40 anos
OCDE: Padrão de vida no Brasil deve ficar estagnado nos próximos 40 anos
Entidade projeta crescimento médio do PIB de 1,1% ao ano de 2020 a 2030, e 1,4% até 2060
Folha de S. Paulo
O padrão de vida dos brasileiros deve ficar praticamente estagnado pelos próximos 40 anos, segundo projeção da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico) divulgada nesta terça (19).
De 2030 a 2060, deverá haver uma queda de 0,2% na fatia da população ativa no mercado de trabalho do Brasil. O potencial da taxa de ocupação no Brasil também deve cair 0,1% no mesmo período.PUBLICIDADE
Esse resultado só não é pior que na Índia (-0,6%), mas praticamente empata com os desempenhos de Argentina e China durante o período avaliado.
Em grandes economias emergentes, como o Brasil, uma produtividade relativamente fraca implica em um processo muito mais lento de convergência aos padrões de vida dos Estados Unidos, diz o documento.
De acordo com a entidade, o crescimento do PIB (Produto Interno Bruto) potencial do Brasil deve ficar em 1,1% ao ano na década de 2020 a 2030, e em 1,4% entre os anos de 2030 e 2060.
A OCDE também estima que o crescimento real do PIB dos países do grupo e do G20 deve cair pela metade no pós-Covid: de cerca de 3% para 1,5% em 2060.
A organização ressalta a importância de reformas estruturais para melhorar o cenário fiscal desses países após a crise sanitária.
A OCDE cita, ainda, o envelhecimento da população como um fator que serve para jogar mais pressão sobre os orçamentos dos governos.
Para tentar reduzir esse impacto, a organização considera a importância de mudanças estruturais nos sistemas de previdência e no mercado de trabalho.
Segundo a entidade, no Brasil, a reforma da Previdência deve reduzir a generosidade de benefícios ao longo do tempo. "Alguns países introduziram regras de acessibilidade ou outros mecanismos em suas pensões públicas que podem implicar declínios nas taxas médias de benefícios ao longo do tempo", diz a OCDE.
Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2021/10/padrao-de-vida-no-brasil-deve-ficar-estagnado-pelos-proximos-40-anos-diz-ocde.shtml
Há 40 anos, Lei da Anistia preparou caminho para fim da ditadura
Mobilização popular durante o regime militar permitiu o retorno de todos os acusados de crimes políticos no período
Ricardo Westin / Agência Senado
A Lei da Anistia completou 40 anos hoje. Quando assinou a histórica norma, em 28 de agosto de 1979, o presidente João Baptista Figueiredo concedeu o perdão aos perseguidos políticos (que a ditadura militar chamava de subversivos) e, dessa forma, pavimentou o caminho para a redemocratização do Brasil.
Foram anistiados tanto os que haviam pegado em armas contra o regime quanto os que simplesmente haviam feito críticas públicas aos militares. Graças à lei, exilados e banidos voltaram para o Brasil, clandestinos deixaram de se esconder da polícia, réus tiveram os processos nos tribunais militares anulados, presos foram libertados de presídios e delegacias.
O projeto que deu origem à Lei da Anistia foi redigido pela equipe do general Figueiredo. O Congresso Nacional o discutiu e aprovou em apenas três semanas.
Documentos de 1979 sob a guarda do Arquivo do Senado, em Brasília, mostram que os senadores e deputados da Arena (partido governista) ficaram satisfeitos com a anistia aprovada. O Congresso fez modificações na proposta original, mas nada que chegasse a descaracterizá-la.
— Repetidas vezes afirmou o presidente Figueiredo: “Lugar de brasileiro é no Brasil”. Com a anistia, aquela sentença deixou de ser uma frase para se transformar numa realidade palpitante — comemorou o senador Henrique de la Rocque (Arena-MA). — Maridos, pais, filhos, irmãos, noivos e entes queridos que se encontravam apartados do convívio familiar passaram a ter a oportunidade de retornar aos seus lares e reinaugurar as suas vidas, sem lugar para ódio e desejo de vindita [vingança]. A anistia é o bálsamo que cicatriza feridas.
— Com suas mãos estendidas no sentido da pacificação, o senhor presidente da República demonstrou a sua formação cívica e espiritual e praticou um gesto de grandeza e coragem. Ninguém em sã consciência poderá negar que a autoridade principal do país agiu com obstinação para atender aos anseios da população brasileira — discursou o senador Milton Brandão (Arena-PI).
Os mesmos papéis históricos do Arquivo do Senado indicam, contudo, que a Lei da Anistia não foi tão benevolente quanto os congressistas da Arena quiseram fazer crer. Na avaliação dos perseguidos políticos, de organizações civis e religiosas e dos parlamentares do MDB (único partido de oposição), o projeto aprovado tinha dois problemas graves.
O primeiro era que a anistia era restritiva. A lei negava o perdão aos “terroristas” que tivessem sido condenados de forma definitiva. Eles não poderiam sair da cadeia. Eram qualificados como terroristas os que, em ataque ao regime, haviam sido condenados por crimes como homicídio e sequestro. Contraditoriamente, aqueles que respondessem a processos iguais, mas ainda com possibilidade de apelar a tribunais superiores, ganhariam a anistia.
Durante as discussões do projeto no Congresso, os parlamentares do MDB apresentaram inúmeras emendas para derrubar essa exclusão e garantir uma anistia “ampla, geral e irrestrita”, conforme o slogan que se popularizou na época.
— Trata-se de uma discriminação odiosa e injustificada, uma aberração jurídica — criticou o deputado Alceu Collares (MDB-RS). — Quem enfrentou a justiça excepcional, foi condenado à prisão de 20, 30, 40 ou mais anos e encontra-se cumprindo a sua pena não é anistiado, enquanto quem conseguiu escapar do processo, tendo praticado o mesmo delito, será contemplado com os benefícios da anistia. É uma injustiça para os condenados.
— Anistia é esquecimento, olvido perpétuo. É medida de oportunidade política para começar, com os espíritos desarmados, uma nova marcha para o futuro. Para isso, é preciso a reintegração de todos na vida pública, sem exceção — acrescentou o deputado Marcos Freire (MDB-PE).
— Não há razão para excluir os condenados por terrorismo. Tiradentes era terrorista e subversivo. Hoje, é herói — comparou o deputado José Frejat (MDB-RJ).
Um grupo de deputados do MDB, tentando retirar a exclusão, apelou aos sentimentos familiares do general Figueiredo. Na justificativa de uma emenda coletiva, lembraram que o pai dele, após lutar na Revolução Constitucionalista de 1932, foi anistiado pelo presidente Getúlio Vargas em 1934.
Figueiredo apresentou sua razão para não perdoar os terroristas condenados. Segundo o presidente, o crime deles não era “estritamente político”, mas sim “contra a humanidade, repelido pela comunidade universal”. Quanto aos terroristas ainda apenas processados, que teriam direito ao perdão, ele escreveu numa mensagem remetida ao Congresso:
“O projeto paralisa os processos em curso até dos que, a rigor, não estão a merecer o benefício. Ao fazê-lo, o governo tem em vista evitar que se prolonguem processos que, com certeza e por muito tempo, vão traumatizar a sociedade com o conhecimento de eventos que devem ser sepultados em nome da paz”.
A anistia não foi uma decisão espontânea da ditadura. Organizações da sociedade civil vinham fazendo pressão. Em 1975, mães, mulheres e filhas de presos e desaparecidos criaram o Movimento Feminino pela Anistia. Em 1978, surgiu uma organização maior, o Comitê Brasileiro pela Anistia, com representações em diversos estados e até em Paris, onde viviam muitos dos exilados.
No velório de João Goulart, em 1976, o caixão do presidente derrubado pelo golpe militar de 1964 permaneceu envolto numa bandeira com a palavra “anistia”. Em jogos de futebol, torcedores erguiam faixas com a frase “anistia geral, ampla e irrestrita” para serem captadas pelas câmeras de TV e pelos fotógrafos dos jornais.
O movimento logo ganhou o apoio de entidades influentes, como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).
A anistia começou a ser gestada pelo antecessor de Figueiredo. Diante da pressão social e dos sinais de que a ditadura, desgastada, não se sustentaria por muito tempo, o general Ernesto Geisel anunciou em 1974 que daria início a uma “lenta, gradativa e segura distensão”, com medidas que permitiriam a redemocratização no futuro. A anistia estava entre essas medidas.
Figueiredo seguiu o plano. O último presidente da ditadura tomou posse em março de 1979 e apresentou o projeto da Lei da Anistia já em junho. Como o Congresso recebeu o texto às vésperas do recesso parlamentar e o presidente da República não autorizou sessões extraordinárias em julho, as discussões legislativas só puderam começar no início de agosto. A aprovação viria a toque de caixa.
Assim que o projeto de lei se tornou público, sem prever a anistia ampla, geral e irrestrita, presos políticos deram início a uma greve de fome em diversos presídios do Brasil, pressionando pela retirada do artigo que os excluía do perdão. Eles ganharam o apoio dos parlamentares do MDB. Um grupo liderado pelo senador Teotônio Vilela (MDB-AL) percorreu várias penitenciárias e se encontrou com os condenados, dando voz ao protesto silencioso que eles faziam.
— A paisagem humana que vi é indescritível — discursou Teotônio após visitar 14 presos políticos do Presídio Frei Caneca, no Rio de Janeiro. — Devo dizer que, com a minha sensibilidade de criatura humana, [fiquei estarrecido] ao tomar conhecimento da debilidade total daqueles presos, em pleno estado de ruína, sacrificados em nome de um ideal, porque ninguém se submete a esse tipo de sacrifício se dentro de si próprio não possuir uma estruturação espiritual superior. São jovens envelhecidos nas grades, alguns com 11 anos de cadeia, e um deles preso aos 16 anos de idade, por conduzir debaixo do braço livros de ideologias políticas. Não é possível que aqueles rapazes morram num deserto, castigados pela inclemência e insensibilidade do poder.
O segundo problema grave que havia na Lei da Anistia, e que os parlamentares do MDB também tentaram derrubar, era o perdão aos militares que cometeram abusos em nome do Estado desde o golpe de 1964, incluindo a tortura e a execução de adversários da ditadura. A lei lhes deu a segurança de que jamais seriam punidos e, mais do que isso, nunca sequer se sentariam no banco dos réus.
Nesse ponto, a lei era propositalmente obscura. Sem citar os militares, dizia que seriam anistiados todos que tivessem cometido “crimes conexos”, isto é, “crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política”. Os agentes da repressão, assim, estariam amparados sob o amplo guarda-chuva dos crimes conexos.
— Pretende-se que as mortes, os choques elétricos, as lesões corporais, as mais variadas torturas sejam esquecidas. Elas foram compreendidas à sorrelfa [sorrateiramente] pelo projeto de anistia, graças ao recurso de termos ambíguos através dos quais se iludiria a nação — denunciou o deputado Pacheco Chaves (MDB-SP).
— Que moral tem o governo que exclui uns sob a alegação de terrorismo, mas que nem sequer submete os torturadores a processo? Estes, sim, jamais serão merecedores da piedade humana, porque, como se sabe, não atuam por valores relevantes, mas sim por servilismo ou para satisfazer instintos — atacou o senador Leite Chaves (MDB-PR).
No esforço de convencer os colegas parlamentares de que anistiar torturadores seria um absurdo, o senador Lázaro Barbosa (MDB-GO) narrou um episódio que ele testemunhara anos antes:
— Eu próprio, estudante na Universidade Católica de Goiás, em certa noite, vi duas moças e um rapaz descendo a Avenida Universitária, os três de braços dados. Ele, quartanista de medicina. As duas, irmãs e acadêmicas do curso de direito. Dois carros os cercaram, e homens armados os empurraram para dentro de um dos veículos, que disparou em altíssima velocidade. Decorridos dois ou três meses, apareceu o acadêmico de medicina. Estivera preso nos órgãos de repressão, mas contra ele nada foi apurado. Um ano e meio depois, as irmãs foram localizadas presas em Minas Gerais e em estado lastimável. As duas foram violentadas, torturadas. Uma delas sofreu torturas de tal monta, inclusive choques elétricos nos órgãos genitais internos, que se tornou o espectro de si mesma. Em julgamento, foram as duas absolvidas.
Barbosa concluiu:
— A meu juízo, esses torturadores não podem receber a anistia, pois dela não são dignos. É imprescindível que tais carrascos tomem assento no banco dos réus e respondam pelas monstruosidades cometidas. Não foram crimes políticos. Foram, isso sim, crimes contra a humanidade.
O projeto teve como relator o deputado Ernani Satyro (Arena-PB). No governo do marechal Costa e Silva, ele havia sido ministro do Superior Tribunal Militar, corte que dava a palavra final sobre o destino dos acusados de crimes políticos. Satyro jogou um balde de água fria nas pretensões do MDB. Ele rejeitou todas as emendas que buscavam incluir na anistia os condenados por terrorismo.
— Os princípios gerais do projeto do governo estão de pé. A anistia será ampla e geral, mas não irrestrita.
O relator também enterrou as tentativas oposicionistas de retirar do alcance do perdão os militares que cometeram abusos contra os perseguidos políticos. Para ele, isso seria contraditório:
— Querem o perdão, mas não perdoam. Gritam pela anistia para os seus, mas apregoam, ao mesmo tempo e incoerentemente, a ideia de uma investigação sobre torturas e violências. Advogam a impunidade dos crimes de seus partidários para que, mais fortes, possam punir a revolução [de 1964].
Dando outra estocada na oposição, Satyro concluiu:
— O doloroso, para muitos, é saber que a anistia virá, mas virá pelas mãos do governo, por iniciativa do presidente João Baptista Figueiredo. Será atendida, assim, a autêntica voz do povo, que aspira à paz e à conciliação. Isso, para os oposicionistas, importa uma grande frustração, como frustrados se encontram pela abertura que está sendo feita pelo governo da revolução.
Em 22 de agosto, os senadores e deputados se reuniram na Câmara para votar o projeto. As galerias estavam repletas de familiares dos perseguidos políticos, que vaiavam os políticos da Arena e aplaudiam os do MDB. A sessão foi tão tensa que quase houve agressão física entre parlamentares.
A pressão popular, porém, não surtiu efeito. No fim, em votação simbólica (sem contagem de votos), a Lei da Anistia foi aprovada do jeito que o governo queria. A Arena, afinal, tinha a maioria dos parlamentares, incluindo os chamados senadores biônicos (escolhidos de forma indireta, não pelo voto dos cidadãos, para evitar a hegemonia do MDB no Senado).
Do lado governista, o senador Jarbas Passarinho (Arena-PA) festejou:
— A anistia marca o fim de um ciclo da Revolução de 64, o fim do ciclo punitivo da Revolução de 64.
Do lado oposicionista, o senador Humberto Lucena (MDB-PB) leu trechos de um artigo de jornal do pensador Tristão de Athayde para protestar:
— Desejávamos uma nova Lei Áurea que anunciasse uma aurora. Deram-nos um ato sem generosidade, sem horizontes abertos. Eu preferiria a temeridade da princesa Isabel. É bem certo que há muita diferença entre 15 anos de arbítrio e 300 de cativeiro. Ora, não existe apenas diferença, e sim um abismo, entre a grandeza da lei de 13 de maio, que fulgirá sempre como um marco luminoso em nossa história pátria, e a estátua pigmeia da Lei da Anistia.
Na votação simbólica final, grande parte do MDB acabou também apoiando o projeto da ditadura. Vanessa Dorneles Schinke, professora de direito da Universidade Federal do Pampa e autora do livro Anistia e Esquecimento (Editora Lumen Juris), explica:
— A oposição concluiu que seria melhor ficar com a anistia do governo do que não ter anistia nenhuma. Aquela não era a anistia ideal, mas a possível. Considerando o contexto político de então, a lei de 1979 não deixou de ser uma vitória para a oposição.
Nos meses seguintes, a própria ditadura libertaria os presos que não haviam sido beneficiados pela Lei da Anistia. Enquanto uns ganharam o indulto do presidente Figueiredo, outros tiveram seus processos revisados pelos tribunais militares.
Se logo em seguida os beneficiaria, por que o governo brigou tanto no Congresso para manter o artigo que excluía os terroristas condenados? Para o historiador Carlos Fico, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e autor do livro Além do Golpe (Editora Record), a exclusão deles foi apenas uma cortina de fumaça:
— Não há evidências empíricas definitivas, mas eu, após anos de pesquisas e entrevistas, cheguei à conclusão de que a ditadura pôs essa interdição para encobrir aquilo que realmente desejava, que era a autoanistia. Enquanto todo mundo ficou tentando de todas as formas incluir os condenados pelos “crimes de sangue” na anistia, o perdão aos torturadores ficou em segundo plano e foi aprovado com facilidade.
Seis dias depois da votação no Congresso, Figueiredo sancionou a lei. Nas semanas que se seguiram, inúmeras figuras até então perseguidas desembarcaram no Brasil, entre as quais Leonel Brizola, Miguel Arraes, Luís Carlos Prestes, Francisco Julião, Betinho, Fernando Gabeira, Vladimir Palmeira, Carlos Minc e Paulo Freire.
A volta dos exilados também foi considerada parte de uma estratégia. O governo sabia que muitos desses líderes criariam seus próprios partidos, o que acabaria por pulverizar e enfraquecer a oposição. Por isso, logo depois, ainda em 1979, a ditadura extinguiu a Arena e o MDB e restabeleceu a liberdade partidária. Brizola, por exemplo, fundou o PDT.
A divisão dos adversários permitiu que os militares mantivessem total controle sobre a abertura política. Figueiredo devolveria o poder aos civis em 1985.
Saiba mais:
Documentário da TV Senado sobre a Lei da Anistia
Reportagem e edição: Ricardo Westin Pesquisa histórica: Arquivo do Senado Edição de multimídia: Bernardo Ururahy Edição de fotografia: Pillar Pedreira Pesquisa fotográfica: Ana Volpe e Pillar Pedreira Foto da Capa: Orlando Brito/Arquivo Público do Estado de São Paulo
Colaboração: Arquivo do Senado
Fonte: Agência Senado
https://www12.senado.leg.br/noticias/especiais/arquivo-s/ha-40-anos-lei-de-anistia-preparou-caminho-para-fim-da-ditadura
Alberto Aggio: Unesp, 40 anos e uns tantos sinais
Meio ano se passou e mesmo em meio à turbulência política que nos acompanha cotidianamente, dentro e fora do País, não podemos deixar de lembrar que uma de nossas mais importantes universidades, a Unesp, completa 40 anos. Não é muito tempo para que uma universidade alcance a maturidade e por ela seja reconhecida, se tivermos como parâmetro as mais importantes universidades do mundo. A Unesp é filha e protagonista de um tempo vertiginoso que tem conduzido o País pelos caminhos da modernidade, cujo saldo, apesar de problemas de toda ordem, é largamente positivo. Depois de 40 anos é justo saudar o percurso realizado por essa universidade que, ao consolidar o seu perfil multicâmpus, se tornou modelo para instituições de ensino superior que foram criadas depois dela em outros Estados.
Por suas origem e trajetória, a Unesp representa o êxito e as vicissitudes do processo de modernização do Estado de São Paulo. Hoje ela está presente em 24 cidades por meio de 29 faculdades e institutos, que abrangem todas as áreas do conhecimento e oferecem 155 cursos de graduação a cerca de 37 mil alunos, além de 146 programas de pós-graduação a outros 13.500 alunos, sendo 112 deles em nível de doutorado. Abriga em seus quadros cerca de 3.800 docentes e 6.700 servidores técnico-administrativos. Seus professores participam de centenas de pesquisas e são responsáveis por parte significativa da produção científica do País.
A Unesp guarda em si os elementos essenciais que compõem a visão que o mundo moderno reserva à universidade – essa notável sobrevivente do medievo europeu, ainda legitimada entre nós. No centro dessa visão está o entendimento de que uma universidade deve afirmar-se na justa relação entre o ideal do conhecimento e uma instituição organizada para sua produção. Essas duas dimensões muitas vezes andaram juntas na História e outras vezes se distanciaram, chegando a segunda a se sobrepor à primeira por questões religiosas, ideológicas ou por imposição de regimes autoritários.
Como ideal, a universidade nutre-se da inquietação de homens e mulheres dedicados às ciências, ao pensamento, às artes, à investigação. Mas essa instituição também é uma relação social que se funda e se reproduz tendo como base aquilo que a sociedade demanda dos que procuram saber mais, buscam conhecer melhor a realidade material e espiritual dos homens, seus desafios e limites. Ela forma profissionais que procuram responder às suas necessidades e, ao mesmo tempo, se esforçam para superar o conhecimento já produzido.
A universidade não pode viver sem uma íntima conexão com os problemas do seu tempo. Ela precisa apurar a sua percepção a respeito das demandas da sociedade, dialogar com ela, mas também refletir criticamente sobre seus impasses e descaminhos. Como instituição, deve procurar ainda estabelecer novas orientações organizacionais quando isso se impuser como uma necessidade.
Criada e consolidada a partir dessa perspectiva, a Unesp seguiu o modelo das grandes universidades públicas multifuncionais, vocacionadas para a unidade entre ensino e pesquisa. No mundo ocidental, esse tipo de universidade, nem sempre gratuita, é essencialmente mantida com recursos governamentais. Atualmente, há um reconhecimento quase generalizado de que esse modelo deve passar por reformas. A autonomia acadêmica e financeira parecem ser duas teses já assimiladas. No entanto, há questões que precisam ser enfrentadas, tais como sua expansão, os critérios de acesso, a modernização de sua gestão e, por fim, o problema do seu financiamento. No Brasil, a questão do financiamento é reconhecidamente dramática em função da gritante desigualdade social, da injustificada gratuidade para determinados segmentos sociais, além das determinações constitucionais.
Por quase um século a adoção daquele modelo possibilitou que o País produzisse um conhecimento de alta qualidade, que não pode ser negligenciado. Nas últimas décadas a universidade assumiu uma tarefa cidadã da maior relevância, tornando-se parte integrante das lutas para fazer avançar a democracia na sociedade brasileira.
Como resultado, a universidade foi gradativamente se tornando de massa, aberta cada vez mais à cidadania e preocupada com o bem comum. A essas afirmações veio a somar-se o paradigma da sociedade do conhecimento como mais uma referência importante da nossa contemporaneidade. Mas todas essas mudanças foram acompanhadas de transformações sociais marcadas por intenso processo de individuação, que acabaram produzindo uma espécie de mescla paradoxal de democratização social e de imposição do mundo dos interesses privados, sem que ainda possamos saber qual deles vai vingar ou que combinação entre eles poderá emergir no futuro. Tudo isso invadiu o espaço acadêmico, alterando a sociabilidade universitária.
Não há dúvida que a universidade brasileira e a Unesp, em particular, seguiram um curso democrático e republicano nos últimos tempos, obedecendo aos anseios da sociedade. Um processo de mão dupla que instituiu no País uma universidade ideológica e politicamente plural, aberta a vocações diferenciadas e atenta às necessidades da comunidade em que atua.
São 40 anos de uma história positivamente inconclusa e aberta. Contudo, dado o estado de ruínas que o País vivencia, os riscos de uma regressão não estão fora do radar. Corporativismos e ideologismos ancilosados e anacrônicos, que povoam o ambiente universitário, são cada vez mais ameaçadores, visíveis na Unesp e em suas coirmãs. Não é demais lembrar que, em termos éticos, racionais e profissionais, é imperioso impedir a fratura entre o ideal do conhecimento e a instituição que o alberga. Trata-se de um requisito essencial para que a universidade continue a ser produtivamente desafiada pelo seu presente. (O Estado de S. Paulo – 05/07/2016)
Alberto Aggio é historiador e professor titular da Unesp