos “mecanismos de defesa”, o que tem permitido ao atual presidente, Nicolás Maduro, se manter no poder e bloquear qualquer saída para a dramática crise que vive nosso vizinho. O PT lamentou ter confiado na ordem democrática fundada na Carta de 1988, uma Constituição “indefesa” que permitiu que o partido fosse “golpeado” por aqueles que levaram o impeachment em frente.

A tese do “golpe de novo tipo” visa a advertir a esquerda de que, mesmo aderindo à democracia, não estará imune ao golpe, uma vez que a democracia não tem condições de se proteger dos “golpistas”. A tese é reiterativa e deriva dos pergaminhos que ditam que o objetivo da esquerda é instalar um regime (também) de “novo tipo”, que dê cabo da democracia vigente. Mas deste, como nos recordamos, os presságios sempre foram assustadores.


Alberto Aggio é historiador e professor titular da Unesp

Fonte: Estadão


Alberto Aggio: As falácias vão ficando pelo caminho

Mesmo antes de ser aprovada a admissibilidade do processo de impedimento da presidente Dilma Rousseff na Câmara dos Deputados, o caudal de argumentos contra o impeachment, na imprensa e na opinião pública, adensou-se de maneira impressionante, ganhando parâmetros discursivos que ultrapassavam a fábula do golpe, ainda que este tenha permanecido como o eixo principal da retórica esgrimida pelo petismo para obter apoio, dentro e fora do País, a uma presidente sub judice.

No mais paradoxal de todos os argumentos, afirmava-se que uma possível vitória do impeachment não mudaria em nada a situação do País; não aplacaria a crise econômica e não possibilitaria a retomada do crescimento; não se conseguiria sustar a crise social que bate às portas dos lares brasileiros e, portanto, o desemprego seguiria crescendo.

E que o impeachment tampouco daria fim à corrupção, muito ao contrário: a presença do presidente da Câmara na condução do processo era o sinal de que um futuro governo Michel Temer exterminaria por completo as operações da Lava Jato. O curioso é que, ao se negar qualquer positividade ao impeachment, também se espera tudo dele. No fundo, retoricamente, cobra-se o restabelecimento in acto de um País novamente republicano, próspero e democrático. É um argumento de pés de barro. Como se sabe que, do ponto de vista do realismo político, se trata de uma expectativa inalcançável, pelo menos na dimensão imediata, denota-se que o impeachment, mesmo sendo bem-sucedido, apenas causaria aos brasileiros uma “frustração coletiva”, já que não solucionaria as profundas crises que assolam o Brasil.

Essa narrativa está centrada na interpretação de que o País entrou num beco sem saída, mas governo Dilma Rousseff estaria eximido de qualquer responsabilidade, tendo sido a oposição a causadora de toda a crise. Supostamente, a crise política teria sido iniciada no pedido de recontagem de votos e, em seguida, na cândida ideia de que a oposição não deu trégua à presidente reeleita, apostando no caos e prejudicando a Nação, especialmente os mais pobres. Esse argumento, por demais conhecido, oculta o fato de que o PT nunca admitiu sofrer oposição, mas especializou- se em fazê-la de forma contundente, já que se julga o único portador de uma política social digna do nome, o que é flagrantemente contestado por qualquer pesquisa séria a respeito da realidade nacional recente, desde a redemocratização.

Quando a admissibilidade do impeachment foi aprovada na Câmara, a falácia do golpe ganhou a companhia de discursos laterais: a vitória da “vingança” de um político corrupto, em referência ao deputado Eduardo Cunha, presidente daquela Casa, e a imposição à Nação de uma “eleição indireta” para presidente, representado no embate Dilma versus Temer. Essas avaliações falaciosas se combinaram com ameaças de violência e a busca de “alternativas” políticas à débâcle do governo petista. O ponto nevrálgico dessas alternativas emergiu na proposta, primeiro, de “eleições gerais” e, depois, de “novas eleições” para presidente, expressa na consigna “nem Dilma, nem Temer”.

Duas alternativas inviáveis do ponto de vista constitucional, sem levar em conta a oposição que teriam nas duas Casas do Congresso e, ao que parece, entre as lideranças das bases sociais do PT. Vê-se claramente que não se trata mais de defender o governo Dilma. O que sustenta a inflação de falácias do petismo é a perspectiva de garantir algum futuro ao PT como ator político, levando a conjuntura a um grau extremo de polarização por meio de discursos que afrontam as instituições de representação da cidadania e visam à radicalização das ruas. Derrotado, o PT passou a adotar todo e qualquer casuísmo a fim de evitar que o impeachment devolva normalidade ao País e credibilidade ao novo governo.

Daí as artimanhas, as ameaças e, por fim, a negativa de um processo de transição administrativa, sonegando informações aos futuros governantes. O PT tanto falou em golpe que agora pretende aplicá-lo, com requintes de vingança, em relação ao futuro governo. Já se tornou exaustivo explicar que o processo de impeachment está plenamente justificado em termos legais e que sua legitimidade é indiscutível. Dilma violou a Lei de Responsabilidade Fiscal por meio de mecanismos fraudulentos para esconder, no período eleitoral e depois dele, que não tinha sustentação financeira para manter a economia em bom curso e evitar a crise. Uma política econômica desastrosa se somou a níveis de corrupção jamais vistos, jogando o Brasil numa crise inaudita e de grande profundidade.

Dilma é, portanto, o nome do “retrocesso” que o País está vivendo, em termos econômicos, políticos e até mesmo de convivência democrática. Assim como não há espaço vazio em política, também não há a possibilidade de deixarmos de atribuir a responsabilidade por todo este estado de coisas. Os verdadeiros culpados são mais do que evidentes. Um novo governo pós-impeachment, legítimo em termos constitucionais e necessariamente de transição até 2018, terá como missão primeira tentar paralisar o desastre e de nenhuma forma poderá ser inculpado pela situação do País.

As encruzilhadas da História brasileira invariavelmente encontraram soluções sustentadas pela “via autoritária”. Pode ser que esta seja a primeira vez que estejamos enfrentando um impasse condicionado e determinado pela democracia, que já é, entre nós, uma experiência concreta em termos constitucionais e institucionais, embora nos falte um lastro maior de cultura política democrática.

A insistência na falácia do golpe, com o seu vitimismo, sua artificialidade e suas ameaças, atua no sentido de enfraquecer e virtualmente bloquear a democracia. Desmistificar as falácias do petismo e superar a “herança maldita” do governo Dilma assumem hoje o mesmo significado. (O Estado de S. Paulo – 07/05/2016)


ALBERTO AGGIO É HISTORIADOR, É PROFESSOR TITULAR DA UNESP


Alberto Aggio participa de Seminário da UGT em homenagem ao dia do trabalho

A UGT iniciou nesta segunda, dia 25/04, um Seminário em homenagem ao 1º de Maio, dia do trabalho e dos trabalhadores. A proposta da Central é ter sempre esse dia um momento de reflexão a respeito da situação de vida dos trabalhadores. O Seminário iniciou-se com uma mesa redonda sobre a "Crise econômica e política do Brasil e o cenário internacional". Alberto Aggio participou dessa mesa como um especialista na história política latino-americana, dando sua contribuição às reflexões que propõe a UGT para esse momento.


Alberto Aggio: Impeachment e governo de transição

Argumenta-se que uma possível vitória do impeachment não mudaria em nada a situação do país. Que não aplacaria a crise econômica, que não retomaria o crescimento. Que não sustaria a crise social que bate às portas dos lares brasileiros, que não bloquearia o desemprego. Que tampouco não colocaria fim à corrupção. No entanto, espera-se tudo do impeachment e dele cobra-se tudo no sentido de restabelecer um país novamente republicano e verdadeiramente democrático.

Tudo se passa como se o movimento do impeachment apresentasse uma narrativa unívoca e tivesse controle integral de sua dinâmica. Pensa-se o movimento e o processo politico-parlamentar do impeachment como uma espécie de revolução ou de contrarrevolução previamente programada e dirigida. Nesta lógica, seu sentido é visto de maneira abstrata e ideológica e o seu resultado é previamente tomado como “frustração coletiva” já que, dizem, não soluciona as profundas crises que assolam o país.

Nessa crítica manca, o movimento do impeachment não se conecta com os impactos crescentes das operações da Lava Jato no conjunto da sociedade, que alimentam e adensam os protestos nas ruas e praças do país. Não se considera também as fortes suspeitas a respeito dos vícios introduzidos pelo PT nas últimas eleições presidenciais, que podem levar à conclusão de que as eleições para presidente enfim não foram limpas. Todas as investigações até agora se encaminham para isso.

O mais grave (e até mesmo incrível) é que, de alguma maneira, quer se eximir o governo Dilma de toda e qualquer responsabilidade. Nessa narrativa, o tema do impeachment tem sua origem no pedido de recontagem de votos pela oposição, fato normal em disputas acirradas como foi a última campanha presidencial. Segue-se com a cândida ideia de que a oposição deveria dar uma trégua à presidente reeleita, algo sem o menor sentido nos quadros de um regime democrático e de cidadania ativa, ocultando o entendimento de que o PT não deveria sofrer oposição já que, supostamente, seria o único portador de uma política social digna do nome, o que flagrantemente é contestado pela realidade recente do país, desde a redemocratização.

O fato é que o governo Dilma jogou o país numa crise inaudita e de grande profundidade. Violou a Constituição por meio de mecanismos fraudulentos para esconder, no período eleitoral e depois dele, que não tinha sustentação financeira para realizar suas promessas eleitorais. Nestas circunstâncias, propôs um ajuste fiscal que nunca conseguiu cumprir, mergulhando o país na crise.

Em termos estritamente legais, o impeachment está justificado. Sabemos porém que mesmo que ele seja aprovado, a crise irá persistir e talvez ainda se agrave. E se isso de fato ocorrer, não se poderá atribuir tal resultado ao impedimento da presidente. Os verdadeiros culpados são mais do que evidentes. Se reina hoje uma grande desorientação em alguns setores a respeito das alternativas que se apresentam, a questão não se circunscreve ao mecanismo do impeachment e às suas consequências imediatas, determinadas constitucionalmente. A assunção do vice-presidente ao cargo de presidente da República é legítima, estando este sujeito aos mesmos mecanismos constitucionais.

O vice-presidente e os membros do Congresso Nacional configuram representações legítimas derivadas da soberania popular. Não fosse em outros momentos, há que se enfatizar que a Constituição é o nosso guia maior nessa hora. Se o impeachment passar, primeiro na Câmara, enquanto admissibilidade, e, depois no Senado, como julgamento em última instância, é a um governo legítimo de transição que caberá enfrentar os desafios colocados ao país pelo descalabro que tem sido o governo Dilma. (O Estado de S. Paulo – 13/04/2016)


Fonte: pps.org.br


Conferência Nacional sobre as cidades - Vitória / ES 2016

Alberto Aggio - Abertura da Conferência Nacional sobre as cidades


Alberto Aggio - Presidente FAP


Alberto Aggio: Cicatrizes ou feridas?

Em meio a uma conjuntura turbulenta, a presidente Dilma Rousseff, em entrevista à imprensa estrangeira, referiu-se à possível aprovação do impeachment como um fato que deixaria “cicatrizes profundas na história política do País”. A afirmação é plena de significados. Em vez de se manter na narrativa do golpe como núcleo do seu discurso, sem se reportar ao que pudesse vir depois, Dilma avançou. Pela primeira vez especulou a respeito do day after. Mencionou “cicatrizes”, mas não “feridas”.

A fala da presidente é, portanto, lacunar. Antes das supostas “cicatrizes profundas”, pós-impeachment, melhor seria identificar a situação brasileira como um corpo marcado por “feridas profundas”. E, ao que tudo indica, não se vai sair dessa situação sem levar essas marcas por um bom tempo. Há fortes suspeitas a respeito da sua origem, sabendo-se que elas não resultam de fabulações acerca de supostos golpes.

Essas feridas começaram a ser abertas na campanha eleitoral de 2014, que garantiu o segundo mandato a Dilma. A violência discursiva contra seus adversários não encontra paralelo na história política do País. Além dessa chaga ainda aberta, entramos no segundo mandato num quadro de crise fiscal, com sérios desdobramentos. Um ajuste a meias, não assumido integralmente pelo governo e com oposição do PT, impediu que prosperasse qualquer mudança real. E pior: aprofundou a crise. A economia foi para a UTI, com sangramento crônico. À recessão seguiu-se a depressão, com suas consequências nefastas: fechamento de plantas industriais (mais de 4 mil em 2015 só no Estado de São Paulo), desemprego, inflação, queda da renda e do consumo, o retorno da desigualdade e a extensão da crise fiscal a Estados e municípios, que hoje, em alguns casos, não têm mais condições de pagar sequer os salários de seus funcionários, iniciando demissões em áreas como saúde e educação.

Por fim, desnecessário dizer que o governo Dilma Rousseff pouca coisa fez para sustar a destruição anteriormente promovida na Petrobrás, que só no ano passado totalizou um prejuízo monstro de perto de R$ 35 bilhões.

As chagas promovidas pelo governo Dilma no corpo da Nação não são, portanto, de pouca monta. E vale insistir: não são resultado de crise internacional e tampouco das operações da Lava Jato. Os sinais do desastre são impactantes e extensivos a diversos segmentos da população, mas há uma “cegueira ideológica” que vaga e insiste em insolitamente vocalizar a sua “leitura”.

As ruas rugem, o Brasil sangra e alguns intelectuais parecem ter perdido o senso de orientação. Com raríssimas exceções, a intelligentsia parece esvair-se. O que vivenciamos hoje é um cenário de horrores no qual alguns intelectuais, com ares filosofais, se regozijam a fazer bravatas ao estilo lulista. Por empreguismo ou opção ideológica, com o petismo no poder foi-se criando uma área cinzenta de incomunicabilidade entre os intelectuais, especialmente nas universidades públicas.

No campo da discussão política, intelectuais públicos, petistas ou filopetistas, derivaram assustadoramente para uma espécie de simbiose de vitimismo mesclado a uma retórica escatológica ao procurarem embasar o “discurso único” da fabulação golpista. O vitimismo vem sendo empregado pelo petismo como uma estratégia discursiva há algum tempo, sempre e quando sente a ameaça, real ou não, de ser empurrado para uma situação de flagrante minoria, como é o caso agora, quando cerca de 4 milhões de pessoas foram às ruas gritar “fora PT”. Ele tenta impedir a exposição dessa realidade.

Surpreendentemente, contudo, o vitimismo transformou-se em critério metodológico para se pensar a história recente do País. Segundo essa fabulação, o suposto “cerco golpista” a Dilma seria equivalente, ou pior, ao de 1964 e logo em seguida ao impeachment viria uma ditadura sans phrase. Nessas falas se assevera que um impeachment realizado pelo atual Congresso instauraria a ilegitimidade e o País entraria numa espiral de violência ou mesmo na guerra civil. Aqui o vitimismo, além de desqualificar a soberania do voto popular, carrega no discurso do medo, combinando-o com uma retórica de matriz escatológica: “Depois de nós, o dilúvio”, sem remissão. Seria o “nós contra eles” em situação apocalíptica.

Como se não bastasse 1964, lança-se mão, por um espelho retorcido, de uma comparação com o golpe de 1973 no Chile. Aqui a comparação entre Dilma e Salvador Allende é caricata e não fazer jus ao líder chileno. Allende é hoje resgatado exatamente por seu perfil mais republicano do que propriamente socialista. Quanto a Dilma, não cabem comentários em nenhum dos termos. Além disso, aquele era um tempo de revolução e, especialmente, de guevarismo; hoje, os “intelectuais revolucionários” são uma fraude grotesca e a juventude à “coração valente”, uma imagem simplesmente anacrônica. Ambos se imolaram pela revolução nas décadas de 1960 e 1970. Quando, na década de 1980, os Engenheiros do Hawaii cantaram “a juventude é uma banda numa propaganda de refrigerantes”, a transformação estava selada. A juventude não teve dúvida em dar apoio ao “Lula lá”, mas hoje não suporta mais ver o seu país sangrar dia após dia.

Mas, como muitas vezes se disse em relação ao Brasil, eppur si muove. O movimento de saída do PMDB da base do governo Dilma, empurrado pelas ruas, alterou o eixo da conjuntura, abrindo a possibilidade de recomposição do centro político, uma vez que a era petista se encarregou de esgarçá-lo.

A recomposição do centro não é garantia do nascimento de uma nova política, mas ele não poderá reproduzir os termos pelos quais o lulopetismo levou o País à beira do colapso. Igualmente, a esquerda precisará recompor-se, afastando as visões anacrônicas que ainda habitam seu coração e deformam sua mente. Com sorte, as feridas expostas terão alguma chance de ser cicatrizadas.

*HISTORIADOR, É PROFESSOR TITULAR DA UNESP

Fonte: Estadão


Alberto Aggio: Sob o espectro da crise institucional

Lula sempre foi um admirável construtor de frases. Uma delas, que vem sendo relembrada nos últimos dias, proferida em 1988, é a que afirma que “pobre quando rouba, vai para a cadeia, rico quando rouba, vira ministro”. A frase é relembrada para indicar que se antes Lula queria dizer que ele se identificava com o ‘pobre’, hoje, ao contrário, a sua identificação só poderia ser com o ‘rico’ que, para fugir da Justiça, seria alçado à condição de ministro do governo Dilma. Hoje, portanto, o conteúdo da frase vai além das intenções originais de seu formulador.

A justiça não deve e não pode funcionar como Lula profetizava e nem como o seu inverso. O Brasil mudou: ‘rico’, em certos casos, sofre ações de investigação, julgamento e condenação, em outros, não viram ministros, como estamos vendo acontecer. O juiz Sérgio Moro e os jovens promotores da Lava Jato se especializaram no combate ao ‘crime de colarinho branco’ e têm atuado inteiramente dentro da legalidade, cumprindo sua função com rigor e transparência.

Nos últimos dias, especialmente depois da ‘condução coercitiva’ de Lula para dar depoimento e todos os acontecimentos que se sucederam, as decisões da Lava Jato têm sido duramente questionadas por apoiadores do governo. As críticas falam de ‘golpe’ ou da implantação de um ‘Estado de exceção ou policial’. Ora, se estamos num suposto ‘Estado policial’, como dizem alguns petistas ou filopetistas, a extensão e a agudeza das determinações da Lava Jato atingiriam uma feição inconstitucional que deveria ser reprovada sumariamente pelo STF, mas isso até o momento não ocorre. Isso é fato.

Entretanto, claro está que desde que o lulopetismo assumiu o poder, a sociedade brasileira está submetida a governos do crime. Desde 2005, com ‘mensalão’, e depois ‘petrolão’, se impôs ao País uma sucessão de governantes que hoje são alvo de operações policiais. Não há, quanto a isso, polêmica alguma, em função de tudo o que a PF e o MPF têm revelado. Esta única certeza motivou, no domingo, dia 13 de março, a presença de mais de 4 milhões de pessoas nas ruas de todo o País.

Frente às maiores manifestações da história do Brasil, o governo Dilma deu como resposta a intensificação da defesa do ex-presidente Lula, nomeando-o ministro da República. As manifestações de protesto, inclusive nas ruas, foram imediatas. Tal ato desnudou a intenção do governo em proteger Lula da Lava Jato. Isso foi entendido como um escárnio, tanto mais porque as gravações das conversas entre Dilma e Lula, Lula e Jacques Wagner apontavam claramente para a tentativa de ‘fraude processual’.

O ataque ao Estado Democrático de Direito era visível, com ameaças à Justiça. Estava claro que a República estava nas mãos de criminosos ameaçadores. As gravações jogaram Dilma para dentro da crise que, a partir de agora, pode ser enquadrada em crime de obstrução da Justiça. A nomeação de Lula como ministro foi a gota d’água que instalou um verdadeiro turbilhão na conjuntura política do País.

A questão não é apenas a tática de chicana jurídica adotada pelo governo Dilma. O problema maior advém do fato de que Lula, desde o início, politizou sua inserção na grei de investigados na Lava Jato, promovendo um quadro propício à contestação à Justiça e inclinado à convulsão social. A crise econômica, política e ética vivenciada pelo governo Dilma estaria sendo deslocada e o centro da conjuntura passaria a ser o problema judicial vivenciado por Lula. Duas coisas distintas estão sendo erroneamente identificadas, introduzindo um desequilíbrio que pode ser catastrófico, abrindo espaço para uma crise institucional. Com a ‘posse’ de Lula no Ministério, o poder Executivo passou a estar inteiramente condicionado pelo poder Judiciário. Abre-se uma guerra de liminares, contra e a favor da nomeação de Lula como ministro, o que certamente irá complicar mais ainda as ações governamentais. Do outro lado da Praça dos Três Poderes, a Câmara dos Deputados aprovou a comissão que examinará o pedido de impeachment da presidente da República. Em meio a tudo isso, o povo desceu à rua e dá demonstração de que de lá não pensa em sair.

Não haverá golpe, porque não se cogita lançar mão dele. Mas o espectro da crise institucional nos envolve perigosamente. Estamos entrando num cenário extraordinário que demandará pessoas extraordinárias. A notícia ruim é que, há tempos, sentimos falta delas. (O Estado de S. Paulo – 18/03/2016)

Alberto Aggio é historiador e professor titular da Unesp de Franca


Alberto Aggio: Outra vez, as ruas

Estamos na vigília de mais uma manifestação de protesto, convocada nacionalmente. Um fato que se tornou comum nos últimos anos. Ainda se mantêm vivas na memória as de 2013 e de 2015.

Registre-se, de saída, que elas não foram idênticas em seus propósitos, personagens ou resultados, mas guardam muitas relações entre si e nos deixaram várias lições. Foram manifestações multitudinárias que ganharam ruas e praças, das metrópoles às pequenas cidades. Mobilizadas pelas redes sociais, seus convocadores não vieram das representações tradicionais da sociedade. Derivavam de movimentos e grupos sociais diferenciados que buscavam uma pauta comum, ainda hoje irrealizada em inúmeras de suas demandas. Olhar esses dois momentos sem a adoção de uma contraposição abstrata entre eles pode ajudar-nos a compreender o que está programado para os próximos dias.

Em junho de 2013, as manifestações agitaram especialmente as metrópoles. No Rio de Janeiro foram mais de 1 milhão de pessoas. Caracterizaram-se como “jornadas de protesto” convocadas quase que diariamente. Demonstraram intensidade notável, porém duraram pouco: depois de dois meses esmoreceram. Elas apresentaram um aspecto antagonista e de confronto com os poderes instituídos. Algumas manifestações foram reprimidas pela PM e depois, aos poucos, a tática black bloc, com sua violência costumeira, se impôs, resultando em desmobilização. Embora tenham conquistado vitórias parciais, o fato mais importante foi o de terem dado vazão a um descontentamento latente. Seu impacto, contudo, foi tão forte que alterou o andamento normal do mundo político, embora não tenham produzido uma pauta clara que pudesse ser negociada politicamente. Feriram de maneira contundente o poder central, impondo uma queda temporária na popularidade da presidente Dilma Rousseff. Mesmo com toda a sua vitalidade, o movimento não conseguiu tornar-se um fator de poder com capacidade de pôr a legitimidade do governo em xeque.

As jornadas de junho de 2013 foram difusas, plurais e republicanas na defesa da ética na política. Seu maior legado foi o de explicitar uma demanda pela qualidade de vida das pessoas, identificada com a melhoria dos serviços públicos voltados para mobilidade urbana, saúde, educação, saneamento básico, etc., ou seja, um conjunto de problemas que apontavam claramente os déficits sociais dos governos petistas. Visto de outro ângulo, 2013 nos deu também um retrato da sociedade brasileira até então pouco considerado. Em plena rua, o que se viu foram pessoas expondo seus ardentes desejos libertários e igualitários, às vezes com humor e irreverência; 2013 propôs uma nova maneira de se manifestar, agrupar e dar sentido ao pertencimento das pessoas, mesmo que isso fosse efêmero.

Não havia uma palavra de ordem obrigatória a cada passeata, que variara de lugar para lugar, e mesmo no interior de uma manifestação, que podia começar e se dividir em duas ou mais torrentes de pessoas. As jornadas de 2013 podem ser inscritas no que G. Lipovetsky chama de hipermodernidade, um terreno no qual flui uma cultura desconfiada do político que faz dos direitos humanos o “fundamento último e universal da vida em sociedade”, reconhecendo o indivíduo como “um referencial absoluto, última bússola moral, jurídica e política” de um tempo em que os atores sociais não se veem mais representados nas “antigas formas de inclusão coletiva”.

Em 2015 as manifestações viveram um ciclo mais curto, ainda que tenham sido mais massivas. Em 15 de março, a Avenida Paulista concentrou mais de 1 milhão de pessoas. Eventos similares ocorreram em outras capitais e cidades médias, atingindo a marca de aproximadamente 2 milhões de pessoas. Cerca de um mês depois, o movimento se expandiu por mais de 400 cidades médias e pequenas ao longo do País. Os resultados eleitorais de 2014, que deram a Dilma Rousseff um segundo mandato, bem como suas primeiras medidas, entendidas pelo conjunto da população como um “estelionato eleitoral”, atuaram como catalisadores das manifestações.

Neste novo cenário, as manifestações passaram a ser abertamente antigovernamentais e de oposição ao governo federal, expressando descontentamento e muita hostilidade imagética e verbal contra a presidente reeleita e seu partido, o PT. Além do protagonismo das redes sociais e da vazão de diversas subjetividades, em 2015 aquele aspecto difuso das jornadas de 2013 seria superado por um objetivo mais definido, sintetizado na consigna “Fora Dilma, Fora PT”.

Agregando inúmeras insatisfações e demandas que brotaram em 2013, mas assumindo um estilo de protesto distinto, o que se viu em 2015 foi a emergência de um movimento legítimo de oposição ao governo federal que, embora não inteiramente consensual entre suas lideranças, abraçou a bandeira do impeachment da presidente como sua causa central.

Agora, juntamente com tudo isso, o impeachment volta à rua, bloqueado que está no Congresso, em meio à barafunda das reviravoltas impostas pelos presidentes da Câmara e do Senado, ambos implicados em denúncias de corrupção que assolam o governo que as ruas querem substituir democrática e constitucionalmente.

Em 2013 e 2015 as ruas movimentaram o País e o mundo político teve de acordar da letargia. O que comprova mais uma vez as palavras do velho Ulysses Guimarães, que vaticinava: “A única coisa que mete medo em político é o povo na rua!”.

O “otimismo da vontade” indica que sobram razões para ir à rua, especialmente quando se trata de superar um governo que tem sua legitimidade manchada pela corrupção e se mostra incapaz de reaver sua credibilidade para enfrentar a crise. O “pessimismo da inteligência” nos alerta que o País precisa se reorganizar e buscar reformas que tornem o Estado mais republicano, aberto à participação e mais eficiente.

*ALBERTO AGGIO É HISTORIADOR E PROFESSOR TITULAR DA UNESP

Fonte: opiniao.estadao.com.br


Cálculo, dissimulação e marketing

Dilma Rousseff sempre advertiu que aqueles que apostassem na ruptura entre ela e Lula perderiam em quaisquer circunstâncias. E assim tem sido desde que Lula a convidou para ser candidata à Presidência da República. Nas campanhas eleitorais, sempre figurou como a mulher que Lula havia escolhido para governar o País pela primeira vez. Uma mulher de capacidades notáveis e de história heroica. Desde que assumiu o poder, não foram poucas as vezes em que Dilma recorreu ao ex-presidente para ouvir seus conselhos, ainda que não os aceitasse de todo. Há aí uma relação entre criador e criatura até agora inabalável.

Lula sempre teve em Dilma Rousseff uma 'persona' tão distinta a ele que poderia cumprir com rigorosidade o papel que ele havia projetado: eleger-se como se Lula fora; e mais: não alçar voo próprio pelas limitações que ele conhecia, além de garantir uma situação favorável para quando ele desejasse retornar ao centro da vida política, reelegendo-se presidente da República.

Entre os dois sempre houve um jogo intencional que mesclou cálculo político, dissimulação e marketing. Precisariam sempre se manter e se refazer, movimentar-se no cenário e, por fim, vender-se como um mesmo produto.

Em relação ao PT, Dilma Rousseff sempre foi menos enfática, mais protocolar e, por fim, mais distante. Nunca se considerou devedora do partido. Dilma efetivamente não é e nunca foi uma liderança partidária, orgânica ao PT ou ao PDT, seu partido de filiação anterior. Suas origens, marcadas pelo voluntarismo da luta armada deixou marcas, não apenas de conduta mas de concepção política.

Mas o tempo não passou em vão. As bombas-relógio do segundo mandato de Lula começaram a explodir ao final do primeiro governo de Dilma. O horizonte já evidenciava a tempestade, e depois das manifestações multitudinárias de 2013 o cenário se mostraria sempre mais difícil. Desde a nova posse em 2015 a situação só se agravou: crise econômica, Lava Jato e outras operações contra a corrupção, atingindo diretamente o PT e seus aliados, e a perda de credibilidade entre agentes políticos e opinião pública acabaram por gerar uma situação de gravidade inaudita para os planos futuros de Lula.

Em meio a essa turbulência, os sinais de crítica sempre tiveram um vetor: de Lula para Dilma, e não o inverso. Ainda que de maneira errática, sempre que pode, Lula procura manifestar, embora de forma leve, sua contrariedade em relação às políticas de ajuste. O mesmo ele sempre fez em relação a alguns dos colaboradores de Dilma. Registre-se que Lula sempre procurou salvaguardar-se em relação aos indicados para compor o governo Dilma, procurando se resguardar de resultados não previstos.

Dilma não tem alternativa senão tentar debelar ou 'cozinhar' a crise. Sabe que não tem mais como construir uma grande obra de governo. Não teria com quem negociar e não teria apoio nem mesmo do PT, quanto mais da oposição.

Não tem liderança nem credibilidade para se afastar de Lula e do PT visando tomar as medidas necessárias para enfrentar a crise. E está convencida de que o programa do PT (que retoma o governo Lula) é irrealizável, tanto mais nas atuais circunstâncias. O PT e Lula têm mais área de manobra discursiva para realizar uma crítica a Dilma, sem romper com ela e nem com o governo.

Nessa zona cinzenta, o PT e Lula querem se revitalizar e sabem que não será com os possíveis êxitos do governo Dilma. Eles não virão: nem com o programa de ajuste e menos ainda se ela adotar o retorno à 'nova matriz econômica'”.

Cálculo, dissimulação e marketing são os ingredientes que compõem um quadro de desespero, ilusão e autoengano nas relações entre Dilma, Lula e PT.

Alberto Aggio,

historiador e professor titular da Unesp em Franca

Publicado no Estadão em 29/02/2016 - http://politica.estadao.com.br/discute/ao-se-afastar-de-lula-e-pt-dilma-ganha-ou-perde,266