Ainda estou aqui

Análise | Globo de Ouro, ainda estamos aqui

Lilia Lustosa*

Estamos anestesiados. Paralisados de tanto orgulho. Chocados pela justiça tão rara na indústria hollywoodiana. Extasiados por aqueles poucos segundos que vão deixar uma marca profunda na história do nosso cinema. Embriagados pela vitória de Fernanda Torres no Globo de Ouro, prêmio concedido pela Associação da Imprensa Estrangeira de Hollywood. Reflexo imediato de um eterno complexo de vira-lata? Costume de colonizados? Ou simplesmente hábito de sermos constantemente inviabilizados, fora e dentro de nosso próprio país?

A atriz brasileira chegou mesmo a confessar que estava feliz pelo simples fato de estar ali entre as indicadas. Uma fala bastante comum entre os artistas brasileiros… infelizmente. É chegada a hora de mudar esse discurso!

Ainda Estou Aqui, de Walter Salles, de fato não repetiu a dose de 1999, ao levar o Globo de Ouro de Melhor Filme Internacional, como aconteceu com seu belíssimo Central do Brasil, de 1986. Mas Fernanda Torres, neste 2025, redimiu sua mãe, que naquele ano deixou escapar o que seria nossa primeira estatueta dourada de Hollywood, prêmio este que foi parar injustamente nas mãos da sem-graça Gwyneth Paltrow. Fala sério!

Fernanda Montenegro - nossa diva maior do teatro, cinema e tv - não levou o prêmio naquele ano, nem teve nunca seu talento reconhecido oficialmente na terra do Tio Sam. Pura ignorância daquela indústria! Fernandinha, por sua vez, que já havia sido reconhecida em Cannes por sua atuação em Eu Sei Que Vou Te Amar (1986), de Arnaldo Jabor, leva agora o prêmio americano, deixando para trás atrizes do peso de Kate Winslet e Tilda Swinton, tornando-se a primeira brasileira a lograr este feito. Vitória para o Brasil. Vitória para a língua portuguesa, última flor do Lácio, língua de Camões, de Eça de Queiroz, de Machado de Assis, de Clarice Lispector e de tantos outros grandes artistas muitas vezes ignorados por aqueles que não dominam nosso idioma.

Em Ainda Estou Aqui, Fernanda Torres interpreta Eunice Paiva, esposa do ex- deputado federal Rubens Paiva, assassinado pela ditadura militar. Baseado na autobiografia homônima escrita pelo filho Marcelo, o filme conta a história dessa mulher que, de um dia para o outro, vê sua vida revirada, tendo que se reinventar para conduzir sozinha a família de cinco filhos, sem seu companheiro de vida, sem renda, enfrentando diariamente o medo e a incerteza de encontrá-lo vivo ou morto. Uma atuação contida, equilibrada e justa, talhada na medida exata para retratar uma mulher de coragem e fibra que, sem fazer escândalo, nunca se calou e nunca aceitou o desaparecimento do marido.

Eunice não apenas sobreviveu à prisão e às consequências da ditadura, como usou-as como força motriz para encontrar um novo caminho. Formou-se em direito, tornou-se uma ativista das causas indígenas e dos direitos humanos dos desaparecidos durante a ditadura civil e militar, tendo sido uma das principais vozes para a promulgação da Lei 9.140/95, que reconhece como mortas as pessoas desaparecidas em razão de participação em atividades políticas durante esse período.

Que este prêmio para Fernanda Torres e o sucesso de Ainda Estou Aqui sejam um incentivo para que o Estado brasileiro siga o caminho da reparação história dos desaparecidos nos anos de chumbo da ditadura militar. E que a bilheteria gerada até agora (mais de 3 milhões de espectadores) seja o impulso que falta para que nossa indústria cinematográfica passe a receber mais e mais investimentos para a produção e a distribuição de filmes de qualidade e que, assim, possa ganhar de vez a confiança dos públicos brasileiro e internacional.

Chega de nos contentarmos em estar na lista de candidatos. Somos bem mais que isso! Temos atores, diretores, roteiristas, produtores e músicos que merecem estar lado a lado com os maiores do mundo. Que o complexo de vira-lata tão bem detectado por Nelson Rodrigues naqueles já distantes anos 50 fique impresso apenas nos jornais e nos livros de história.

*Lilia Lustosa é integrante do Conselho Consultivo da Fundação Astrojildo Pereira (FAP), vinculada ao Cidadania 23, crítica de cinema, formada em Publicidade, especialista em marketing, mestre e doutora em História e Estética do Cinema pela Universidade de Lausanne, na França.