400 MIL MORTOS

Ricardo Noblat: Quatrocentos mil cadáveres revelam parte do que somos

Doze meses e 401 mil mortos depois do início da pandemia no Brasil, passou da hora de refletir por que nos comportamos de maneira tão conformada e indiferente diante do maior cataclismo que se abateu sobre o país em pouco mais de um século. Porque é disso que se trata e que, aparentemente, nos recusamos a ver.

Um em cada cinco óbitos notificados desde março de 2020 se deve à doença. Foram 76 dias para ir de 200 mil a 300 mil mortos, e apenas 36 dias para chegar aos 400 mil. O Brasil é o segundo país do mundo com maior número de mortos. Em uma lista de 52, é o 22º em doses de vacinas aplicadas a cada 100 habitantes.

O governo do presidente Jair  Bolsonaro, e dos militares paraquedistas que ocupam cargos estratégicos, tem a maior parcela de culpa por tantas mortes, só abaixo da do vírus letal. Deu passe livre à Covid-19 para que ela circulasse sem barreiras, matando os que estivessem marcados para morrer (e daí?).

Bolsonaro estava cansado de saber que não seria uma gripezinha. Sabia, porque lhe disseram, que se nada fosse feito, em dezembro último o número de mortos bateria a casa dos 200 mil (mas ele não é coveiro, não é mesmo?). E que sem isolamento social e vacinas, a mortandade só faria aumentar, e seguirá aumentando.

Não foi por engano, incúria ou ignorância, pois, que ele jogou suas fichas na arriscada aposta de que a pandemia seria contida por ela mesmo quando 70% da população fossem infectadas. Entre salvar os mais vulneráveis ou salvar o seu governo ameaçado pela recessão econômica, preferiu a última e falsa opção.

Pense se Bolsonaro tivesse feito o contrário. Se aos primeiros sinais da tragédia, ocupasse uma cadeia nacional de rádio e de televisão para dizer algo parecido com: a partir deste momento, só vidas importam. Diferenças políticas e ideológicas ficam suspensas. Convoco todos os brasileiros a lutar contra a morte.

E, no comando de um gabinete de crise formado pelos maiores especialistas do país no assunto, se pusesse à frente de todas as ações contra a doença sem poupar recursos, viajando pelo país a conferir o resultado das medidas adotadas, e tendo uma palavra de conforto a oferecer. Quem o venceria no ano que vem?

Mas, convenhamos, Bolsonaro não seria o que de fato é, um homem rude, mau, oportunista, interessado unicamente no próprio destino e no destino de sua prole, se tivesse agido de maneira diferente. Muito menos teria sido eleito se não fosse um espelho da parcela expressiva dos brasileiros que votaram nele.

Bolsonaro passará, e quanto mais rápido melhor para todos. Parte do que somos… Infelizmente não.

Oposição torce para que Bolsonaro siga desafiando a morte

Assim é se lhe parece

Ministro que toma vacina escondido. Ministro que acusa o principal parceiro comercial do país de exportar vírus. Presidente que se recusa a usar máscara, promove aglomerações, acusa governadores de roubar o dinheiro da saúde, e não se vacina…

Tudo isso será esquecido ao confirmarem-se as previsões dos sábios que raramente acertam de que a economia, no ano que vem, dará sinais de recuperação e de que a Covid-19 estará sob controle, incorporada de vez ao calendário das doenças infecciosas?

Bolsonaro e seus dependentes desejam que sim, essa seria a única maneira de permanecerem mais quatro anos no poder. Presidente da República, aqui, sempre se reelege. Os que querem vê-los pelas costas admitem em voz baixa que isso pode acontecer.

Contam para que não aconteça com os inevitáveis erros que Bolsonaro cometerá até lá. É da natureza dele arriscar-se em saltos mortais de grandes alturas sem rede, não dar ouvidos a auxiliares que dizem o contrário do que ele pensa, e só confiar nos filhos.

Por mais que procure mostrar-se simpático, próximo dos seus devotos e apareça sempre sorrindo, é um homem triste, angustiado, que enfrenta a solidão do poder com crescentes dificuldades. Uma pessoa assim está sujeita a muitos erros.

Esta semana, outra vez, ministros preocupados com a situação de Bolsonaro voltaram a pressioná-lo para que mude de comportamento, seja mais prudente, se exponha menos e dê prioridade à compra de vacinas. Ele respondeu que sabe o que faz.

Fonte:

Veja

https://veja.abril.com.br/blog/noblat/quatrocentos-mil-cadaveres-revelam-parte-do-que-somos/


Murillo de Aragão: Descartes e a reforma tributária

A reforma tributária deverá ganhar novo impulso no Congresso, já que está prevista para os próximos dias a apresentação de um relatório sobre o tema. O que devemos esperar desse movimento? Podemos ter sérias expectativas sobre a aprovação da proposta?

Em primeiro lugar, o consenso em torno da questão está longe de ser alcançado. Existem muitos atores relevantes com posições divergentes. Por exemplo, o setor de serviços não concorda com a taxação proposta. O governo federal não quer perder a receita obtida por contribuições não partilhadas com estados e municípios.

Estados que ganham com o atual ICMS não querem perder com o novo imposto sobre valor agregado (IVA). Governadores querem compensar as perdas decorrentes das eventuais mudanças, mas a União não quer bancar essas perdas.

Burocratas não querem uma radical simplificação do sistema, o que acabaria esvaziando o papel de fiscais, auditores etc. Como disse um anônimo: a burocracia aumenta para atender aos interesses do aumento da burocracia.

O setor empresarial está dividido. Alguns temem perder isenções e renúncias; outros querem reduzir a burocracia infernal. A equipe econômica quer implementar uma reforma por fases, começando pelo IVA e chegando ao IPI e ao imposto de renda de pessoas jurídicas. O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), também defende que a reforma seja feita por partes.

“Falta consciência social sobre a necessidade de acabar com benefícios e injustiças do nosso sistema”

Como resolver o imbróglio? Vamos pensar em Descartes. O primeiro ponto é que tudo deve ser questionado e não deve existir nenhuma vaca sagrada no meio do caminho. O segundo ponto é dividir o problema em tantas parcelas quanto for possível, para facilitar a sua resolução.

Prosseguindo com Descartes, deve-se começar tratando dos itens mais fáceis e pouco a pouco ir avançando sobre o que é mais complexo. Importante também examinar os pontos de consenso, caso da excessiva burocracia do sistema. Simplificá-­la é um excepcional começo. Por fim, é preciso fazer enumerações completas e revisões gerais, buscando a certeza de não ter omitido nenhum aspecto do problema.

Voltando às perguntas iniciais, vou tentar respondê-las. Quanto às expectativas em torno do sucesso de uma reforma tributária, elas devem ser moderadas. Até mesmo por não sabermos o que será proposto, nem como será, nem em que tempo. Nem por isso devemos deixar de tentar estimulá-la.

Com relação a sua aprovação, devemos considerar que o tema continuará a ser debatido por algum tempo. Ainda falta conscientização social sobre a importância da reforma, ou seja, da necessidade de acabar com benefícios e injustiças existentes em nosso sistema tributário. Nesse sentido, caberia ao governo começar a reforma tributária dentro do próprio sistema — a reforma da porta para dentro —, a fim de dar o bom exemplo.

Publicado em VEJA de 5 de maio de 2021, edição nº 2736

Fonte:

Veja

https://veja.abril.com.br/blog/murillo-de-aragao/descartes-e-a-reforma-tributaria/


Fernando Abrucio: Estratégias para não repetir o maior erro da eleição de 2018

As principais políticas públicas do país estão no caminho errado. O desempenho do Ministério da Saúde no combate à covid-19 foi um dos piores do mundo. A área ambiental foi destruída pelo antiministro e, enquanto ele continuar no cargo, o mundo não vai acreditar nas promessas feitas pelo governo brasileiro. O MEC abandonou os governos subnacionais e as escolas na pandemia, o que vai aumentar a desigualdade entre os alunos, no curto e no longo prazo. A lista de equívocos é longa e assustadora, e sua origem inicial está no processo eleitoral de 2018. Como evitar a repetição desse erro é uma das tarefas fundamentais para sair das trevas atuais.

Várias razões explicam as origens desse erro eleitoral, mas uma delas foi estratégica: a campanha foi muito curta e, sobretudo, houve poucos debates públicos com os principais candidatos, o que ficou ainda pior por causa da ausência do vencedor da eleição na controvérsia direta contra seus oponentes. Em defesa do presidente eleito pode-se dizer que ele sofrera um terrível atentado, o que é verdade. Mas no segundo turno Bolsonaro foi a inúmeros eventos públicos e deu entrevistas ao “jornalismo-amigo”, de modo que poderia ter ido aos debates contra seu adversário, mas preferiu fugir.

Bolsonaro não foi aos debates porque estava despreparado para ocupar a Presidência da República. Há três provas cabais disso, vinculadas ao seu plano de governo, às qualidades técnicas e políticas dos apoiadores mais próximos e do próprio futuro presidente, bem como à visão de mundo mais geral do bolsonarismo, tanto em termos de projeção de futuro para o país, como também em seu comportamento político.

Em primeiro lugar, o programa de governo foi o pior feito por um presidente eleito desde a retomada da democracia. Reduzido no tamanho e com pouquíssimo aprofundamento das ideias propostas, o programa de governo bolsonarista espalhava slogans e mitos sem a devida comprovação. Com erros básicos no uso dos dados, que nem mesmo alunos do primeiro ano de faculdade cometeriam, o projeto bolsonarista era claramente anticientífico, pois as principais evidências em educação, meio ambiente, segurança pública e saúde foram completamente ignoradas.

Uma lição ficou dessa história: os programas de governo precisam ser mais discutidos pela sociedade e, particularmente, pela imprensa de massa, como a TV. Geralmente, a mídia faz umas poucas matérias sobre as propostas formalizadas dos candidatos, mas o melhor caminho seria chamar, num primeiro momento, os candidatos para discutirem os programas de todos, e, num segundo momento, chamar especialistas nacionais e até internacionais, nas várias áreas de políticas públicas, para discutir a pertinência das ideias de cada concorrente. Quanto mais houver escrutínio público dos programas de governo, mais chances haverá de se evitar que despreparados cheguem à Presidência da República.

O segundo fator que comprova o despreparo de Bolsonaro está na qualidade das pessoas que apoiaram mais diretamente sua candidatura. Como já disse em artigo recente, os piores nomes dominam hoje grande parte dos postos da Esplanada dos Ministérios. Quem não percebeu isso, procure lembrar o nome do ministro da Educação e compare suas ideias para a área com o que é feito pelos países com melhor desempenho educacional. E não para por aí. Por mais de um ano, o Ministério da Saúde foi ocupado por pessoas que desconheciam completamente o setor – o próprio ex-ministro Eduardo Pazuello disse que nem sabia o que era o SUS. A militarização da política sanitária provou que não se pode improvisar com problemas coletivos complexos, pois uma pessoa pode ser habilitada para uma função e ser completamente despreparada para outra.

O pior de tudo isso é que o Brasil tem grandes acadêmicos, especialistas e gestores governamentais reconhecidos internacionalmente. Uma procura em bons sites especializados traria uma lista de nomes qualificados. Quantos desses foram chamados pelo atual governo? Quase ninguém. Bolsonaro prometeu que só chamaria “técnicos” para compor o núcleo de seu governo. Promessa descumprida: colocar policiais militares no Ibama, gente com currículo acadêmico pífio na educação, pessoas que nunca trabalharam com a cultura na respectiva secretaria, para ficar só em alguns exemplos, demonstra como o governo Bolsonaro é formado por amadores despreparados para as várias funções, que só estão lá porque obedecem completamente ao chefe maior.

Os debates na campanha deveriam discutir os principais nomes que assessoram os candidatos e que podem se tornar peça-chave para a qualidade do futuro governo. Mas não só o time de assessores faz diferença. É necessário também analisar a trajetória e as características pessoais dos presidenciáveis. Olhando para a biografia de Bolsonaro, não só ele não tinha comprometimento com a democracia e não fizera nada de relevante em 30 anos de Congresso Nacional, como nunca aprendera nada com as mudanças no mundo. Como todo governante despreparado, não é capaz de admitir e aprender com suas falhas. Isso poderia ter sido mais colocado em questão durante a campanha.

Há um terceiro e último elemento que já antecipava o despreparo para o cargo presidencial. Trata-se da forma como Bolsonaro e seu grupo se colocam frente ao mundo, em termos de ideias sobre o futuro almejado para o Brasil, formas de reagir à adversidade e a disposição em dialogar e aprender com os outros. Desde a campanha, percebeu-se que o bolsonarismo tinha um modus operandi muito claro: queria a volta ao passado em termos de valores e políticas públicas, não tinha muito respeito pela democracia e incentivava o ódio aos adversários.

O que vigora no grupo governante é o que pode ser chamado de “Planeta Bolsonaro”. Neste lugar distópico, imperam ideias e propostas que não são adotadas e/ou implementadas por nenhum outro país bem-sucedido nas diversas políticas públicas. A proposta educacional bolsonarista contém o contrário dos cardápios utilizados por nações que melhoraram sua educação nos últimos anos. A visão sobre a questão ambiental do bolsonarismo é o inverso do que está se firmando como um consenso mundial. Na mesma linha, a luta contra a desigualdade, não só de renda, mas com ações de defesa de minorias e da diversidade, é um processo crescente no mundo, enquanto as políticas do governo brasileiro vão no sentido contrário.

A construção do “Planeta Bolsonaro”, como um “mindset” que organiza o atual governo, não dialoga com as ideias e grupos que procuram enfrentar os desafios do século XXI. O Brasil ficará ainda mais para trás com as políticas do governo do presidente Joe Biden, nos Estados Unidos, que vão inspirar boa parte do mundo. A fonte desse reacionarismo radical vem de uma parcela da sociedade brasileira, que pode ter de um quinto a um terço dos eleitores, que está preocupada em evitar que as transformações do mundo contemporâneo cheguem aos seus lares. Não detém a maioria da população, mas consegue emperrar as necessárias decisões que deveríamos tomar para não construirmos aqui um salazarismo do século XXI, para lembrar o ditador português que atrasou por décadas a modernização da sociedade portuguesa.

A campanha de 2022 não pode repetir a de 2018. Os programas de governo devem ser discutidos exaustivamente. Não importa quais serão os candidatos: eles precisam falar mais sobre suas ideias, definirem como lidarão com situações difíceis, debaterem com outros concorrentes e serem testados pelo contraditório de especialistas, jornalistas independentes e cidadãos. Afinal, bons governos baseiam-se em propostas consistentes que necessariamente têm de passar pelo debate público.

Além disso, os nomes dos assessores devem ser conhecidos e analisados profundamente. Uma prévia de boa parte da equipe governamental deveria ser apresentada por todos os concorrentes. Desse modo, seria possível confrontar o plano de governo com a biografia e qualidade de seus prováveis implementadores. Soma-se ainda a isso a necessária análise das trajetórias e características de cada um dos presidenciáveis, tomando como principais qualidades a habilidade de dialogar e de agregar, além da capacidade de aprender com seus próprios erros.

Tão importante quanto o programa de governo e o conhecimento dos membros que o implementarão é a análise do “mindset” de cada grupo que disputa a Presidência. Sugiro quatro questões orientadoras aos condutores dos debates que deveriam ser feitas para todo concorrente a presidente. Primeira: como o senhor imagina que deve ser o país daqui a 20 anos num conjunto amplo de áreas (educação, meio ambiente, saúde, economia, cultura)? Segunda: que medidas adotará para que esse cenário se realize? Terceira: em que ideias, experiências de países e líderes governamentais o senhor se inspira para propor mudanças ao Brasil? E, por fim, como reunirá as pessoas em torno de suas propostas?

Para que uma campanha melhor aconteça em 2022, o período eleitoral deve ser maior e as regras sobre os debates deveriam ser melhoradas, fortalecendo o contraditório baseado em conhecimento sobre as políticas públicas. É sobre isso que o Congresso Nacional e a sociedade deveriam estar debruçados agora se quiserem que o Brasil tenha futuro. Seria a melhor reforma política para enfrentar as barbaridades produzidas no “Planeta Bolsonaro”.

*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas

Fonte:

Valor Econômico

https://valor.globo.com/eu-e/coluna/fernando-abrucio-estrategias-para-nao-repetir-o-maior-erro-da-eleicao-de-2018.ghtml


César Felício: Voando por instrumentos

“Porque no acúmulo de sabedoria, acumula-se tristeza, e quem aumenta a ciência, aumenta a dor.” A julgar pelas ações do governo Bolsonaro e pela sua devoção ao Livro Sagrado, o lema de sua administração deveria ser esta constatação que está em Eclesiastes 1:18, e não o sempre citado João 8:32 (“Conhecereis a verdade e ela vos libertará”). O aumento do conhecimento, com suas incômodas revelações, parece torturar a administração federal, em que desde seu início declarou guerra aos radares, questionou o mapeamento da devastação na Amazônia, lançou suspeitas sobre as estatísticas de desemprego, tentou interferir na contagem de mortos da pandemia de covid-19 e por fim sabotou o censo demográfico que deveria ter sido feito em 2020 e talvez só ocorra em 2023.

Vivemos tempos estranhos, como gosta de dizer o ministro Marco Aurélio Mello, que no Supremo Tribunal Federal acatou anteontem um pedido de liminar do governo do Maranhão para obrigar a realização do censo ainda este ano. Não dá para arriscar prognóstico sobre o que o plenário do STF fará em relação a essa liminar, já na próxima semana.

O Supremo tornou-se o escoadouro último de todos os contenciosos da sociedade e cabe a Marco Aurélio, por exemplo, decidir tanto sobre a realização do censo quanto sobre o peso da embalagem dos sacos de cimento produzidos no Espírito Santo. Executivo e Legislativo, os Poderes a quem cabe a definição e a gestão do Orçamento, estabeleceram que o censo não é prioridade, embora a sua realização decenal esteja prevista em lei.

O governo deve usar a pandemia como argumento para o cancelamento do censo, mas a inicial apresentada pelo governo do Maranhão mostra que fechar o visor da sociedade sobre o que nós nos tornamos na era Bolsonaro parece ser deliberado.

Lá se historia que Bolsonaro assumiu com uma previsão orçamentária de R$ 3,4 bilhões para a consulta. A presidência do IBGE foi trocada em fevereiro de 2019, a diretoria de pesquisas substituída em maio deste ano e em junho foi apresentada a redução do censo, de 112 para 76 perguntas no questionário da amostra e de 34 para 25 no formulário básico. Com isso diminuiu-se a verba para R$ 2,3 bilhões. A dupla formada pelo relator do Orçamento e o ministro da Economia fizeram o resto do serviço este ano para deixar somente R$ 53 milhões em recursos.

Se em 2021 pareceu tão pouco importante realizar o censo, certamente em 2022, um ano eleitoral, haverá para governo e base parlamentar gastos mais relevantes do que fazer a medição. Não realizá-lo agora é adiá-lo mais dois anos, e não um ano só.

Os efeitos mais graves do atraso do censo são bem conhecidos. Prejudica políticas públicas que envolvam alocação de recursos federais de modo geral. No universo de danos há um, entretanto, que mesmo não sendo nem de longe o mais importante, está encoberto e causa dano político: os estragos nas pesquisas de opinião pública, particularmente as eleitorais.

As pesquisas precisam definir um universo para iniciar a amostra. Entrevistar na medida certa pessoas que retratem no microcosmo a diversidade social que permita transpor os achados da parte para o todo

Mesmo sem atraso do censo isso é difícil no Brasil, país onde a realidade social é porosa, com variações bruscas em curto espaço de tempo. Na escuridão proporcionada pelo governo Bolsonaro, todos vão ter que tatear.

“Qual o percentual de evangélicos que existe atualmente no Brasil? Qual exatamente a porcentagem da população que se autodeclara preta? Qual o tamanho da classe C? O prejuízo é enorme”, comenta o diretor científico do Ipespe, Antonio Lavareda.

Como se sabe que o presidente Jair Bolsonaro tem mais aceitação entre os evangélicos e menos entre os que se autodeclaram pretos; há viés para todos os gostos nos levantamentos feitos.

“Nossos modelos vão ficando defasados. Outro exemplo é o perfil demográfico. A população brasileira está envelhecendo. A estimativa de jovens pode estar superdimensionada nas pesquisas”, diz Mauricio Moura, do Instituto Ideia Big Data.

Uma estratégia para contornar essa dificuldade é limitar a amostra apenas aos dados para os quais há estimativas oficiais da Pesquisa Nacional por Amostragem Domiciliar (Pnad), que não foi interrompida. Mas ainda assim a base é movediça. “A Pnad também é uma pesquisa, com margem de erro. Portanto, o levantamento eleitoral é uma pesquisa que toma como base outra pesquisa”, diz Márcia Cavallari, CEO do Ipec, empresa de pesquisas.

A partir de uma amostra com cotas mais reduzidas do universo social, pesquisas como a do Ipec procuram identificar nas entrevistas o total de evangélicos, por exemplo. Márcia diz que levantamentos situam a população evangélica no Brasil entre 27% e 30% na atualidade, significativamente mais do que o censo.

O problema é como submeter os achados das pesquisas a um controle para se saber se há ou não problemas no universo amostral. Pesquisadores como Andrei Roman, do Atlas Político, tentam fazer esse controle pelo resultado da última eleição.

Sabe-se que em 2018 Bolsonaro teve 49,8% dos votos totais no segundo turno e Haddad 40,5%. Se o total das entrevistas de uma pesquisa de hoje for feita com este percentual de eleitores que optaram por Bolsonaro e Haddad na eleição passada, a chance de se ter um quadro fidedigno da sociedade no universo pesquisado aumenta. Mas quem garante que o bolsonarista arrependido fala a verdade quando perguntado sobre seu voto há três anos? Não há controle perfeito.

“A gente calibra a pesquisa com esses controles, mas não é uma situação confortável. É difícil até explicar no exterior o grau de incerteza que existe no caso brasileiro”, diz Roman.

Voar por instrumentos é o que resta, não apenas em relação a pesquisas eleitorais, mas a qualquer tipo de pesquisa. As consequências de apostas feitas pelo governo federal desaparecem da linha do horizonte. Há loucura no método, como sempre.

Fonte:

Valor Econômico

https://valor.globo.com/politica/coluna/voando-por-instrumentos.ghtml


Hélio Schwartsman: Viés de imunidade

Contra os vieses lutam os próprios deuses em vão. Uma das ilusões cognitivas mais danosas e esquisitas de que se tem notícia é a falácia do planejamento, que pode ser definida como a tendência de pessoas e instituições de subestimar o tempo e os recursos necessários para a realização de um projeto.

Ela é danosa porque leva governos, empresas e indivíduos a comprometer-se com orçamentos e cronogramas que não conseguirão cumprir, incorrendo em custos adicionais. E é esquisita porque, mesmo sabendo que o viés existe —qual governo ignora que orçamentos estouram e obras atrasam?—, temos enorme dificuldade para compensá-lo —e é por isso que orçamentos continuam estourando e obras atrasando.

Algo parecido ocorre em relação à Covid-19. Ao menos desde outubro, quando países europeus começaram a apresentar expressivos aumentos de casos, sabíamos que segundas ondas eram possíveis. Aqui no Brasil, mesmo cientes desse perigo, escolhemos ignorá-lo e relaxamos os cuidados assim que os números da primeira onda trouxeram um alívio.

Não somos só nós. Os indianos, mesmo tendo assistido ao que aconteceu na Europa, nos EUA e no Brasil, julgaram-se imunes ao problema e decretaram a volta à normalidade antes da hora. O resultado é a tragédia numa escala que ainda não havíamos visto.

A falácia do planejamento foi identificada pela dupla de psicólogos Daniel Kahneman e Amos Tversky e é uma das modalidades do viés de otimismo que afeta nossa espécie quando julgamos nossas próprias capacidades. Mesmo sabendo que não há razões objetivas para tal, nos comportamos como se operássemos sempre acima da média e não precisássemos nos preocupar com os cenários mais negativos.

O melhor modo de escapar ao excesso de otimismo é incorporar o princípio da mediocridade. Não temos nada de especial. Se em algum lugar do mundo houve terceira onda, temos de estar prontos para ela.

Fonte:

Folha de S. Paulo

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/helioschwartsman/2021/04/vies-de-imunidade.shtml


Ruy Castro: Estão gostando do palhaço?

Paulo Guedes, ministro-bufo de Jair Bolsonaro encarregado dos esquetes sobre economia, disse que “livro é coisa de rico”. E, como sempre, desafinou. Bolsonaro, por exemplo, é rico e não gosta de livros. O último que teve em mãos foi no dia de sua posse —um exemplar da Constituição, que ele jurou defender, mas nunca abriu e na qual cospe com regularidade.

Bolsonaro tem razão em não ligar para livros. Não só porque lê com dificuldade, acompanhando as linhas com a cabeça e tropeçando nas palavras quebradas, mas porque construiu seu patrimônio sem precisar deles, valendo-se apenas do salário de deputado e, dizem, do de seus servidores. A estante ao fundo em seus pronunciamentos no Planalto é cenográfica, com livros comprados a metro. Às vezes variam a cor das lombadas para combinar com sua gravata. Um brincalhão poderia rechear as prateleiras com as obras completas de Karl Marx e Bolsonaro não perceberia.

Esse brincalhão poderia ser Paulo Guedes. Numa trupe de momos como Abraham Weintraub, Ernesto Araújo e Eduardo Pazuello, era difícil notá-lo no picadeiro. À medida que eles foram sendo defenestrados, Guedes saltou para o centro da lona e nunca mais perdeu uma oportunidade de ficar calado. Exprobou as domésticas por irem à Disney, tachou os servidores públicos de parasitas, acusou os pobres de destruir o meio ambiente e ainda os condenou por não saberem poupar e só pensarem em consumir.

Como o show não pode parar, Guedes há pouco criticou o brasileiro por “querer viver 100, 120, 130 anos” e sobrecarregar a Previdência. Deu mais uma cotovelada na China, acusando-a de ter inventado o vírus e vender uma vacina de segunda. E avisou o IBGE que não lhe mandaria dinheiro para fazer o Censo porque “quem muito pergunta ouve o que não quer”.

Está certo. Imagine se, em meio ao espetáculo, alguém perguntar ao público se estão gostando do palhaço.

Fonte:

Folha de S. Paulo

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/ruycastro/2021/04/estao-gostando-do-palhaco.shtml


Reinaldo Azevedo: Bolsonaro oferece 400 mil mortos ao lúmpen-milicianato

A instalação da CPI da Covid mexe com os bofes de Jair Bolsonaro. Agride o seu senso de onipotência —injustificado segundo um crivo objetivo, mas compreensível se visto por lentes clínicas. O golpista de primeira hora, que nunca precisou de comissão de inquérito ou de oposição organizada para pregar o rompimento da ordem —como provam os atos antidemocráticos que patrocinou já em 2019—, não aceita que sua obra seja questionada. Os, até agora, mais de 400 mil mortos são o seu grande legado ao lúmpen-milicianato que o aplaude.

A política sempre deve ter precedência na análise da vida pública, embora os dados de personalidade não possam jamais ser ignorados. Uma leitura mais aberta de Maquiavel sugere que a “fortuna” e a “virtù” —a história herdada que condiciona alternativas e as escolhas ditadas pela personalidade— também podem ter um enlace negativo. Em vez de surgir o Príncipe, eis que aparece o ogro, que a democracia tem de esconjurar. Ou morreremos todos.

Assim, é claro que, ao não arredar um milímetro das posições as mais estúpidas e reacionárias, que muitos enxergam danosas e contraproducentes para seu próprio futuro político, Bolsonaro age com cálculo. Ele deu voz a esse público que existia nas sombras; que se esgueirava nos escuros da história; que se acoitava nos desvãos nunca visitados —não de modo suficiente ao menos— pela teoria política.

Há nesses cafofos mentais um potencial de ressentimento odiento; de rancor acumulado contra virtudes vistas como inalcançáveis —pouco importando se as limitações são objetivas ou subjetivas—; de repulsa a tudo o que escapa de suas escolhas, tidas como valores universais. Encontram no presidente a sua voz.

Essa esfera de sentimentos e sensações é infensa a dados da realidade fática. A evidência do erro só reforça a convicção. Daí a fúria patológica contra a imprensa, por exemplo.

Querem uma prova? A crítica ao distanciamento social, sob a alegação de prejuízos à economia, expressa uma racionalidade torta. É um erro, sim, mas faz sentido. O que explica, no entanto, a repulsa de muitos à máscara senão a reação dos que se sentem tolhidos na sua vontade e reprimidos por um mundo que não compreendem, por valores que lhes são distantes, por um discurso que entendem ser só afetação e hipocrisia?

Na arte e na vida, esse caldo alimentou os fascismos. Leiam “M, o Filho do Século”, de Antonio Scurati, sobre os primeiros anos da trajetória de Mussolini, o trânsfuga. Vejam ou revejam o filme “Lacombe Lucien”, de Louis Male, e percebam como o oprimido pode encontrar no peito do opressor o regaço para a sua ascese, ainda que destrutiva.

Bolsonaro pode não saber exatamente o nome do que pratica —embora viva cercado de alguns que o sabem—, mas já percebeu ter um público cativo —em mais de um sentido. O que um olhar objetivo e crítico apontaria como um tiro no pé é precisamente a seiva, vertida como fel, que plasma em eleitorado os ódios que ele açula e alimenta. E, por essa razão, o presidente não desiste nem recua nunca. Aí está a sua fortuna —este texto está pleno de palavras polissêmicas.Não é fácil a um outro qualquer liderar esse lúmpen-milicianato —presente em todos os setores e classes, já que não é o interesse econômico que une os fanáticos, mas uma espécie de identidade espiritual. Embora esteja consciente do jogo, Bolsonaro é um homem, a seu modo, sincero. Está plenamente convencido das coisas estúpidas que diz e faz. É o que a sua inteligência alcança. Creiam: nem os filhos são seus herdeiros naturais. Já pensam demais, ainda que a seu modo.

Nesse particular sentido, raramente houve no Brasil um representante que expressasse com tanta fidelidade o universo mental dos seus representados e que estivesse tão à altura do momento. Ele soube pôr as suas características pessoais a serviço da terra que a Lava Jato arrasou. É emblemático que, neste momento, o senador Renan Calheiros —uma das caças de predileção de procuradores— seja o homem mais temido pelo presidente e pelos fascistoides que ele mobiliza.

Fonte:

Folha de S. Paulo

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/reinaldoazevedo/2021/04/bolsonaro-oferece-400-mil-mortos-ao-lumpen-milicianato.shtml