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RPD || Reportagem Especial: Afeto e cuidado aumentam diversidade de configurações de famílias
Modelo tradicional passou a ser ocupado por concepções distintas de organização familiar
Cleomar Almeida
Cenas típicas de comerciais de margarina, com pai, mãe e filhos ao redor de uma mesa de café da manhã, já não refletem mais a realidade das famílias no Brasil e no mundo, já que, ao longo dos anos, o modelo tradicional passou a ser substituído por uma diversidade de novas composições. Todas elas são baseadas, sobretudo, no afeto e no cuidado entre as pessoas.
Em 1995, por exemplo, o modelo tradicional correspondia a 58% das famílias brasileiras. Dez anos depois, passou para 42%, na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) que fez o levantamento mais recente. Por isso, formatos diferentes dele já são a maioria no Brasil.
Mulheres e homens sozinhos com filhos, pais divorciados que constituíram novas famílias e crianças adotadas por casais homoafetivos são algumas das configurações que se tornam cada vez mais comuns, apesar de ainda serem tratadas como tabu por parte da população.
Pai solo
O médico da Marinha do Brasil Tiago de Oliveira Costa, de 37 anos, é um dos que decidiram por uma configuração familiar diferente do modelo tradicional. Homossexual, ele é pai solo do bebê Henry, que nasceu em 17 de junho deste ano, depois de ser gestado no útero de barriga solidária de uma amiga dele.
O bebê nasceu depois de o material genético do médico ser inseminado artificialmente em óvulo de doadora anônima e transferido para o útero da amiga dele. Na modalidade de reprodução humana assistida escolhida por Costa, a gestante não é considerada mãe do bebê, e o pai genético torna-se o único responsável pelo recém-nascido logo após o parto. Por isso, o genitor é chamado de “pai solo”.
“Quando me entregaram o Henry no hospital, senti uma responsabilidade muito grande, porque passei a ser pai de uma criança. Foi uma mistura de sentimentos e medos, mas com felicidade única, em situação inédita e indescritível”, disse o médico, que mora em Brasília.
O psicanalista Alvarez Velloso, do Rio de Janeiro, explica que o novo sempre assusta porque desconstrói certezas. Foi assim com a entrada da mulher no mercado de trabalho e, mais tarde, com a lei do divórcio.
“Admitir que outros modelos de família são possíveis questiona a solidez da ‘minha’ concepção de família”, afirma. “É como se desvalorizasse. Mas varrê-los para baixo do tapete não é eficaz nem construtivo”, ressalta.
Alerta
A psicóloga e educadora sexual Ana Cristina Silva Fernandes, que atua em São Paulo, afirma que resumir a formação e a educação de crianças ao modelo que a família determina como adequado pode ser preocupante, a ponto de não prepará-las para respeitar outras configurações.
“Na prática, significa limitar a educação da criança à experiência daquela família, em vez de fazê-la pensar além de sua realidade”, explica Ana Cristina. “Isso não ajuda na construção de uma sociedade igualitária”, completa.
Apesar de ainda ser criança, Andressa Soares Rodrigues, de 9, já sabe lidar bem com a diversidade de configurações familiares na sociedade. Ela é filha biológica da empresária Rosane Portela Escórcio, de 35, e da advogada Cíntia Furquim, que recorreram ao sêmen de um doador anônimo para fertilização in vitro. A família mora em São Paulo.
Educada para o respeito à diversidade e acostumada à curiosidade alheia, a menina sempre se adianta: “Olha, eu não tenho pai. Ele não morreu. Tenho duas mães mesmo”, repete, sempre que é questionada sobre a ausência da figura paterna no seu dia a dia.
As mães de Andressa afirmam que nunca tiveram uma conversa formal sobre homossexualidade com a filha porque não consideram necessário neste momento, já que a menina nasceu e cresceu nesse contexto.
A terapeuta de família Denise Rodrigues Almeida ressalta a importância de a questão ser “tratada com naturalidade”. “De fato, o que a criança não pergunta provavelmente considera natural”, afirma a especialista.
Ela defende que os pais estejam preparados para tirar as dúvidas à medida que surgirem e recomenda construir as respostas junto dos filhos – o que vale para todos, não importa a configuração familiar.
Na Justiça
Nesse contexto, cada vez mais arranjos não tradicionais são legitimados pela Justiça, a exemplo da paternidade socioafetiva, que vai muito além da figura do padrasto. Nos tribunais, é crescente a visão de que os laços de afeto são mais importantes que os genéticos.
No entanto, ainda há decisões judiciais que não acompanham as transformações sociais, abertas para novas configurações familiares, como viveu o médico Tiago Costa, pai de Henry.
Ele ainda luta na Justiça federal para reverter decisão da Marinha que negou pedido para concessão de licença-paternidade (20 dias) nos moldes da licença-maternidade (180 dias). O caso dele está na 9ª Vara da Seção Judiciária do Distrito Federal (DF).
O médico diz que sua luta deve espelhar outros pais na mesma situação. “Estou brigando pelo filho de outros praças e oficiais que perderam a mulher ou companheiro e não têm com quem deixar a criança. A família monoparental é realidade. O mundo está em processo evolutivo, e a gente tem que acompanhar isso”, ressalta.
Não abordar gênero e sexualidade é equívoco, diz psicopedagoga
A psicopedagoga Quézia Bombonatto, conselheira da Associação Brasileira de Psicopedagogia, diz que as famílias temem que abordar qualquer aspecto de gênero e sexualidade (como o amor entre dois homens ou duas mulheres) traga uma erotização precoce. Segundo ela, no entanto, essa postura é um equívoco.
“Não é o fato de esclarecer algo que o transforma em uma ameaça”, diz Quézia “A escola apresenta as configurações existentes, a família orienta e compartilha suas crenças, mas a criança vai construir autonomia para fazer as próprias escolhas”, acrescenta.
Até a década de 1960, os papéis de gênero eram bastante definidos na organização familiar tradicional. O homem, provedor, trabalhava fora e não costumava se envolver em “assuntos domésticos”, como a criação dos filhos. Essa era a principal tarefa da mulher, a “rainha do lar”, que dava conta da faxina e da rotina das crianças. Os tempos são outros.
Em 2015, segundo a Pnad, as mulheres chefiavam 40% das famílias brasileiras. Por outro lado, se tem ganhado força a luta por equiparação de gêneros no mercado de trabalho tem se equiparado, os cuidados com a criança no dia a dia ainda passam longe de serem vistos como responsabilidade de todos.
Em regra, a mãe é quem se responsabiliza pelos cuidados com a criança, em primeiro lugar. Depois, essa tarefa é repassada a creche ou escola. Os pais aparecem em diferentes pesquisas somente na terceira posição.
Além disso, deixar as crianças com os avós é uma opção vista como menos estressante para os pais, segundo cientistas da Universidade de Melbourne (Austrália). Além de essa decisão ser mais barata e flexível que uma creche ou uma babá, os pais se sentem mais seguros porque compartilham a parte emocional com cuidadores familiares.
“Nem sempre os avós ‘estragam’ as crianças”, diz a psicóloga Vera Zimmermann, coordenadora do Centro de Referência da Infância e Adolescência da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). “Eles podem ter disponibilidade para exercer a chamada ‘função paterna’, impondo regras e limites.”
A responsabilidade pela educação dos filhos não pode ser terceirizada, segundo especialistas. “Colocar uma criança no mundo não transforma os genitores em pais”, afirma o psicanalista Paulo Roberto Ceccarelli, de São Paulo. “Do ponto de vista psíquico, as famílias são sempre construídas e os filhos, sempre adotivos.”
Saiba mais sobre o autor
Cleomar Almeida é graduado em jornalismo, produziu conteúdo para Folha de S. Paulo, El País, Estadão e Revista Ensino Superior, como colaborador, além de ter sido repórter e colunista do O Popular (Goiânia). Recebeu menção honrosa do 34° Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos e venceu prêmios de jornalismo de instituições como TRT, OAB, Detran e UFG. Atualmente, é coordenador de publicações da FAP.