Aggio
Alberto Aggio: Gambiarra no centro do mundo
Os Jogos Olímpicos realizados no Rio de Janeiro, ao contrário de alguns prognósticos, não arrastaram para nossas terras o flagelo do terrorismo. Talvez seja a confirmação da suposição de que o Brasil está mesmo fora da tenebrosa rota que o terrorismo vem traçando em várias partes do mundo ou que as medidas tomadas no plano da segurança, antes e durante a realização dos Jogos, revelaram-se eficazes. Ao que parece, nesse quesito fomos tão vitoriosos quanto os melhores atletas que por aqui desfilaram, e, ao final, respiramos aliviados. O fato é que as Olimpíadas nos colocaram no centro do mundo e, nessa posição, integrados a sistemas de segurança globalizados, conseguiu-se afastar a terrível ameaça que ronda o início do século XXI.
Em termos esportivos, o Brasil marcou sua posição: não somos potência olímpica, mas também não somos residuais. Como sempre, para além do talento individual, tivemos vitórias inesperadas de atletas emergentes, a confirmação do favoritismo em alguns esportes e o fracasso, até inesperado, em outros. No final, foram atestadas as nossas deficiências de financiamento e apoio técnico, sem os quais é impossível avançar para a elite do esporte mundial. A conquista da inédita medalha de ouro no futebol masculino é um êxito a ser comemorado, mas não há razões para ilusões. São resultados que denotam mais uma vez a anemia da nossa política esportiva.
Depois das confusões iniciais, correções na organização do megaevento parecem ter contentado o público presente. Mas os custos das inúmeras construções bem como o seu custeio posterior permanecerão como um passivo de não pouca monta. A renovação urbanística do centro do Rio de Janeiro reafirmou a opção por transformar o Rio numa cidade turística global. As mudanças em termos de mobilidade urbana e de segurança foram bem recebidas por turistas e cariocas, embora, no primeiro caso, haja dúvidas quanto à manutenção da sua eficiência e, no segundo, já se sabe, infelizmente, o que esperar depois da retirada das forças nacionais de segurança. Por tudo isso, tem razão Fernando Gabeira quando afirma que “a Olimpíada foi produto de um delírio do passado, realizado com os pés no chão da aspereza do presente”.
O espetáculo de abertura dos Jogos causou certo frisson na opinião pública e entre os intelectuais. Qual Brasil deveria ser apresentado ao mundo e aos próprios brasileiros? Diante de distintas e sempre inconclusas interpretações do Brasil, que elementos essenciais e significativos deveriam orientar a coreografia de imagens, canções, sons e danças daquela abertura? A competência dos criadores produziu um resultado visualmente vibrante e surpreendentemente consensual. Tudo foi muito bem projetado, ensaiado e executado. Um espetáculo de entretenimento, com muito boa técnica e, dizem, parcos recursos por conta da crise.
O toque destoante foi a qualificação dada por seus criadores à concepção que orientou o espetáculo. Sua síntese norteadora estava na palavra “gambiarra”: o Brasil seria então um “país-gambiarra”. Na encenação, foram valorizadas as transformações ocorridas na sociedade brasileira a partir de uma leitura acomodada da nossa trajetória moderna, mas que vem em boa hora. Contudo, mesmo que o espetáculo não tivesse sido projetado para exercitar a reflexão, essa louvação ao “jeitinho brasileiro” como prática e método reiterável, esse elogio ao paliativo, ao remendo, não é apenas um exagero, trata-se de um desserviço. Uma louvação extremamente perigosa, especialmente nessa hora em que o país necessita ser reinventado e não glorificado por meio de uma interpretação mítica sobre ele. Onde há glorificação não há pensamento crítico. Afinal não é isso que se quer para as nossas escolas?
As críticas pontuais feitas ao espetáculo de abertura evitaram enfrentar a nossa crise atual em toda sua profundidade. Não conseguiram abarcar as razões pelas quais a nossa modernidade está hoje empacada pela ineficiência do Estado diante das demandas da Nação, sem mencionar a hemorragia que a corrupção impõe aos recursos públicos. Em meio à encenação se poderia bradar, com satisfação: “Yes, nós (ainda) temos modernismo”. Mas não será um “tropicalismo revisitado” que terá o condão de nos dar a chave para o futuro, retomando os velhos temas da “questão nacional”, que hoje já não é o essencial para nós, uma sociedade imersa nos desafios de uma nova era histórica, marcada pela globalização, com seu cosmopolitismo, suas interdependências e sua irrefreável mudança tecnológica. Efetivamente, nenhuma gambiarra nos serve nessa hora; nenhuma gambiarra deve salvar um governo corrupto que arrasou a economia do país e impôs sacrifícios imensos a trabalhadores e insegurança total a empreendedores.
Uma parte da encenação é bastante significativa. Nela, um menino, isolado e reflexivo, singelamente se senta ao lado de uma muda de árvore, indicando que devemos, com urgência, salvar a natureza. Ele não traz consigo um livro ou um computador, ou os dois. Foi uma oportunidade estética perdida, num país que, nos últimos anos, viu crescer o analfabetismo em algumas das suas regiões. Para os brasileiros fora do Maracanã, aquele “pouquinho de Brasil” (“que canta e é feliz”), que estava lá dentro, não satisfaz. É preciso que definitivamente deixemos de ser conservadores: nossa política, se quiser ser democrática, deve superar o recado contido na estética da abertura dos Jogos.
Ao invés da consagração de “utopias retóricas” – perdoem-me a redundância –, seria mais produtivo um reencontro com a realidade. A história é mundial há séculos e a globalização cristalizou essa tendência, sem que haja possibilidade de retorno. Nosso tempo é este e nele estão as possibilidades do país e não em uma imagem edulcorada de si mesmo, projetando uma especialização passiva e fugaz diante do mundo. (Revista Será – 09/09/2016)
Alberto Aggio é historiador e professor titular da Unesp
Fonte: pps.org.br
Alberto Aggio: Ainda imersos na falácia do golpe
Faz algum tempo que estamos imersos numa hiperinflação do uso da palavra “golpe”. Mesmo após ser consumado o impeachment de Dilma Rousseff, parece que continuaremos a ter essa expressão, e seus derivados, a soarem em nossos ouvidos por algum tempo. Ainda mais agora que Dilma foi constitucionalmente destituída da presidência, mas não perdeu seus direitos políticos.
Quando aplicado à política, a palavra golpe é antes uma metáfora que carrega uma carga significativa de dramaticidade. Faz lembrar imediatamente soldados, armas e tanques, agressões e violência, imposição e repressão no sentido de silenciar opositores. Convencionalmente, a palavra “golpe” quer indicar uma ação incisiva, fulminante e até traiçoeira que visa constranger, agredir e, no mais das vezes, anular ou eliminar o adversário político. Chamar alguém de “golpista” não seria propriamente um xingamento, mas no contexto em que vivemos, efetivamente o é.
Em termos políticos, um “golpe” pode ser caracterizado como qualquer ação intencional de violação da legalidade que rompa com a representação soberana nas instituições políticas, notadamente no Estado. Uma ação impetrada em detrimento do andamento normal da vida institucional de uma comunidade política. Um “golpe de Estado” é convencionalmente entendido como um ato de destituição ilegal de um governante que chegou e ocupa legitimamente um determinado cargo e encontra-se no exercício pleno das funções estabelecidas por esse cargo. Um “golpe de Estado” ceifa o mandato desse governante de maneira ilegal e ilegítima.
Contudo, historicamente, há vários tipos de golpe. Pode haver golpes de Estado que impeçam a renovação da representação política, cancelando eleições, como fez Getúlio Vargas, em 1937, instalando o Estado Novo ou como fez Fulgencio Batista em Cuba, em 1952. No regime parlamentar, um golpe palaciano pode alterar regras de sucessão ou manipular o andamento político que levaria à efetivação dessa sucessão, por meio de ações conspiratórias, como fez Hitler para chegar ao poder. No regime presidencialista, os golpes são, em geral, aqueles que destituem os presidentes por meio da força. São os golpes considerados clássicos na América Latina, como aqueles que derrubaram João Goulart, em 1964, no Brasil, e Salvador Allende, em 1973, no Chile.
Nos últimos meses, o petismo e os filopetistas falaram ad nauseum que o impeachment da presidente Dilma Rousseff configurava-se num golpe. Entretanto, em todo esse tempo, não se tem noticia de tanques, soldados, pessoas presas, repressão, mortos, etc., nas ruas do país. Em razão da impossibilidade de alguém ser convencido de que estivesse havendo um golpe contra Dilma, eles mudaram o enfoque. Passaram a falar que o que estava em curso era um “golpe” adaptado aos nossos tempos. E essa fala Dilma Rousseff repetiu em sua defesa no Senado, sem entretanto convencer ninguém a não ser aqueles que já estavam convencidos. Escrevi sobre isso faz alguns meses, desmascarando essa nova retórica (veja aqui “O paradigma do golpe de novo tipo”)
Por ser logicamente difícil argumentar que havia golpe de Estado num processo conduzido inteiramente dentro dos marcos constitucionais, com amplo direito de defesa, o petismo foi variando a sua retórica. Agregou-se ao golpe a noção de que havia um “atentado” à democracia. Alguns chegaram a dizer que não era Dilma que estava sendo julgada e sim a democracia. Por sua vez, representantes da intelectualidade mais nobre do país saíram-se com a fórmula de um “golpe ético”, dando signos estéticos a uma tese estapafúrdia. O jornal francês Le Monde foi mais tímido e lascou: “se não é golpe, é uma farsa”, desconhecendo o que se passa do outro lado do Atlântico, ao sul do mundo, desrespeitando as instituições representativas do Estado brasileiro, além do Poder Judiciário que dirigiu a sessão de definição do impeachment.
Seguindo tais delírios, na sessão de defesa de Dilma eis que seus apoiadores explodem em sorrisos e, por algumas horas, a “carnavalização do golpe” se instaurou. Junto com sorrisos largos, óculos escuros em pleno Senado, selfies aos montes com Chico Buarque, Lula, seguiu-se uma confraternização geral dos “golpeados”. Talvez o que petismo chama de “golpe parlamentar” seja assim mesmo, uma espécie de “golpe do bem”, que permite aos “golpeados” sorrirem e festejarem em público. Acertou na mosca o jornalista Lauro Jardim quando agregou mais um qualificativo para o nosso golpe jabuticaba: trata-se de um “golpe risonho”. Ufa, podemos enfim dormir tranquilos, o “nosso” golpe, como dizem os jovens, “é de boa”!
Ao final do julgamento, na tarde de 31 de agosto, sabendo que a derrota era certa e Dilma seria destituída, o petismo reformulou sua estratégia: dividir a votação por meio de um destaque que mantivesse os direitos políticos a Dilma Rousseff. Com isso, poderiam garantir e ampliar a única conquista que tiveram nesse processo: a “vitória da narrativa”; não há golpe, mas a narrativa e os termos dela permanecerão.
A função da narrativa agora não é mais convencer que estava ocorrendo um golpe. Agora sua função será atacar os “golpistas”. Ampliou-se assim o escopo dessa formulação política. Nesse novo cenário, a narrativa do golpe só serve para uma única coisa: estabelecer um discurso de vitimização, tão comum ao PT, para ser usado como mantra acusatório, imputando àqueles que lutaram pelo impeachment a pecha de “golpistas”. Por isso, a reiteração dessa narrativa era tão necessária.
Há que se ter clareza dessa nova situação. O PT sai desse processo fora do poder, o que não é pouco. Derrotar a falácia do golpe não se dará apenas por meio de um discurso contraposto, uma contra narrativa, mas sim pela defesa do andamento normal da política e da democracia, com as eleições que estão aí e com propostas para enfrentar a crise e fazer o país voltar a crescer, superando o legado tenebroso do lulopetismo.
Alberto Aggio é historiador, professor da Unesp e presidente da FAP
Fonte: pps.org.br