affonso celso pastore

Affonso Celso Pastore: Lições da história

Redução dos juros pelo Fed criou condições para o crescimento de bolhas

Em viagem a Nova York, no fim de 1997, encontrei casualmente amigos ligados ao mercado financeiro, que me convidaram para uma visita ao Long Term Capital Management (LMTC), em Greenwhich, Connecticut. Aceitei. Afinal, era uma instituição criada por John Meriwether, o mago do bond trading da Salomon Brothers, e que tinha como sócios Myron Scholes e Robert Merton, que naquele ano dividiram o Prêmio Nobel de Economia. Fomos recebidos por um sócio menos graduado, calçando botas e vestindo jeans, com uma fivela de cowboy no cinto, que antes de me cumprimentar perguntou se eu tinha US$ 1 milhão – a quantia mínima para tornar-me um investidor. Quase pedi desculpas por não me qualificar como investidor, e expliquei que meu único objetivo era aprender como o LTCM conseguia proporcionar enormes ganhos na presença de tantos riscos.

Fui gentilmente brindado com uma aula. Começou explicando como operavam o “convergence trading”, que consiste em ter duas posições: comprar para entrega futura um título de renda fixa a um preço baixo, e ao mesmo tempo vender a um preço mais alto um título similar para entrega futura. Operando com treasuries, que têm risco de default nulo, haveria apenas ganhos. A aula ficou mais interessante com os exemplos de como utilizar derivativos e ampliar os ganhos alavancando posições com empréstimos de curto prazo tomados junto aos bancos, sendo tudo isso respaldado por modelos pilotados por jovens PhD formados em universidades da Ivy League. Saí de lá frustrado, pois os modelos eram tão elegantes que pensei que deveria ter estudado finanças e não economia. 

Na ocasião, já era evidente para mim que havia uma crise em formação na Rússia, que ocorreu logo em seguida. Conhecia o suficiente sobre ataques especulativos e crises fiscais, levando-me a prever um final trágico para o país, mas era incapaz de imaginar que, munido dos modelos precisos da teoria de finanças, o LTCM pudesse quebrar. Errei. Um belo dia, não conseguiram pagar os empréstimos, e se não fosse o NYFed ter trancado todos os bancos financiadores em uma sala de seu edifício no down town até que concordassem em assumir totalmente o prejuízo, ocorreria uma crise sistêmica. A Rússia podia quebrar, mas o LTCM era “grande demais para quebrar”. 

Confiança excessiva nos modelos gera arrogância. Antes da crise de 2008 Robert Schiller advertia sobre o crescimento de uma bolha imobiliária. Na reunião de Jackson Hole de 2005, Raguran Rajan teve a ousadia de apontar que esse risco era grande, mas a enorme confiança na hipótese de mercados eficientes, nos modelos, e na autorregulação dos mercados, fez com que seu trabalho fosse muito criticado e esquecido pelos economistas. 

O Glass Steagel Act fora revogado, desaparecendo a separação entre bancos comerciais e de investimentos. Com isso as hipotecas, grande parte das quais financiava a aquisição de casas por clientes que não conseguiriam pagar, eram empacotadas em mortgage backed securities vendidas aos bancos de investimento, que alavancavam sua posição com financiamentos tomados em bancos comerciais. Brooksley Born, a presidente da Commodities Futures Trading Comission, advertiu sobre a necessidade de regulação para evitar fraudes em derivativos no mercado de balcão, largamente usados nessas operações. Discutiu o assunto com Greenspan, que discordava da proposta. A diferença era que Born “queria usar leis”, enquanto para ele o mercado resolveria tudo. “Se houvesse fraude a companhia demitiria o trader”. Ponto final!

Com a covid vivemos um ciclo econômico sem precedente. O Fed reduziu a zero a taxa dos fed funds e comprou mais de US$ 2 trilhões em treasuries. Colocou o país na armadilha da liquidez e garantiu que manteria os juros baixos por longo período, mesmo que por algum tempo a inflação superasse a meta. Com isso os investidores saíram comprando ativos, de ações a bitcoins, criando condições para o crescimento de bolhas, cuja existência é sempre negada. Para sair da estagnação, no entanto, o governo vai executar uma expansão fiscal de 10% do PIB, com o risco de superaquecer a economia. Se isto ocorrer, o Fed terá que renegar o compromisso e elevar os juros, desinflando possíveis bolhas, com prejuízos que crescem com as alavancagens. 

Pode ser que “desta vez seja diferente”, ou que eu esteja vendo fantasmas. Mas seria muito bom se em vez de nos apoiarmos na crença religiosa aos modelos e de que os mercados tudo resolvem, prestássemos atenção às lições da história. 

*Ex-presidente do Banco Central e sócio da A.C. Pastore & Associados. 


Affonso Celso Pastore: O grito do silêncio

O dano causado pelo governo continuará a se manifestar através do pífio desempenho da economia

É compreensível que parte do setor privado evite criticar publicamente o governo, mas seu silêncio não significa aprovação: os preços dos ativos gritam por eles. Ao longo de 2020, a piora da situação fiscal decorrente da péssima reação do governo à pandemia provocou um crescimento sensível dos prêmios de risco, destacando-se a depreciação do real, que, após uma pausa no final do ano, prosseguiu recentemente com acentuada volatilidade. Embora poucos acreditassem que Bolsonaro pudesse reconhecer seus erros, e passasse a exercer a Presidência com uma competência nunca demonstrada, muitos apostavam que a liquidez internacional levaria à valorização do real, reduzindo a pressão sobre a inflação. Com isso, o Banco Central, que mantém uma elevada credibilidade, talvez pudesse retardar um pouco o início da inevitável normalização monetária, fazendo o que está ao seu alcance para ajudar na recuperação da economia. 

É possível que a política fiscal expansionista de Biden venha a reforçar o enfraquecimento do dólar, mas este já vem ocorrendo significativamente desde maio de 2020, quando teve início uma política monetária com níveis recordes de estímulos. Foi em maio que o Federal Reserve derrubou a taxa dos Fed funds para 0,25% ao ano (o seu zero bound), foi em maio que comprou mais de US$ 2,5 trilhões de treasuries, que é perto de 2 vezes o total de ativos financeiros comprado durante o QE da crise de 2008, e não por acaso foi em maio que o dólar começou a se enfraquecer. Se a liquidez internacional fosse decisiva para valorizar o real, a partir de maio este teria de seguir a trajetória da mediana de uma amostra de 20 países emergentes, que se valorizou acompanhando de perto o enfraquecimento do dólar. Em 2020 e no início de 2021, o comportamento do real não tem nada a ver com o enfraquecimento do dólar. É explicado apenas por causas domésticas. 

O setor privado nunca teve ilusões a respeito de Bolsonaro, mas agarrava-se a uma narrativa “construtiva”. A existência de mais de uma vacina com eficácia comprovada levaria a uma recuperação já em 2021, melhorando o mercado de trabalho, e o desembolso da “poupança precaucional” (ou circunstancial) neutralizaria a contração vinda do “despenhadeiro fiscal”, parte do qual era devida ao fim da ajuda emergencial. Mas, para ser “construtiva”, a narrativa tinha de subestimar a incompetência do governo.

Foram patéticos os lances de ópera bufa na busca desesperada pela obtenção de algumas vacinas vindas da Índia com o único objetivo de apressar a cerimônia de início da vacinação, enquanto o governo se omitia em enviar o oxigênio que minorasse a tragédia de Manaus. Mas Bolsonaro não estava interessado na vacinação e no sofrimento dos atingidos pela pandemia, e, sim, em iniciar a vacinação antes de Doria, em São Paulo. O que estava em jogo não era a solução do problema sanitário, e, sim, o aumento de seu cacife na disputa para 2022. 

Como reagirá o governo à queda da popularidade, à desaceleração do crescimento econômico e ao risco de abertura de um processo de impeachment? Especialistas afirmam ser difícil a sua aprovação diante dos 30% de apoio mantidos pelo presidente. Mas lembro que estes 30% não são uma constante da natureza, e que juristas de renome já alinharam abundantes razões para a abertura do processo de impeachment.

A perda de popularidade e a piora do estado da economia não deixarão inertes nem o governo e nem o Centrão. A este interessa que Bolsonaro continue presidente, não porque seja bom para o Brasil, mas por lhe garantir a ocupação de ministérios e outras benesses do governo. Contudo, é difícil acreditar que sejam aprovadas reformas impopulares que contrariem interesses de grupos políticos, inclusive os do próprio Centrão. O mais provável é que seja enviada ao Congresso uma nova emenda emergencial permitindo o aumento de gastos que não serão computados para o cálculo do teto, que por isso será cumprido. Mas diante do desastroso desempenho do governo, não posso sonhar que imporá as necessárias medidas compensatórias que levem à consolidação fiscal, com a qual nunca se comprometeu de fato.

O dano causado pelo governo continuará a se manifestar através do pífio desempenho da economia e dos preços dos ativos, sobretudo da taxa cambial. Mas a contagem regressiva para a reeleição já está correndo, e as reformas necessárias, mas impopulares, ficam cada vez mais distantes, aumentando a cada dia o custo da complacência com o governo atual.

*Ex-presidente do Banco Central e sócio da A.C. Pastore & Associados. 


Affonso Celso Pastore: O grau de incerteza na economia

Coube ao presidente do BC dizer que a vacina custa menos do que a ajuda emergencial

Não basta que existam vacinas com eficácia comprovada. Para salvar vidas e restabelecer a normalidade da economia, é preciso vacinar 100% da população no prazo mais curto possível, como já está ocorrendo na Europa e nos EUA. Infelizmente, em vez de agir com rapidez e eficiência, reduzindo o número de mortes e a incerteza, o governo se comporta como se o problema não existisse. É surpreendente, mas coube ao presidente do Banco Central, e não ao presidente da República, explicar que “a vacina custa menos do que uma ajuda emergencial”.

De fato, além de prolongar a crise sanitária a ausência de um plano eficiente de vacinação expõe a economia a nova desaceleração, aumentando a pressão para que ocorram mais gastos e aumente o desemprego, fechando-se um círculo vicioso que precisaria ser rompido. Mas meu propósito neste artigo não é expressar mais uma vez minha indignação pelo desrespeito do governo com a vida humana, e, sim, abordar como a elevada incerteza retarda a recuperação econômica. 

A FGV constrói um índice de incerteza da economia. Quando ele está abaixo de 100, o grau de incerteza é baixo, o que significa que há uma elevada previsibilidade que é essencial para planejar os investimentos em capital fixo, que contribuem para o crescimento econômico. Observa-se que nas três recessões que precederam a “recessão da covid” sempre ocorreu uma forte queda da taxa de investimentos associada a elevações do índice de incerteza da economia para próximo de 130 pontos. 

Na recessão de 2002, por exemplo, o risco de que o governo Lula não manteria o compromisso assumido por FHC, de gerar superávits primários suficientemente elevados para reduzir a relação dívida/PIB, provocou o aumento do índice de incerteza ao lado de uma queda da taxa de investimento de 18% para 16% do PIB. Porém, a rápida adesão do governo às metas de superávits primários derrubou o índice de incerteza abaixo de 100, ocorrendo uma elevação de dois pontos porcentuais na taxa de investimento e uma rápida recuperação da economia. Na crise de 2008, o índice de incerteza também se elevou acima de 130, e a taxa de investimentos caiu de 20% do PIB para 18%. Foi uma recessão curta que também se encerrou com a rápida recuperação dos investimentos associada à queda do índice de incerteza abaixo de 100. 

Precedida pela malfadada experiência da “nova matiz macroeconômica”, em 2014 iniciou-se uma recessão que durou até o final de 2016. Embora desta vez o pico do índice de incerteza também tenha atingido em torno de 130, manteve-se persistentemente elevado – acima de 110 pontos – até o final de 2019 e, como não poderia ser diferente, a taxa de investimentos manteve-se em nível histórico de baixa. Contrariamente às duas recessões anteriores, cuja recuperação foi liderada pelo aumento da formação bruta de capital fixo, desta vez ela foi liderada pelo consumo, que não tem a mesma força propulsora, ou o mesmo “efeito multiplicador”, dos investimentos em capital fixo. Foram três anos consecutivos de crescimento do PIB a uma taxa média de apenas 1% ao ano, pouco acima da taxa de crescimento populacional, de 0,8% ao ano, mantendo deprimida a renda per capita. 

Logo que a covid atingiu o Brasil, o índice de incerteza da economia saltou para 210 pontos, recorde absoluto da série. Recuou em seguida, mas vem se mantendo em 150 pontos, que é bem superior aos valores máximos anteriormente atingidos por este indicador. Com tal nível de incerteza, é literalmente impossível admitir que a retomada dos investimentos em capital fixo será uma força motriz da recuperação da economia em 2021. A exemplo do ocorrido na saída da longa recessão iniciada em 2014, teremos de nos beneficiar da recuperação do consumo, que além da esperança nos efeitos de uma suposta e questionável “desova” da assim chamada “poupança precaucional” terá de enfrentar os freios impostos pelo fim da ajuda emergencial a 66 milhões de pessoas, e uma elevada taxa de desemprego. 

Os dados mais recentes confirmam que a “recessão da covid” foi bem menor do que se temia, já que não se imaginava tamanho estímulo fiscal, provocando “apenas” uma contração entre 4% e 4,2% do PIB. Mas para crescer acima de 4% em 2021, que é apenas o efeito estatístico herdado de 2020, é preciso reduzir o grau de incerteza da economia, o que exigiria vacinação rápida da população e o delineamento de uma estratégia de crescimento. Com este governo, há pouca ou nenhuma esperança que isto ocorra. 

*Ex-presidente do Banco Central e sócio da A.C. Pastore & Associados.


Affonso Celso Pastore: Risco de inflação e a reação do governo

A esperança de que Bolsonaro não embarque em uma nova aventura expansionista não se deve ao seu discernimento

Com o resultado do terceiro trimestre, sabemos que a recuperação dentro de 2020 superou todas as expectativas, reduzindo a queda do PIB a algo em torno de 4,5%. As projeções de consenso da última semana informam que em 2021 o PIB deverá crescer em torno de 3,5%, mas não esclarecem que essa taxa é próxima do carry-over de 2020. Ou seja, há um crescimento de 3,5% entre 2020 e 2021, mas praticamente não há crescimento dentro de 2021. Para amenizar as preocupações, argumenta-se que a poupança dos ricos acumulada durante o afastamento social compensará a queda da demanda dos pobres, acarretada pelo fim da ajuda emergencial. Tenho dificuldades enormes com esse argumento. Com uma taxa de desemprego podendo chegar no pico a 20%, é difícil apostar no consumo dos mais pobres e, com a incerteza elevada, é difícil que os ricos não se protejam, guardando boa parte do que acumularam.

O fato é que a rápida recuperação – inegavelmente positiva – deixou uma herança fiscal que dificulta a continuidade do crescimento em 2021. Devido ao risco de insolvência do governo, o nível de incerteza da economia atingiu um recorde, inibindo os investimentos em capital fixo. Uma forma de aferir como a percepção deste risco se transmite é olhando para os prêmios de risco em ativos financeiros em mercados muito líquidos, como os de juros e de câmbio.

Com muito mais habilidade do que eu, em artigo recente Marcio Garcia demonstrou elegantemente o que se passou. Ele definiu a inclinação da curva de juros como a diferença entre as taxas de 10 e de um ano, e superpôs esta série ao câmbio nominal, medido em R$/US$. Iniciou sua série em junho 2019, quando o mercado ainda acreditava que o teto de gastos seria cumprido e o risco de insolvência era mais baixo, e a estendeu por todo o ano de 2020. É notável como estas duas séries caminham juntas. Nos dois casos, o prêmio de risco dá um salto semelhante tão logo se configura a percepção de que cresceu o risco de insolvência.

O aumento das taxas de juros em operações mais longas tem importância porque eleva a dificuldade na administração da dívida, cujo prazo médio de vencimento deverá cair abruptamente, expondo-nos ao risco da repressão financeira, piorando a curva de juros e o comportamento do câmbio. Não há espaço neste artigo para tratar deste problema, por isso me restrinjo ao câmbio. A depreciação cambial, que desde janeiro de 2020 acumula quase 30%, é a maior causa do aumento da inflação nos últimos meses.

Não deveria ser assim. Afinal, a economia deprimida tenderia a reduzir o repasse do câmbio aos preços. Mas não é esse o caso dos preços de alimentos, como a soja e derivados, carne e arroz, entre outros, que são exportáveis. Seus produtores repassam a depreciação cambial aos preços domésticos e, se a demanda cair, exportam todo o excedente. Os reajuste dos preços destes produtos nos armazéns e supermercados produziram nos últimos 12 meses uma inflação de quase 18% no item “alimentação no domicílio”. Não teria grande importância se a taxa de desemprego, que até setembro já havia atingido 14,8%, caísse bastante em 2021, e se houvesse um aumento da renda real. No entanto, sem a ajuda emergencial, a recuperação lenta ou mesmo a estagnação da economia dentro de 2021 não dá perspectivas de uma melhora no mercado de trabalho.

Há alguns meses escrevi sobre uma reação dos indivíduos a ganhos ou perdas imprevistas, cuja autoria erradamente atribuí a Richard Thaler, quando ele próprio reconhece que a autoria é de Kahneman e Tversky. Com o devido pedido de desculpa aos verdadeiros autores, repito o enunciado daquela conjectura: “a felicidade decorrente de um ganho inesperado é menor do que o sofrimento de uma perda inesperada”. Da mesma forma como a ajuda emergencial elevou a popularidade de Bolsonaro, seu encerramento deve derrubá-la o que, aliás, já está ocorrendo. Como reagirá o presidente diante de uma “queda inesperada” de sua popularidade, com a taxa de desemprego elevada, a economia estagnada e com uma inflação de alimentos que corrói o poder aquisitivo das classes de renda mais baixas junto às quais era popular?

Optará pela obediência ao teto de gastos ou terá preferência por gastar, aumentando sua popularidade? A esperança de que ele não embarque em uma nova aventura expansionista não se deve ao seu discernimento, que em matéria de economia é reconhecidamente baixo, e sim ao medo de ser punido pela depreciação cambial, que eleva a inflação.

*Ex-presidente do Banco Central e sócio da A.C. Pastore & Associados.


Affonso Celso Pastore: Riscos da inflação e de repressão financeira

Ainda que em manifestações públicas empresários e economistas expressem confiança no cumprimento do teto de gastos, não é isso que indicam o comportamento do câmbio e da curva de juros, cuja inclinação positiva continua aumentando. Não precisam manifestar sua crítica. O mercado fala por eles.

Para evitar que o risco de insolvência cresça devido ao aumento do custo da dívida, o Tesouro optou por financiar o déficit primário deste ano com títulos de prazos curtos, que têm prêmios de risco mais baixos. Na rolagem da dívida que vence, resgata os títulos de prazos longos com recursos da venda de títulos mais curtos.

Com isso o prazo médio da dívida pública já caiu para 35 meses, e deverá cair ainda mais em 2021, quando ocorrem resgates superiores a R$ 300 bilhões por trimestre. Nesta velocidade, o prazo médio de vencimento da dívida rapidamente cairá abaixo de 30 meses.

A dificuldade na administração da dívida é uma primeira manifestação da dominância fiscal, que leva à inflação e à repressão financeira (a obrigatoriedade imposta aos intermediários financeiros de comprarem títulos com vencimentos mais longos), que já existiu nos anos 70 e 80, quando muitos dos que atuam no mercado financeiro não haviam nascido e desconhecem a magnitude das distorções que provoca.

Os prêmios de risco se manifestam também na taxa cambial, que desde o início do ano já se depreciou perto de 40%. Se o Banco Central atuasse sobre a curva de juros reduzindo sua inclinação positiva, pressionaria ainda mais o câmbio, e se tentasse conter a depreciação cambial com intervenções mais ativas no mercado de câmbio elevaria a inclinação positiva da curva de juros, encurtando ainda mais o prazo médio da dívida.

Estes são exemplos de ações que apenas escondem a manifestação do risco em um dos dois mercados, e como o verdadeiro risco é fiscal, e não desaparece com mágicas, o prêmio apenas migraria de um mercado para o outro.

Nesta situação, o risco de inflação é maior do que se supõe. Há muito aprendemos que o repasse cambial para os preços dos bens tradables não é afetado pelo hiato do PIB. Diante de uma depreciação cambial, os produtores de soja, carne, milho, arroz, açúcar, entre muitos outros, elevam os seus preços no mercado interno e se não conseguirem vender o que produziram exportam todo o excedente àquele preço.

Por isso, a depreciação cambial eleva fortemente os preços pagos aos produtores de produtos agrícolas, que são repassados aos preços nos supermercados e nas feiras livres, elevando o item “alimentação no domicílio” dentro do IPCA, que nos últimos 12 meses já cresceu 15%.

Para os 66 milhões de brasileiros que por quatro meses se beneficiaram de uma ajuda emergencial de R$ 600 ao mês, há enorme diferença. Como a demanda de alimentos tem uma elasticidade-preço muito baixa, e eles têm de se restringir ao seu orçamento, que encolheu com o fim do auxílio emergencial, terão de cortar outros gastos para continuar comendo.

Isto significa que o peso da alimentação no domicílio na sua cesta de consumo será maior do que o usado pelo IBGE no cômputo do IPCA. Sua “inflação percebida” será maior do que a inflação medida por todos os possíveis núcleos computados pelos economistas. Não adianta tentar convencê-los de que houve apenas uma mudança de preços relativos porque as expectativas ainda estão ancoradas às metas.

O Banco Central sabe que a desancoragem ocorrerá, e os indivíduos sabem que sofreram uma dupla perda: da renda nominal, devido ao fim do auxílio emergencial, e da renda real, devido ao aumento da inflação percebida.

Nestas circunstâncias, a reação de um governo populista é transferir mais renda à população, aumentando o desequilíbrio fiscal e piorando o risco de inflação e da repressão financeira.

Se o País não reafirmar com ações concretas, e não com palavras, a sua determinação de atender ao teto de gastos, não há como impedir uma curva de juros mais inclinada e um câmbio mais depreciado.

O Banco Central seria colocado na incômoda posição de ter de elevar a taxa de juros quando a economia ainda se encontra fortemente deprimida, e para fugir desta armadilha pode ser forçado pelo governo a taxar as saídas de capitais ou mesmo impedi-las para evitar uma sangria nas reservas.

Todas estas formas de repressão financeira são extremamente prejudiciais à economia, e a única forma de evitá-las é o retorno rápido e sem subterfúgios à austeridade fiscal.

*Ex-presidente do Banco Central e sócio da A.C. Pastore & Associados.


Affonso Celso Pastore: EUA, Europa e Brasil

Há muitas razões para que os brasileiros analisem atentamente o comportamento da economia norte-americana

Há muitas razões para que os brasileiros analisem atentamente o comportamento da economia norte-americana. Ciclos econômicos nos EUA afetam a economia mundial; a guerra comercial contra a China iniciada por Trump interfere com o Brasil devido às relações comerciais que mantemos com ambos; e, acima de tudo, o mercado financeiro centrado em Nova York, interage intensamente com a economia brasileira, afetando direta e indiretamente o seu comportamento. De um modo geral, temos muito a aprender com os EUA, mas não com a sua reação à pandemia e às suas consequências na política monetária. Neste caso, ganharíamos muito mais se prestássemos a devida atenção ao que vem ocorrendo na Europa.

Enquanto o governo dos EUA optou pela negação da pandemia, os vários governos europeus impuseram desde logo um rígido lockdown, que derrubou o contágio e permitiu o início mais rápido de uma cuidadosa reabertura, que favoreceu o bem estar de suas populações.

Como o PIB é uma medida imperfeita de bem-estar, não reflete o ganho devido ao já quase pleno retorno à livre movimentação dos europeus. Porém, acima de tudo, a boa reação europeia no campo sanitário levou a uma utilização bem menos intensa de estímulos monetários. De fato, o BCE vem gerando uma expansão de seu ativo significativamente menor do que a do Fed, e a maior preocupação dos governos europeus é com o “futuro do euro”, para cuja consolidação, na última reunião do Conselho Europeu, foi aprovado um fundo de recuperação de € 750 bilhões, com € 390 bilhões na forma de subvenções e € 360 bilhões em empréstimos. Os europeus reagiram racionalmente à pandemia; foram prudentes na política monetária, e apesar da oposição dos países “frugais” procuraram exorcizar o fantasma de uma nova versão do Brexit, defendendo a moeda única e a cooperação entre os países do bloco.

Já a negação da pandemia por parte do governo dos Estados Unidos levou o país, após uma segunda onda de contágio, a amargar uma média de mil mortes por dia, e para compensar os efeitos econômicos de sua omissão no campo sanitário teve que exagerar na concessão de estímulos monetários, cuja intensidade é melhor avaliada observando seus reflexos sobre os preços dos ativos.

A compra de treasuries por parte do Federal Reserve tem sido tão intensa que derrubou todas as suas taxas de juros para próximo da taxa dos fed funds. Os governos emitem dois tipos de passivo: o que rende juros – os títulos da dívida pública – e o que não rende juros – o papel moeda, e diante de uma estrutura de taxas gravitando em torno de zero tudo se passa “como se” estivesse jogando moeda de um helicóptero. No passado, as curvas de juros já foram inclinadas e planas, mas nunca devido a este comportamento do Fed. Uma de suas consequências é acentuar a tendência de enfraquecimento do dólar, porém a mais preocupante é que o Fed vem alimentando uma bolha no mercado de ações. Há várias semanas a Nasdaq já superou em muito o pico anterior ao início da pandemia, e esse patamar também foi superado pelo S&P 500. Ao se comprometer mais com a queda do desemprego do que com a inflação, Jerome Powell tende a inflar ainda mais a bolha no mercado de ações, e sabemos que estouros de bolhas têm custos econômicos elevados.

Na reação à pandemia o Brasil seguiu os EUA; há mais de 80 dias o país amarga em torno de mil mortes/dia, e para evitar uma recessão ainda mais profunda teve de lançar mão de estímulos. Felizmente o Banco Central nunca cogitou de realizar uma operação twist que reproduzisse a curva de juros norte americana, e esperamos que o lucro da depreciação cambial transferido ao Tesouro não tenha o seu uso desvirtuado. Porém, no campo fiscal, o País desperdiçou recursos de que não dispunha. Sendo incapaz de montar um cadastro que delimitasse corretamente qual seria o “grupo alvo” beneficiado pelas transferências, destinou-as a perto de 66 milhões de brasileiros!

Chegaremos ao final de 2020 com um déficit primário e uma relação dívida/PIB bem superiores ao que ocorreria na ausência desse erro, com as consequências de que: não salvamos as vidas que poderiam ter sido salvas com uma reação correta à pandemia; e deixamos para nós mesmos e para as gerações futuras um enorme custo fiscal.

Uma proeza, maximizamos os dois custos ao adotar um modelo que busca, apenas, viabilizar a reeleição do presidente. Melhor seria termos aprendido com a história dos países de sucesso, que priorizam o bem comum, como fizeram os europeus.

*Ex-presidente do Banco Central e sócio da A.C. Pastore & Associados.


Alex Ribeiro: Encurtamento da dívida deixa país vulnerável

Súbita mudança de humor dos mercados é risco para estratégia de emitir títulos públicos de curto prazo

Dois ex-presidentes do Banco Central alertaram, nos últimos dias, para os riscos da tendência de encurtamento do prazo da dívida pública, num ambiente de muita incerteza sobre a manutenção do teto de gastos, a principal âncora fiscal do país. O Tesouro Nacional pode até ganhar algum tempo emitindo títulos públicos de curto prazo, mais baratos. Mas ficará cada vez mais vulnerável a uma súbita mudança de humor dos mercados.

Arminio Fraga, da Gávea Investimentos, citou um número que sintetiza o perigo: pelo andar da carruagem, o Tesouro terá que captar no mercado o equivalente a 46% do Produto Interno Bruto (PIB) em 12 meses, para rolar os títulos que vencem no período, para pagar os juros da dívida e para bancar o altíssimo déficit primário do governo.

O fantasma é um eventual repeteco do que aconteceu em 2002, quando o próprio Arminio chefiava o BC. Os investidores se tornaram mais relutantes em financiar o governo, diante das dúvidas sobre o compromisso do então candidato Luis Inácio Lula da Silva com a austeridade fiscal. “O governo não conseguia vender papéis que venciam em 2003”, disse, referindo-se ao ano em que começaria o novo governo. A bomba só foi desarmada quando Lula se comprometeu a manter o ajuste das contas públicas.

O economista Affonso Celso Pastore explicou a dinâmica que tem empurrado o Tesouro para o encurtamento da dívida. Hoje, a taxa que o Tesouro paga para se financiar no curto prazo está entre 2% e 3% ao ano, enquanto que nas captações de dez anos paga algo como 7% ao ano. A diferença entre a taxa de curto prazo e a de longo prazo, de cerca de 4,5 pontos percentuais, representa justamente o risco fiscal.

A perspectiva é que a dívida bruta supere 100% do PIB e, até agora, o governo Bolsonaro não mostrou claramente como pretende manter o teto de gastos. Do ponto de vista do Tesouro, argumentou Pastore, faz sentido e é totalmente sensato captar no curto prazo, pagando juros menores. Com isso, reduz o custo implícito da dívida pública. Os juros que o Tesouro paga na dívida são um componente importante nos cálculos da dinâmica da dívida. A desvantagem é que o Tesouro fica com um perfil de dívida desfavorável, com vencimento em um prazo mais curto.

“Se isso for temporário, não tem muita importância”, afirmou ele, “Se isso se estender ao longo do tempo e você tiver um aumento de riscos, o Tesouro vai ter que seguir resgatando os títulos longos e colocando títulos curtos.” Para ele, o acúmulo desse risco é um alerta importante “para que o governo tenha juízo e retorne ao teto de gastos”. Os dados divulgados pelo Tesouro nos últimos dias mostram como o encurtamento da dívida pública vem ocorrendo de forma acelerada.

De dezembro para junho, o prazo médio da dívida baixou de 3,83 meses para 3,68 meses. Há pouco tempo atrás, o prazo médio da dívida era de 4,5 anos. Mas essa estatística deixa de fora a atuação do Banco Central por meio das operações compromissadas, que são operações de curtíssimo prazo que impactam a dívida bruta. No primeiro semestre, o déficit primário do governo central ficou em R$ 417,241 bilhões, em grande medida devido aos gastos extras e perda de arrecadação com a pandemia. Com forte volatilidade nos mercados, não foi possível ao Tesouro levantar dinheiro para financiar esses gastos. Desse déficit primário, apenas R$ 3,374 bilhões foram bancados com a emissão de dívida. A maior parte foi financiada por meio de operações compromissadas. Uma outra parte foi pela emissão de moeda, já que a população passou a demandar mais dinheiro em espécie na pandemia. No caso das compromissadas, não foi um financiamento direto do BC ao Tesouro. O Tesouro sacou dinheiro da conta única para pagar despesas e, em seguida, a autoridade monetária enxugou o excesso de dinheiro em circulação.

Do ponto de vista da dívida bruta, porém, faz pouca diferença. O débito aumentou e ficou com prazo mais curto. Os operações compromissadas de curtíssimo prazo subiram de 13% do PIB para 19% do PIB, enquanto que a dívida mobiliária subiu de 50,7% do PIB para 52,8% do PIB.

Na prática, o que aconteceu durante o primeiro semestre, num período de grande estresse, foi parecido com as operações de expansão quantitativa feitas por países desenvolvidos. O Banco Central ajudou a encurtar o prazo da dívida pública, tirando um pouco de pressão da curva de juros futuros. A diferença é que, no caso atual, o dinheiro para resgatar títulos do Tesouro veio da conta única. O Tesouro tem um bom fôlego para fazer essas operações, se necessário, já que a conta única tinha um saldo de R$ 997 bilhões em junho. Além disso, o Tesouro vai receber do BC um reforço dos lucros com operações com as reservas internacionais. Mas, se o quadro se prolongar e não houver recursos na conta única, em tese o Banco Central poderá comprar diretamente títulos em mercado, com os poderes que foram conferidos por uma emenda constitucional.

Um economista com longa experiência no Tesouro diz que uma dívida pública curta é sempre um problema, principalmente em um cenário de deterioração fiscal, dívida crescente e juros historicamente baixos. “Em 2002, o Tesouro teve que vender títulos pós-fixados de três meses com prêmios crescentes”, lembra. O Brasil tem alguns atenuantes importantes, como uma baixa participação de estrangeiros no financiamento da dívida e falta de opções de investimentos para investidores institucionais. Na época da hiperinflação, o governo conseguia rolar a dívida no overnight, mas pagava juros de 3% ao dia.

Agora, com os juros em 2,25% ao ano, o Tesouro já não tem a mesma facilidade de vender títulos pós-fixados.

O argumento de Arminio e Pastore é que o encurtamento do prazo da dívida pública pode ser uma estratégia para ganhar tempo enquanto são tomadas as medidas de ajuste fiscal. Mas esse tempo não pode ser desperdiçado. As medidas que podem sustentar o teto de gastos, como a PEC Emergencial e a reforma administrativa, parecem totalmente fora das prioridades do governo e do Congresso. Ao contrário, são muitas as forças para flexibilizar o teto de gastos.


Affonso Celso Pastore: O interesse individual e o bem comum

Para um presidente populista de direita, um número enorme de mortes é apenas estatística

Em visita ao CDPP em 2018, o professor Robert Pindik do MIT deu uma palestra sobre o custo social do carbono. Emissões de carbono levam ao aquecimento global, e um aumento de 2 graus na temperatura do planeta acarreta custos gigantescos: regiões férteis tornam-se desertos e o aumento do nível do mar alaga cidades litorâneas.

A forma de evitar tal ocorrência é obrigar todos os países a cobrarem um imposto sobre as emissões. Por que tem de ser cobrado de todos os países? Se apenas um deles tributasse as indústrias que queimam carvão, cairia nesse país o retorno privado dos investimentos nos produtos que utilizam o carvão, as fábricas mudariam para outro país que não tributa as emissões, e a poluição mundial continuaria aumentando.

No primeiro capítulo do seu livro Economics for the Common Good, Jan Tirole, o ganhador do Prêmio Nobel de Economia de 2014, começa discutindo as relações entre a economia e a sociedade, entre o benefício privado e o “bem comum”, usando o exemplo do custo social do carbono. Seu tema é a diferença de motivação na busca do lucro privado e na busca do bem-estar de todos.

Nas decisões sobre políticas públicas esta última é que deve predominar, e além de considerar o efeito de externalidades, como ocorre nas emissões de carbono, é preciso entender a diferença entre retornos sociais e retornos privados. Os investimentos em saneamento básico – esgoto e tratamento da água – têm um retorno privado dado pela diferença entre os custos e as receitas cobradas de quem utiliza tais serviços, que é internalizado pela empresa que produz o serviço. Para chegar ao retorno social é preciso somar a ele os ganhos vindos da melhoria das condições de saúde. O interesse da empresa é maximizar o lucro privado, mas o interesse da sociedade é maximizar o bem-estar social, o que justifica a cobrança de um preço mais baixo por parte da empresa, com o governo cobrindo a diferença através de um subsídio.

Como avaliar o custo social do carbono? Como avaliar o benefício social de um investimento em saneamento básico? Os economistas dispõem dos modelos apropriados, mas para encaminhar a resposta tenho de voltar ao tema de meu último artigo discutindo o papel da taxa de desconto, cujo valor difere entre governos populistas e altruístas.

Governos populistas preferem ganhos imediatos de popularidade e, por isso, suas taxas de desconto são muito altas, o que reduz o valor presente dos benefícios auferidos por gerações futuras. Tais governos não se interessam por investimentos em saneamento, e esta é uma das razões pelo desprezo que o governo populista de Donald Trump tem sobre o custo social do carbono.

Tirole também argumenta que todos nós somos vítimas de falhas de percepção. Os empresários dão maior peso às condições que afetam o seu lucro, o que é importante, mas a maximização do lucro não pode ser o único critério utilizado nas decisões sobre políticas públicas. É compreensível que quem trabalhou por décadas a fio para construir uma empresa se revolte contra uma medida do governo que em uma pandemia impõe restrições que derrubam sua receita e colocam em risco a sobrevivência da empresa. Cabe ao governo deixar claro por que impôs aquela restrição, e garantir que na medida do possível compensará a empresa através de transferências de renda. A percepção de um empresário é obtida pela história de construção de sua empresa, enquanto a percepção do governo tem de ser motivada pela busca do bem comum que, neste caso, justifica a transferência.

Falando sobre percepções Tirole usa o exemplo da fotografia de Ailan Kurdy, um menino sírio de 4 anos encontrado morto em uma praia turca em 2015, que simboliza a tragédia dos que migram para a Europa em condições precárias. O impacto da foto excedeu o da informação sobre as centenas de mortes na travessia do Mediterrâneo. Cita uma frase atribuída a Stalin: “A morte de uma pessoa é uma tragédia, mas a morte de 100 mil pessoas é uma estatística”. Stalin nunca se preocupou com as mortes dos prisioneiros nos Gulags. Ao insistir em sua campanha contra o isolamento social, Bolsonaro revela desprezo pelo número de mortes, atuando para que tudo volte ao normal, ignorando a pandemia. Sem surpresas. Afinal, para um ditador comunista e para um presidente populista de direita, que não respeita as instituições e os valores democráticos, um número enorme de mortes é apenas uma estatística.


Affonso Celso Pastore: Estadistas, populistas e a pandemia

Temos na Presidência um populista obcecado pelo objetivo de reeleger-se

No início do ano, foi publicada uma excelente biografia de Frank Ramsey, um cientista ligado à Universidade de Cambridge, que em sua curta vida de apenas 27 anos deixou contribuições marcantes nos campos da filosofia, da matemática e da teoria econômica. Na economia, uma de suas contribuições foi uma modelagem matemática que permitiu responder à pergunta: “Quanto a sociedade deve poupar para favorecer as próximas gerações?”. Quanto mais deixarmos de consumir no presente, mais investiremos elevando o produto, o consumo e o bem-estar das populações no futuro. Para responder qual é a distribuição ótima entre as gerações, os economistas contemporâneos incluem uma taxa de desconto para trazer a valor presente o consumo das gerações futuras. Taxas de desconto mais elevadas favorecem um consumo maior da geração presente, e planejadores que dão um peso elevado ao bem-estar das gerações futuras preferem taxas de desconto mais baixas. Ramsey tinha um profundo senso ético e grande apreço pelo bem-estar das próximas gerações, o que o levou a utilizar uma taxa de desconto nula, dando peso igual a todas as gerações.

Em um horizonte bem mais curto do que o de uma geração, a pandemia impõe aos governos uma escolha semelhante. A adoção do afastamento social poupa vidas à custa de uma recessão no presente, cujos efeitos são parcialmente atenuados por medidas que impeçam a quebra de empresas e compensem a queda de renda dos menos favorecidos, em troca de um crescimento mais vigoroso adiante. No outro extremo, o afastamento social é abolido na esperança de evitar uma recessão no presente, porém à custa de um enorme número de mortes e de menor crescimento futuro. Se o governante responsável pela decisão tiver respeito pelo futuro do país, decidirá como se tivesse uma taxa de desconto baixa ou mesmo nula, respeitando as recomendações dos cientistas e optando por um isolamento social mais rígido. Mas se o objetivo for manter sua popularidade elevada no curto prazo para favorecer sua reeleição, atirará às urtigas o futuro do país usando uma taxa de desconto muito alta.

Sempre acreditei que os estadistas têm taxas de desconto bem menores do que populistas, e minha convicção cresceu ainda mais ao ouvir o discurso de Boris Johnson quando deixou o hospital curado do coronavírus. Tendo inicialmente manifestado dúvidas com relação à eficácia do afastamento social e sido criticado fortemente por esse erro, não hesitou em curvar-se humildemente às evidências dos cientistas do Imperial College of London, voltando atrás em sua posição e decretando a continuidade do afastamento social em todo o território inglês. Como um excelente biógrafo de Churchill, não pode ser surpresa que tenha feito o discurso típico de um estadista, conclamando o povo à união na guerra contra o vírus. Boris Johnson viu a cara da morte e reduziu sua taxa de desconto para um nível muito mais baixo do que a de populistas de direita, dos quais Trump é um exemplo que é imitado por Bolsonaro.

Em um momento difícil como este, é natural que no Brasil haja divergências. Empresários que construíram suas empresas com o duro trabalho de décadas temem perdê-las ou a duras penas ter de reconstruí-las. Pessoas humildes em cujas casas pobres vivem inúmeros familiares perderam sua renda, passando a viver de transferências do governo. Nos dois casos, a tentação é atribuir a culpa ao distanciamento social e, quando cai o número de mortes, ambos lutam para que este acabe, sem se dar conta que a queda do número de mortes é a consequência do afastamento ocorrido anteriormente. A experiência do Japão e de Cingapura mostraram que é um erro abandonar precocemente a quarentena. Caberia ao governo explicar à sociedade a inevitabilidade da quarentena, trabalhando em um protocolo de saída que evite um aumento do contágio, e não se acovardando em tomar as medidas compensatórias que reduzam o custo durante o período de isolamento.

Mas não temos na Presidência um estadista, e sim um populista que, obcecado pelo objetivo de reeleger-se, tem uma taxa de desconto muito elevada, desprezando as consequências de seus atos sobre o futuro do País. Em vez de seguir o exemplo de Boris Johnson, reconhecendo humildemente seus erros e buscando unir os cidadãos, a intolerância e o radicalismo de Bolsonaro o levam a agredir todos os que divergem de suas ideias. Em vez de unir o País, ele o divide, com consequências muito negativas para o presente e para o futuro.

*Ex-presidente do Banco Central e sócio da A.C. Pastore & Associados


Affonso Celso Pastore: Precisamos de ousadia e responsabilidade

Na ausência de vacina e de remédio eficaz, só o distanciamento social consegue reduzir o contágio e o número de mortes provocadas pela Covid-19. Tal estratégia leva a forte queda da produção, como ocorre em uma guerra convencional, com a diferença de que neste caso o inimigo destrói fábricas e cidades, e as mortes chegam a muitos milhões. Há uma destruição de capital físico, cuja reconstrução exige um “Plano Marshall”, e uma destruição de capital humano, que somente será reposto a longo prazo com os investimentos na educação dos nascidos após o final da guerra.

Embora haja queda temporária da produção e da demanda, o distanciamento social evita a destruição dos capitais físico e humano, preservando o PIB potencial. Os governos elevam significativamente os gastos em saúde e em transferências aos menos favorecidos, e a forte expansão de crédito em escala sem precedentes deve impedir (ou reduzir) a quebra de empresas. Parte do crédito é dirigido ao pagamento dos salários, incentivando as empresas a manter os empregos e a renda dos funcionários. Se fosse uma recessão convencional disparada pela queda de demanda, esta teria que ser imediatamente estimulada. Porém, quando ocorre uma queda simultânea de demanda e oferta, com esta última temporariamente incapacitada de reagir, não há como o multiplicador keynesiano possa funcionar, o que somente ocorrerá quando o freio à oferta for aliviado.

Com as fábricas paradas e as lojas de portas fechadas, não é possível que a oferta responda aos estímulos da demanda. O colapso da receitas das empresas implode os lucros e adia os investimentos, contraindo a demanda, e ainda que o financiamento lhes permita manter o emprego, há uma queda de renda das famílias, contraindo o consumo. Para que a economia se recupere é preciso que a oferta responda à demanda, o que não acontece enquanto persistir o choque de oferta.

Esta não é uma recessão descrita em livros de texto, que se resolve com remédios convencionais. Para evitar a destruição do capital físico e humano a política monetária deve inicialmente ser direcionada a manter as empresas vivas através de crédito abundante, e não há por que impor limites. Ao final, as empresas estarão aptas a produzir, mas isto depende de nossa coragem e responsabilidade de fazer o que é necessário. A reação das empresas será mais rápida e intensa se os funcionários forem mantidos, preservando o investimento feito no seu treinamento. Mas é fundamental que não nos acovardemos. Aos tesouros dos países cabe realizar gastos em saúde que forem necessários – elevando a oferta de leitos de UTI, remédios e equipamentos –, e não economizar nas transferências de renda aos desassistidos, preservando o capital humano. A escala na qual isto já vem ocorrendo nos EUA e na Europa é uma medida do que é necessário.

A previsão é que a paralisação econômica durante o distanciamento social será seguida de uma recuperação, mas infelizmente a recessão na qual já estamos será profunda e duradoura, em escala mundial pior do que a de 2008/09. Há muitos cenários possíveis, todos cercados de muita incerteza, mas serei otimista se projetar que ao final de 2020 o PIB brasileiro tenha se contraído em apenas 5%. Estaremos mais habilitados a crescer em 2021 se formos mais ousados e responsáveis agora, mas sabemos, também, que se sairmos rapidamente do ‘lockdown’, como quer o nosso presidente, correremos o risco de uma nova aceleração do contágio, como em Cingapura e no Japão, o que aprofundaria ainda mais a recessão.

Começamos a enfrentar esta crise com uma situação fiscal frágil, e ao final deste ano teremos uma relação dívida/PIB próxima de 90%. Não é hora de tomar isto como um limite ao que é necessário. Gastemos agora o que for preciso, resistindo à pressão dos oportunistas, que são muitos, com o compromisso de sermos sérios no futuro. A equipe econômica tem a obrigação de reagir proporcionalmente à gravidade do problema sem se acovardar, escondendo-se das críticas de que gastamos demais. Se o fizemos, terá sido para evitar o pior.

A Bolsonaro resta curvar-se aos ensinamentos da ciência e abandonar a arrogância com a qual vem negando a necessidade do isolamento social. Ainda que ele seja contido em seus objetivos, influenciará os mais pobres e menos informados a violarem a quarentena, gerando o risco de uma aceleração da infecção, com consequências econômicas e sociais desastrosas.

*Ex-presidente do Banco Central e sócio da A.C. Pastore & Associados


Affonso Celso Pastore: Em defesa das agências reguladoras

Cabe às agências reguladoras independentes exercerem livremente o seu papel

Mais uma vez, o presidente da República demonstrou profundo desconhecimento sobre o papel e a importância das agências reguladoras ao reclamar do seu "excesso de independência". Nada mais errado!

Uma das condições fundamentais para elevar a produtividade total dos fatores e acelerar o crescimento econômico é investir pesadamente em infraestrutura, o que, diante de um governo sem recursos, somente pode ser feito pelo setor privado na forma de concessões. Quando o governo faz um leilão competitivo – no sentido que é aberto a empresas nacionais e estrangeiras, evitando a formação de um cartel –, e concede ao ganhador a construção e a administração de uma rodovia, uma ferrovia, um porto, um aeroporto, uma usina geradora de energia ou uma linha de transmissão, está também criando um “monopólio natural”. O concessionário daquele serviço passa a ser o único a oferecê-lo, e para ser tolhido na tentação de explorar seu “poder de mercado”, quer elevando as tarifas de forma a penalizar os usuários, quer negligenciando na qualidade do serviço prestado, tem de obedecer às regras e aos limites impostos por uma agência reguladora independente, que use critérios técnicos e econômicos para garantir a qualidade e o preço dos serviços.

No passado, na grande maioria dos países eram os governos que realizavam tais investimentos. Mas, com o tempo, o mundo foi aprendendo que – desde que bem regulado – o setor privado é muito mais eficiente do que o governo. Há extensas análises realizadas por economistas mostrando que as “falhas do governo” neste campo superam em muito as “falhas de mercado”, que no passado eram usadas como justificativa para que essa atividade fosse executada diretamente pelos governos (Megginson e Netter; From State to Market: A Survey of Empirical Studies on Privatization). Simultaneamente a teoria econômica foi evoluindo, criando o novo campo – a Teoria da Regulação – que atualmente é perfeitamente entendido por economistas, formuladores e executores de políticas públicas, e em cuja criação e desenvolvimento contou com a contribuição de Jan Tirole, que em 2014 ganhou o Prêmio Nobel por seus estudos nesse campo.

Até recentemente, o Brasil vinha cometendo inúmeros erros no campo da regulação. Cito apenas dois exemplos. No afã de “exercer a sua autoridade” de presidente da República, Dilma Rousseff alterou as “regras do jogo” quando este ainda estava em andamento, quer no caso da renovação de concessões na transmissão de energia elétrica – através da MP 579 –, quer na fixação dos critérios relativos ao cálculo da receita de pedágio nas rodovias, quando eliminou a cobrança de pedágio sobre o eixo suspenso dos caminhões.

Introduziu, com isso, um “risco regulatório” contra o qual o setor privado teria de se defender elevando as tarifas de forma a produzir uma taxa de retorno que o compensasse, ou baixando a qualidade do serviço prestado. Mas a presidente Dilma foi além e, para “proteger” os consumidores de energia elétrica e os usuários das estradas, colocou um limite superior às taxas de retorno admitidas nos leilões, que nada tinham de competitivos, compensando o custo incorrido pelo vencedor do leilão com um subsídio nos empréstimos do BNDES, que era o único financiador possível naquelas condições. Tal volume de interferências criou enorme risco, afugentando os investimentos.

Que implicações essas decisões tiveram sobre as agências reguladoras? Uma de suas tarefas seria observar os dois lados da moeda na fixação das tarifas, o dos usuários e dos fornecedores do serviço. Para garantir que a remuneração aos investimentos fosse a mais benéfica para os usuários, teriam de garantir a ausência de um risco regulatório, o que significa que teriam de ser as agências, e não o presidente da República, que determinaria tanto as regras nas renovações das concessões na transmissão de energia quanto o que os concessionários de rodovias deveriam cobrar no pedágio. Seguidos critérios técnicos, decididos por agências reguladoras independentes, tais erros não teriam sido cometidos.

O presidente da República pode ter enorme contribuição ao bom funcionamento da economia garantindo a independência das agências reguladoras, impedindo que pressões políticas contaminem as suas decisões. Cabe às agências independentes exercerem livremente o seu papel.

*Ex-presidente do Banco Central e sócio da A.C. Pastore & Associados.


Affonso Celso Pastore || Um mundo muito estranho

É bom reduzirmos nossa arrogância e admitirmos que a incerteza é grande

Quem até recentemente cultivou o hábito de atribuir às elevadas taxas de juros a culpa pelas baixas taxas de crescimento no Brasil, pode buscar a ajuda de um terapeuta para evitar que a perda do “security blanket” cause danos à sua estabilidade emocional. O motivo do comentário não é a decisão do Copom de baixar 50 pontos base na taxa Selic, mesmo porque com uma economia estagnada e sem risco de inflação não há dúvida de que outras reduções se seguirão. Meu argumento é que há causas importantes que, por um longo período, deverão manter baixas as taxas reais de juros no Brasil e no mundo. Com isso, o debate sobre o nosso crescimento, que ainda assim continuará baixo, terá que se concentrar nas suas verdadeiras causas, e não nos mitos, como o de que o objetivo único da política monetária seria favorecer os rentistas.

Há uma queda persistente das taxas de juros nos países avançados, que se manteve mesmo depois da recuperação à crise de 2008/2009, e isto se deve em grande parte à transição demográfica, com a queda da proporção da população mais jovem e o aumento da mais velha. Jovens têm que poupar mais durante a vida ativa para sustentar o consumo na velhice, e o aumento da poupança reduz a taxa neutra de juros. Dado que transição demográfica não é um episódio cíclico, o curso dos juros não é movimento transitório, e não há nada estranho que em países sem riscos, como Alemanha e Japão, títulos públicos paguem taxas nominais negativas de juros, e que nos EUA as taxas reais das treasuries de 10 anos estejam abaixo de 2% ao ano.

No Brasil, desde a adoção do regime de metas, a taxa real de juros nunca parou de cair. Em 2013 e 2014 as taxas das NTN-B com vencimento em 2030 e 2040 estavam entre 6% e 8%, e atualmente rendem 3,5% ou menos, e se caem as taxas de juros sem que a inflação se eleve é porque ocorreu uma queda da taxa real neutra de juros. A consolidação fiscal iniciada com a reforma da Previdência deve elevar as poupanças – públicas mais privadas –, mantendo baixa a taxa neutra, e como a recuperação da economia deve se manter lenta teremos juros reais baixos por um extenso período.

Porém, nesse mundo estranho há desafios. Por exemplo, como explicar que com a renda per capita estagnada em um nível 9% abaixo de seu pico, no primeiro trimestre de 2014, e sem perspectivas de crescimento, o Ibovespa cresceu e passou dos 100 mil pontos? A explicação é simples, o preço de uma ação é o valor presente descontado a taxa real de juros de menor risco, e mesmo com as expectativas de lucro deprimidas devido ao PIB estagnado, a taxa de desconto no cálculo daquele valor presente nunca foi tão baixa, e deverá manter-se baixa por um extenso período. É tentador, nestas circunstâncias, mudar a composição do portfólio de ativos comprando ações que, devido à manutenção da taxa de desconto em níveis muito baixos tem alta probabilidade de elevar-se acima de seu valor fundamental.

Em adição, há um estímulo enorme para que as empresas comecem a alterar a composição de seu capital reduzindo proporcionalmente a componente de equity, que é mais cara, elevando a dívida, que é mais barata. Como o ciclo econômico não foi abolido da face da Terra, no momento em que a economia entrar na fase cadente do ciclo pegará as empresas mais alavancadas, o que acentua a contração. O problema torna-se mais grave quando estes movimentos não ocorrem apenas no Brasil, mas também – e principalmente – nos países economicamente maduros.

A história nos ensina que empresas alavancadas e preços dos ativos acima de seu valor fundamental é uma combinação extremamente perigosa.

Nas últimas décadas já assistimos exemplos da crença de que vivíamos em um mundo “sem riscos”. Foi assim nos anos da “Grande Moderação”, quando se acreditava que a volatilidade do crescimento, da inflação e dos preços dos ativos havia desaparecido, mas aquele mundo supostamente sem riscos levou à crise de 2008/2009 com custos enormes para todos os países. Não acredito que desta vez tenhamos volatilidades baixas nos preços dos ativos e nem que os ciclos econômicos tenham desaparecido. Afinal, com as taxas de juros no zero bound, ou próximas dele, não há como os países avançados fazerem política monetária contra cíclica. Em um mundo com essas características é bom reduzirmos nossa arrogância e admitirmos que a incerteza é grande, para nos situarmos melhor neste emaranhado de sinais de difícil interpretação.

*Ex-presidente do Banco Central e sócio da A.C. Pastore & Associados