A Decodificadora

Evandro Milet: A Decodificadora da vida e a revolucionária edição genética

Estamos no limiar de uma nova era, promissora por um lado e extremamente perigosa por outro

Evandro Milet / A Gazeta

Há pouco mais de um século foram descobertos três núcleos fundamentais da nossa existência: o átomo, o bit e o gene. A era do átomo, a partir de Einstein, na primeira metade do século XX, nos levou à bomba atômica e à energia nuclear, aos transistores e às naves espaciais, aos lasers e ao radar

Na segunda metade do século XX começou a era da tecnologia da informação, baseada na ideia de que toda a informação poderia ser transformada em números binários. Com isso desenvolveu-se o microchip, o computador e a internet que fizeram nascer as revoluções digitais.

Chegou a vez do gene com a revolução das ciências da vida. “A Decodificadora”, biografia de Jeniffer Doudna, vencedora do Prêmio Nobel de química de 2020 (com Emmanuelle Charpentier), escrita por Walter Isaacson, traça não só a vida da pesquisadora, mas todo o ambiente da biotecnologia e da revolucionária edição genética, que começa a resolver problemas de doenças e teve papel fundamental na revolução das vacinas para covid-19. E vai além, nos dando uma esclarecedora visão de como funciona o avanço da ciência, nas universidades e empresas e entre grupos de pesquisa com suas descobertas, mas também conflitos, disputas de patentes, competição e ciúmes.

Durante grande parte do século XX, a maioria dos medicamentos se baseava em avanços da química. O surgimento da empresa Genentech, em 1976, mudou o foco da comercialização para o ramo da biotecnologia. Os novos tratamentos passaram a envolver a manipulação de células vivas, muitas vezes por meio do uso da engenharia genética.

Ao longo de bilhões de anos, as bactérias desenvolveram um jeito totalmente esquisito e impressionante de se proteger contra os vírus. E esse sistema é adaptável: cada vez que um novo vírus surge, ela aprende a reconhecê-lo e a derrotá-lo.

Doudna e equipe conseguiram desenvolver a ferramenta básica CRISPR, para replicar esse processo e permitir a edição genética que sinaliza com a possibilidade de eliminar e prevenir doenças antes incuráveis. Com essa técnica desenvolveram um meio de reescrever o código da vida. Uma alteração genética com repercussão para as gerações futuras.

A tecnologia de utilização de CRISPR levanta alguns problemas: a possibilidade de programar características de seres humanos com todas as implicações éticas e o risco de utilização de mudanças genéticas para criar organismos para guerra. Tratar doenças com edição genética é aceitável pela comunidade científica, porém há questões complicadas como a pergunta: “Por que não posso dar a meu filho benefícios genéticos que outra criança tem naturalmente?”

O Departamento de Defesa nos EUA já patrocina pesquisas para estudar como criar soldados geneticamente melhorados. Em princípio, a tecnologia poderia fazer “supermelhoramentos”, isto é, dar aos humanos habilidades como enxergar luz infravermelha ou ouvir em altas frequências. Poderia ser criada uma nova raça de atletas, com ossos maiores e músculos mais fortes.

Mas, mesmo que concordemos em livrar a humanidade da esquizofrenia e de doenças parecidas, deveríamos considerar se haveria algum custo para a sociedade ou até mesmo para a civilização. Van Gogh tinha esquizofrenia ou transtorno bipolar, assim como o matemático John Nash, Ernest Hemingway, Francis Ford Copolla, Gustav Mahler, Franz Schubert e Edgar Allan Poe. “Queremos viver em um mundo em que não há Van Goghs?”, pergunta o autor do livro.

Enfim, estamos no limiar de uma nova era, promissora por um lado e extremamente perigosa por outro.

Nos avanços passo-a-passo da biotecnologia, no trabalho dedicado e de muita cooperação científica, expostos em detalhes no livro, fica claro o ridículo das teorias que imaginam uma grande conspiração na indústria farmacêutica para esconder a suposta eficácia de remédios baratos em inexistentes tratamentos precoces. Teorias suportadas por profissionais que não conseguem distinguir o trabalho de cientistas do trabalho de médicos. Muita coisa rasteira que será superada pela ciência, cujo exemplo neste livro é definitivo.

Fonte: A Gazeta
https://www.agazeta.com.br/colunas/evandro-milet/a-decodificadora-da-vida-e-a-revolucionaria-edicao-genetica-1121


Elio Gaspari: Jennifer Doudna, a Decodificadora

Livro é uma aula de ciência, uma viagem aos segredos da vida e o retrato da carreira de uma cientista encantada com a natureza.

Está nas livrarias “A Decodificadora”, de Walter Isaacson (foto). Num tempo de Covid, Bolsonaro, cloroquina e “gripezinha”, é uma vacina para a alma. Conta a vida da cientista americana Jennifer Doudna, prêmio Nobel de Química do ano passado.

Quando parece que o mundo vai acabar, algo de bom acontece. Em junho de 1940, os alemães haviam entrado em Paris, mas a americana Sylvia Beach resolveu reabrir sua livraria Shakespeare & Co. Vendeu apenas um exemplar de “...E o Vento Levou”. Dias depois, Hitler visitou a cidade, mas alguém estava lendo uma boa história.

Jennifer Doudna pesquisou um método de edição de genomas chamado CRISPR. Em português, “Repetições Palindrômicas Curtas Agrupadas e Regularmente Interespaçadas”. Felizmente, mesmo com um tema agreste, Isaacson é capaz de lidar com essas coisas de forma compreensível. Com sucesso, já contou a vida de Steve Jobs e Albert Einstein. Grosseiramente, o CRISPR é um método de “copia e cola” de sequências genéticas. Graças a ele, criaram-se vacinas contra a Covid em menos de um ano.

“A Decodificadora” é uma aula de ciência, uma viagem aos segredos da vida e o retrato da carreira de uma cientista encantada com a natureza. Quando criança, no Havaí, ela viu o mistério das plantas “não me toques”, aquelas que abrem e fecham suas folhas ao passar dos dedos.

Num mundo em que um presidente de Harvard disse que mulheres não têm aptidão para a ciência, Doudna ralou, mas mostrou o tamanho da bobagem. (O economista Larry Summers perdeu o emprego.)

Isaacson publicou sua biografia de Steve Jobs quando todo mundo estava familiarizado com os computadores. “A Decodificadora” apareceu no meio de uma pandemia e explica o mundo das vacinas, mas ainda parece difícil entender um universo com DNA, RNA de interferência ou as bactérias que se defendem de vírus. Mesmo assim, algum esforço ajuda as pessoas a se proteger de algo pior: a superstição.

No dia 12 de março do ano passado, Jennifer Doudna ia buscar o filho num torneio de robótica, quando recebeu uma mensagem avisando que o evento havia sido cancelado e todos os jovens deviam voltar para casa. Era o lockdown.

Naquele mesmo dia, o presidente Jair Bolsonaro dizia, no Palácio da Alvorada:

— Eu acho... Eu não sou médico, não sou infectologista. Do que eu vi até o momento, outras gripes mataram mais do que essa. No meu entender, muito mais fantasia, a questão do coronavírus, que não é isso tudo que a grande mídia propala ou propaga pelo mundo todo.

Quando Bolsonaro expunha suas crenças, na Alemanha, o casal de médicos Ugur Sahin e Ozlem Türeci firmou uma parceria com a Pfizer para produzir uma vacina que transporta informações genéticas, o tal RNA Mensageiro. A dupla sabia que o Coronavírus resultaria em algo muito diferente das “outras gripes”. Sua vacina já foi aplicada em cerca de 20 milhões de pessoas. Em novembro, a empresa fundada pelos dois valia US$ 21 bilhões. Tornaram-se uma das famílias mais ricas do país e continuam no mesmo apartamento. O casal contará sua história num livro que sairá no fim do ano.

(O Ministério da Saúde brasileiro só comprou vacinas da Pfizer na semana passada.)

Boa ideia

Corre no Conselho da Justiça Federal do STJ uma ideia que parece boa, simples e barata. É a criação de Varas de Inquérito.

Sem precisar criar um só cargo, separam-se nas ações penais os juízes que cuidam de inquéritos e aqueles que prolatam sentenças. Na prática, se o Sergio Moro estivesse numa vara de inquérito, poderia fazer tudo o que fez, mas quando chegasse a hora da ação penal, o caso iria para outro juiz.

Essa mudança pode ser feita sem grandes sobressaltos e sem novas despesas. Tem a vantagem de impedir o surgimento de novas repúblicas de Curitiba ou, pelo menos, tornar mais difícil o seu aparecimento.

Santos Cruz

Para quem sonha com a possibilidade de trazer o general da reserva Carlos Alberto Santos Cruz para uma disputa eleitoral, vale a pena lembrar que lhe foi oferecida a candidatura a prefeito do Rio, e ele recusou.

General em armação política é coisa que não acaba bem. O vice-presidente Hamilton Mourão não é metade do que lhe disseram que seria.

Há cerca de meio século, um pedaço da oposição transformou o general Euler Bentes Monteiro em candidato na eleição (indireta) de 1978.

Euler era um oficial de vitrine, rigoroso, cordial e bom administrador. Perdeu, foi para seu sítio e morreu em 2002. A oposição que havia cortejado estava no poder e mal se lembrou dele. Seu obituário foi noticiado abaixo do registro da morte da inesquecível porta-bandeira Mocinha, da Mangueira.

Bolsonaro x Lula

Quando Jair Bolsonaro disse, com toda naturalidade, que Lula ficará inelegível, mostrou que acredita num salto triplo carpado, partindo das virtudes contorcionistas do ministro Nunes Marques.

Se ele pular logo, ficará feio. Se demorar, poderá ser tarde.

Datafolha no Planalto

Até a divulgação da última pesquisa do Datafolha, Bolsonaro e seu pelotão palaciano estavam certos de que o combate ao isolamento aumentava seu capital eleitoral.

Talvez a valentia tivesse algum valor, mas as estatísticas da pandemia abalaram essa crença.

Com 79% dos entrevistados achando que a peste esta fora de controle, ir para um segundo turno com um passivo de mais de 300 mil mortos deixou de ser boa ideia.

Bolsonaro e o sítio

Bolsonaro flerta com o Apocalipse desde o início da pandemia. Anteviu saques e desordens que não aconteceram. Os saques que ocorreram em alguns estados, como no Rio do governador Witzel, não miravam em supermercados e sim na bolsa da Viúva, afanando verbas de hospitais de campanha.

No caso das desordens, basta olhar em volta: quatro ministros da Saúde, as vacinas de Manaus foram para Macapá, e o Exército recebeu ordens para fabricar cloroquina.

Tudo teria sido melhor se o capitão tivesse olhado de outro jeito para a pandemia, mas a vida é como ela é.

No seu último surto apocalíptico, Bolsonaro tirou da gaveta o absurdo fantasma estado de sítio.

As desordens que não aconteceram podem ocorrer. Num delírio de cloroquina pode-se imaginar alguns milicianos atacando lojas ou depredando ônibus.

Em 1981, procurou-se atribuir a uma organização terrorista de esquerda que não existia mais a bomba do Riocentro, que explodiu no colo de um sargento, dentro do carro de um capitão lotado no DOI.

Anos antes, um maluco que via discos voadores juntou-se a policiais, assaltou um banco e botou bombas em São Paulo. Preso, contou que recebia ordens de poderosos.

Isolamento social

Jair Bolsonaro pode ter suas razões ao achar que o isolamento social abala a economia.

Com certeza, não há economia que ande direito se o presidente detona em menos de um mês os presidentes da Petrobras e do Banco do Brasil.

Isso para não se falar na desidratação dos frentistas do Posto Ipiranga. Pelo menos 15 já foram embora.