Administração pública

O ex-presidente Lula (PT) durante live na terça-feira (25) - Reprodução

Nas entrelinhas: Dois meses para evitar um colapso político-administrativo

Luiz Carlos Azedo | Nas entrelinhas | Correio Braziliense

Que ninguém se engane. A primeira tarefa da transição iniciada, ontem, sob a coordenação do vice-presidente eleito Geraldo Alckmin é evitar um colapso político-administrativo do governo federal, em razão da ruptura de políticas em curso, uma vez que a eleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva significa a retomada de um projeto nacional centrado em três grandes eixos: a construção de um Estado democrático ampliado, permeável à participação da sociedade; a retomada do desenvolvimento, em novas condições de sustentabilidade, numa economia globalizada; e o combate às desigualdades, com objetivo de erradicar a miséria e promover a inclusão social. O governo Bolsonaro tinha metas diametralmente opostas.

Qual é a base real para que o colapso não aconteça? Primeiro, o diálogo entre quem sai e quem entra, para que se estabeleçam níveis básicos de cooperação. De certa forma, o encontro entre o presidente Jair Bolsonaro (PL), depois de seu apelo para que os caminhoneiros liberassem as estradas, e Alckmin foi auspicioso, não importa o teor da conversa.

Com a derrota eleitoral, o governo Bolsonaro acabou, mas seu mandato ainda não. É preciso um mínimo de entendimento, mesmo se sabendo que não haverá diálogo entre o atual presidente e o sucessor por absoluta incompatibilidade de gênios, como diria o falecido compositor Aldir Blanc. Todos os sinais de Bolsonaro são de que não pretende passar a faixa para Lula no Palácio do Planalto. Do ponto de vista institucional, é apenas um gesto simbólico. O petista será diplomado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e empossado pelo Congresso.

Instituições

Segundo, o colapso pode ser evitado porque as funções essenciais do Estado são asseguradas pelos órgãos encarregados de normatizar, arrecadar e de coerção, os quais não seguem apenas a orientação política do presidente da República, mas regras estabelecidas pelo Congresso, que são dirimidas, em casos litigiosos, pelo Supremo Tribunal Federal (STF). O processo eleitoral, no decorrer de um ano muito turbulento, confirmou o que já se dizia antes: temos instituições fortes, que resistiram aos assédios dos setores que defendem um regime autoritário.

Nas áreas essenciais para o funcionamento do governo, uma burocracia estável e bem preparada opera a administração pública sob o manto da ética e da responsabilidade. As exceções já são conhecidas e seus protagonistas estão identificados. Não têm força para obstruir a transição, a ponto de pôr em colapso essas atividades essenciais, entre as quais a defesa da ordem.

Terceiro, o fato de que existe uma classe política cuja capacidade de sobrevivência e adaptação às circunstâncias foi mais uma vez comprovada nas eleições. É inegável o fortalecimento dos partidos do Centrão, o que exigirá negociações duras em relação a temas sensíveis do Orçamento. Onde há política, há esperança de soluções negociadas e positivas.

Segundo Alckmin, haverá continuidade, planejamento e transparência na transição, o que significa acesso da imprensa às negociações e acompanhamento por parte da opinião pública. O xis da questão é encontrar um ponto de equilíbrio entre a responsabilidade fiscal e as demandas sociais mais urgentes, entre as quais a manutenção do Auxílio Brasil no valor de R$ 600, que não está previsto no Orçamento de 2023.

Sem trégua

Lula não terá a tradicional trégua de 100 dias para se instalar no Palácio do Planalto e começar a governar. Foi eleito por estreita margem de votos, sua vitória continua sendo contestada por boa parte dos eleitores de Bolsonaro, uns porque são ideologicamente de extrema direita, outros porque são antipetistas roxos. A reversão das expectativas que criou na campanha eleitoral, junto àqueles que mais necessitam do apoio do governo federal, pode mudar rapidamente a correlação de forças políticas, transformando o sentimento “era feliz e não sabia” que o trouxe volta ao poder num bumerangue.

Qual o antídoto contra isso? Não é uma política populista, porque essa receita foi praticamente esgotada por Bolsonaro durante a campanha eleitoral, na qual gastou-se muito mais do que se deveria. O verdadeiro antídoto é a construção de um governo de ampla coalizão democrática, tarefa pessoal e intransferível de Lula. Os primeiros sinais de que o novo governo terá esse caráter estão visíveis: a composição ampla da equipe de transição, as negociações com os caciques do Centrão, a valorização da aliança com os partidos e a não cooptação de seus integrantes para compor o novo governo.

Lula é um líder político experiente, com capacidade de negociação. Sabe perfeitamente quais foram os erros que cometeu no poder. A lógica é não repeti-los. A cúpula do PT, encabeçada por Gleisi Hoffmann e Aloizio Mercadante na transição, também tem experiência política e administrativa. Sabe que não vale a pena cotovelar os aliados para ocupar todos os espaços no futuro governo, pois já têm a Presidência e o controle das posições mais estratégicas e importantes.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-dois-meses-para-evitar-um-colapso-politico-administrativo/

Foto: Alan Santos/PR l Agência O Globo

Revista online | Bolsonaro nos Estados Unidos: a normalização diplomática como narrativa de campanha

Guilherme Casarões*, especial para a revista Política Democrática online (45ª edição: julho/2022)  

A menos de cem dias das eleições presidenciais, Jair Bolsonaro está acuado. Diante da real perspectiva de derrota para seu arquirrival, o ex-presidente Lula da Silva, o atual mandatário vem esgotando o repertório populista. Ataca as instituições democráticas, acirra a crise dos combustíveis ao pedir uma investigação contra a Petrobrás, abusa dos recursos econômicos para diminuir sua rejeição e fidelizar ainda mais o Centrão. Ao sair do governo, deixará terra arrasada. 

Mas Bolsonaro, ao que tudo indica, não aceitará entregar a presidência. Quando as manobras popularescas não funcionam, recorre, amparado por seu entorno militar, à bravata golpista da fraude eleitoral, tão previsível quanto perigosa. Isso tem produzido curioso efeito político: enquanto o presidente radicaliza sua retórica dentro do país, sua política externa está cada vez mais dócil. 

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Sabe-se, no Planalto, que a concretização de qualquer plano de subversão da democracia requer algum amparo externo – ou, ao menos, a conivência silenciosa da comunidade internacional. A viagem de Bolsonaro à Cúpula das Américas, ocorrida no início de junho, deve, portanto, ser compreendida num contexto dos esforços de normalização diplomática do Brasil. 

O auge do isolamento brasileiro, na figura do presidente, foi a passagem pela reunião do G20, em Roma, no final do ano passado, onde não conduziu conversas bilaterais relevantes e chegou a ficar de fora de uma das fotos oficiais. Desde então, pressionado pela franca popularidade de Lula nos círculos internacionais, fez um giro pelas nações do Golfo árabe, visitou os vizinhos Guiana e Suriname, além da controversa viagem a Rússia e Hungria às vésperas da invasão da Ucrânia

Em cada um dos destinos internacionais, Bolsonaro buscou reforçar os dois pilares de sua governabilidade. Aos grupos de interesses que o sustentam, notadamente o agronegócio e as Forças Armadas, negociou fertilizantes e cooperação militar em Moscou, além de investimentos em carne halal e no setor aeronáutico em Dubai. Entre seus apoiadores, buscou selar a impressão de que é um presidente respeitado no exterior, contrapondo-se às críticas feitas pela oposição e pela imprensa, nacional e estrangeira. 

A participação do presidente brasileiro na Cúpula das Américas, onde se reuniu bilateralmente com seu contraparte americano pela primeira vez, obedeceu à mesma lógica. Ao insistir, em conversa com o presidente Joe Biden, que o governo brasileiro preserva a Amazônia e zela pelo meio ambiente, Bolsonaro quis mitigar as apreensões da administração democrata e, ao mesmo tempo, corroborar o (frágil) discurso de responsabilidade ambiental que o agro e os militares buscam defender no âmbito internacional. 

Na sequência, ao sugerir a existência de vulnerabilidades no sistema eleitoral que poderão impedir a realização de eleições limpas e seguras em outubro, o presidente reafirmou o papel de tutela das Forças Armadas sobre o sufrágio, na contramão dos princípios constitucionais e da separação de poderes. Ironicamente, confessou a Biden que poderá seguir o script de subversão eleitoral de Donald Trump, candidato derrotado em 2020 – e cujo chamado à invasão do Capitólio provocou a maior crise da democracia americana em mais de um século. 

Foto: Alan Santos/PR l Agência O Globo
Foto: Alan Santos/PR l Agência O Globo
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Foto:  Jim Watson / AFP
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Em reunião reservada com Biden, num misto de desespero e autoconfiança, Bolsonaro chegou a pedir ajuda norte-americana para reeleger-se, conforme relato da Agência Bloomberg, argumentando que Lula representaria um risco para os interesses de Washington. Mesmo tendo o pedido ignorado a portas fechadas, o presidente brasileiro conseguiu o que queria: a imagem pública de que, a despeito da animosidade que marcou o início do relacionamento entre os dois presidentes, Bolsonaro havia conquistado o respeito do democrata. 

O maior trunfo da viagem, contudo, esteve na agenda posterior à Cúpula das Américas. Bolsonaro cruzou o país para fazer, em Orlando, uma de suas tradicionais “motociatas”, sob o pretexto de inaugurar um consulado brasileiro na cidade. O evento, organizado por brasileiros que vivem na Flórida, reuniu representantes de dois outros segmentos fundamentais ao bolsonarismo – lideranças evangélicas e militantes pró-armas. Não surpreende, portanto, que a foto tenha ficado impactante, a despeito do natural viés de seleção. 

Ao fim de mais um compromisso internacional em busca de normalização diplomática, Bolsonaro adensou ainda mais sua narrativa de campanha. O que especialistas criticam como uma política externa errática e inócua está sendo promovido, junto aos apoiadores, como um pragmatismo equidistante, seja entre Israel e árabes, Rússia e Ucrânia, e até mesmo entre Biden e Trump. De quebra, a estratégia da “motociata” além-fronteiras reforça a oposição entre os institutos de pesquisa, que dão vantagem a Lula, e o que bolsonaristas orgulhosamente chamam de “Datapovo”. 

Mesmo com pouca aderência entre a maioria das chancelarias estrangeiras, a narrativa de Bolsonaro, da qual a política externa é parte indissociável, repercute positivamente nas redes sociais e nos grupos de WhatsApp. Por linhas tortas, a moderação diplomática é capaz de reinserir o Brasil no tabuleiro internacional, independentemente de quem assuma a presidência a partir de 2023. Mas, para isso, a democracia brasileira deverá ser resguardada – e esse será nosso dever até lá. 

Sobre a autor

*Guilherme Casarões é cientista político e professor da Fundação Getulio Vargas (FGV EAESP).

** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de julho de 2022 (45ª edição), editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não refletem, necessariamente, as opiniões da publicação.

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