250 mil mortos
Tasso Jereissati: ‘Pacheco terá teste com CPI da covid’
Senador tucano cobra do presidente da Casa a instalação de comissão para apurar a conduta do governo na pandemia
Daniel Weterman, O Estado de S. Paulo
BRASÍLIA - O senador Tasso Jereissati (PSDB-CE) pressiona o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), a instalar uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar a conduta do presidente Jair Bolsonaro na crise de covid-19. O senador é um dos autores do pedido para abertura da investigação no Congresso que vai apurar a condução do combate à pandemia por autoridades públicas, incluindo o chefe do Planalto.
A instalação depende de Pacheco, apoiado por Bolsonaro na eleição para o comando da Casa e também pela oposição. “Esse vai ser o grande teste do Rodrigo, se ele realmente é independente como está dizendo ou se para ganhar se comprometeu até à alma com o Bolsonaro” afirmou o tucano em entrevista ao Estadão.
Na sexta-feira passada, Bolsonaro visitou as obras de duplicação da BR-222, em Caucaia (CE), e, mais uma vez, cumprimentou simpatizantes sem respeitar as medidas de contenção da covid-19, na semana em o que País atingiu novo recorde diário de mortes pela doença. “É preciso parar esse cara”, disse Tasso. A aglomeração ocorreu após o governador do Estado, Camilo Santana (PT), decretar toque de recolher e reduzir o funcionamento de atividades em função do avanço do novo coronavírus. Confira os principais trechos da entrevista:
Como o senhor avalia a recente visita do presidente Jair Bolsonaro ao Ceará?
Dois dias antes, o governador e o secretário da saúde anunciaram toque de recolher e outras medidas. Tudo isso porque estamos pertinho do colapso e com tendência de crescimento da pandemia muito grande. Chega o presidente aqui e vai a um município, junta gente, aglomera gente sem máscara, depois vai para outro e conclama a população a sair de casa. Além de conclamar, joga uma ameaça: aquele governador que fechar agora tem que pagar o auxílio emergencial. É um esforço enorme para conscientizar a população e o cara vem e conclama o contrário.
Por que o senhor defende a instalação da CPI no Senado?
Estou pedindo ao Senado, com receio de que teremos dificuldade porque não sei qual vai ser a posição do presidente Rodrigo Pacheco, que instale a CPI da covid-19. Ele colocou meio na gaveta, fez aquela audiência com Pazuello, que foi um desastre, para empurrar com a barriga. É preciso parar esse cara (Bolsonaro). O intuito da instalação da CPI não é nem para punir, mas é para pelo menos parar essa insanidade. Por ser presidente da República, não pode conclamar a população inteira a correr risco de morte sem nenhum tipo de punição.
Que medida prática a CPI faria? Pode encaminhar uma denúncia ao Ministério Público?
Denúncia ao Ministério Público. Primeiro, há crime contra a saúde pública, isso é claro. Segundo, há crime contra a federação, porque está conclamando a população a fazer o contrário do decreto de um governador do Estado e ainda ameaçando governadores que fizerem isso.
O senhor advoga a tese do impeachment?
Eu só quero parar com isso, que o presidente caia em si. Acho que impeachment vai criar uma crise sem tamanho. E, outra coisa, ele tem seguidores. Vai piorar a coisa. Temos que conscientizar o presidente pelos seus puxa-sacos que isso tem consequências legais e ele vai ter que pagar por isso um dia. Não é assim. Dentro da CPI da covid-19, vamos levantar quem é responsável.
O presidente do Senado está segurando a CPI. Qual é a viabilidade de ele autorizar?
O pedido de CPI está na mesa do presidente do Senado com as assinaturas. O que eles podem fazer é pedir que senadores retirem assinaturas. Se não, vai ser mais cedo ou mais tarde obrigado a implantar. Esse vai ser o grande teste do Rodrigo, se ele realmente é independente como está dizendo – e eu espero que seja – ou se para ganhar se comprometeu até à alma com o Bolsonaro.
O senhor acredita que Pacheco será independente? A comissão de acompanhamento que ele autorizou é para empurrar com a barriga?
Estamos com a possibilidade enorme de ter um caos no Brasil inteiro. Eu acredito que o presidente do Senado é um homem que tem consciência disso. A comissão de acompanhamento funciona bem, mas não tem consequência nenhuma. CPI é que mostra que tem consequência. O objetivo da CPI não é criar crise, é mostrar que o presidente da República não pode fazer e dizer o que quer, que tem consequências e que vai ser responsabilizado.
O funcionamento remoto do Senado em função da covid-19 pode servir como justificativa para não instalar a CPI?
Justificativa não, pode servir de desculpa. Vai ter argumentação de que é difícil fazer virtualmente. A instalação tem de ser já, mesmo remotamente. Não podemos ficar quietos. Não estamos funcionando remotamente para outras coisas de muita responsabilidade? Não tá a PEC Emergencial aí agora? Não tá a PEC da imunidade na Câmara?
Felipe Salto: Sem auxílio e sem ajuste
O caminho é resolver a emergência e avançar a sério no debate fiscal. Não no tapetão
O debate sobre a Proposta de Emenda à Constituição n.º 186, a PEC Emergencial, ressurgiu em meio à urgência de um novo programa de auxílio social. A vinculação do programa a reformas fiscais constitucionais não é uma boa estratégia, mas é possível endereçar as duas questões tempestivamente. Responsabilidade fiscal e sensibilidade social andam de mãos dadas.
É preocupante que pareça ser necessário bater na responsabilidade fiscal para obter legitimidade na defesa de um gasto social urgente. Ou você banca o durão e defende a ideia de que só será possível pagar R$ 250 a famílias que estão à míngua se houver compensações ou abraça a lassidão fiscal. É preferível o caminho da ponderação.
As simulações consideradas pela Instituição Fiscal Independente (IFI) mostram que o auxílio emergencial poderia custar R$ 34,2 bilhões se destinado a 45 milhões de pessoas, com quatro cotas mensais de R$ 250. Essa conta já é líquida dos pagamentos aos beneficiários do Programa Bolsa Família, que receberiam apenas a diferença entre o valor do novo auxílio e a transferência atual.
Esse gasto não é pequeno, mas a PEC Emergencial não é condição para pagar essa despesa. Ao lado da aceleração do programa de vacinação, o auxílio se impõe. Agora, não se afirme ser impossível compensar o gasto sem antes olhar o Orçamento de 2021. Em meu último artigo neste espaço, mostrei uma lista de cortes e medidas possíveis.
Os reajustes salariais dos militares correspondem a R$ 7,1 bilhões; os concursos públicos programados, a R$ 2,4 bilhões; e os subsídios sujeitos ao teto de gastos, a R$ 14 bilhões – que poderiam ser reduzidos em R$ 4 bilhões. Além disso, a revisão das renúncias tributárias poderia colaborar com R$ 20 bilhões, totalizando R$ 33,5 bilhões. Se a primeira medida se mostrar impossível, em razão da lei que garante os reajustes, a economia ainda seria de R$ 26,4 bilhões.
Portanto, as medidas de ajuste fiscal previstas na PEC não seriam condições necessárias para pagar o auxílio. Bastaria cortar o Orçamento. Mas isso não significa que ela não contenha tópicos importantes. São assuntos complexos, que demandam debate técnico e político adequado, com tempo suficiente para não se promover uma virada de mesa na Constituição. Separe-se o joio do trigo.
A PEC Emergencial fixa a sustentabilidade da dívida como uma dimensão inescapável na fixação de limites e metas fiscais, obriga a administração pública a avaliar políticas públicas, propõe a extinção de fundos públicos, manda reduzir gastos tributários, estabelece as regras para a despesa com o novo auxílio social, cria novos instrumentos de ajuste para os Estados e municípios e estabelece uma nova forma de acionar os gatilhos – medidas automáticas de ajuste – no âmbito da regra do teto de gastos.
Mas ela também acaba com os pisos constitucionais da saúde e da educação. Melhor seria consolidar os dois valores, dando maior liberdade aos gestores, sobretudo municipais e estaduais, na alocação dos recursos públicos para essas duas áreas essenciais.
A inclusão do auxílio no texto da PEC, por sua vez, tem que ver com o receio do Ministério da Economia de editar um crédito extraordinário para pagar a nova transferência social sem conseguir justificar a imprevisibilidade, exigência da Constituição. Vale dizer, os dispositivos que tratam do auxílio são independentes do resto da proposta, um convite ao Congresso para fatiá-la. É curioso notar que a intenção do ministro Paulo Guedes é o simétrico oposto: incentivar a aprovação das medidas de ajuste como condição para o auxílio.
Quanto ao teto de gastos, sabe-se que a Emenda Constitucional n.º 95 impossibilita o acionamento dos gatilhos (medidas de ajuste), ao menos sob a interpretação jurídica majoritária. A propósito, essa foi a motivação original da PEC, em 2019: tornar viável o acionamento das medidas automáticas de ajuste no caso de rompimento do teto.
Então, à guisa de solucionar esse problema, a PEC determina que, quando as despesas obrigatórias sujeitas ao teto atingirem 95% das despesas primárias totais (também limitadas ao teto), a lista de gatilhos será ativada. Incluem-se, aí, a proibição dos reajustes salariais e das chamadas progressões automáticas no serviço público. O efeito fiscal poderia chegar a 1% do produto interno bruto (PIB) até o quinto ano.
Vincular o debate sobre regras fiscais à concessão do auxílio, mesmo abandonados os outros tópicos da PEC, prejudica as duas coisas: nem o dinheiro é liberado nem a proposta de ajuste fiscal alcança o consenso político suficiente. Segue indefinida a estratégia para recobrar a sustentabilidade das contas públicas.
O caminho é resolver a emergência do auxílio e avançar a sério no debate fiscal. Não no tapetão. As prioridades orçamentárias têm de ser expostas, o lado da receita tem de entrar no jogo e os privilégios dos estamentos estatais têm de ser combatidos. Que tal começar pelo Orçamento de 2021?
Ou isso ou seguiremos postergando o auxílio e o ajuste fiscal.
*Diretor Executivo da IFI, é professor do IDP
Cristovam Buarque: Um órfão chamado Brasil
O Brasil está órfão: sem oxigênio, sem responsável para cuidar do tratamento que precisa, nem tem quem lhe assegure vacina. Não teve um responsável que alertasse com autoridade que a doença era grave. Não recebeu as recomendações preventivas, nem os cuidados no período inicial. O Brasil não teve um responsável que lhe alertasse dos riscos. Ao contrário, ouviu “não fique em casa”, “vá para a rua”, “é uma gripezinha”. O oposto do que dizem pai e mãe preocupados com filho.
O Brasil não teve um responsável, um líder, um governante que o protegesse da doença e estivesse atento para obter e aplicar a vacina. Qualquer pai ou mãe ou tio ou padrinho protege o filho, natural ou adotado, cuida para ele ficar em casa, usar máscara, álcool em gel, e o leva para tomar a vacina. O Brasil não tem quem cuide dele neste momento em que está sofrendo os horrores de uma epidemia. A orfandade não decorre apenas da falta de governante que cuide dele com amor e competência neste momento de epidemia. O atual governante não cuida do presente, nem formula rumos para o futuro.
O Brasil está órfão. Mas a orfandade é anterior. Se o Brasil não fosse órfão antes, não teria preferido o atual governante. Foi o órfão que buscou ser adotado por ele, com o voto de milhões de eleitores descontentes. O Brasil sentia-se abandonado: 12 milhões de analfabetos, 100 milhões sem rede de esgoto, 35 milhões sem água, 12 milhões de desempregados, a mesma concentração de renda e persistência da pobreza de que sofre desde sua origem.
Os moradores da periferia das grandes cidades já estavam órfãos há décadas, os jovens sem perspectiva, as crianças sem escolas de qualidade. Desde a escravidão, a população negra é órfã. Os desempregados, as vítimas de violência, os doentes sem dinheiro, todos são partes do órfão chamado Brasil. Seus líderes o deixaram órfão de ética, diante da corrupção. O Brasil é órfão por falta das reformas em suas estruturas arcaicas, que persistem desde a escravidão.
De todos os erros e crimes cometidos pelos políticos, o mais grave foi não perceber e não agir para impedir que o Brasil escolhesse o atual governo. E agora cometem erro ainda maior ao não apresentar aos eleitores uma alternativa que empolgue, que mereça confiança e mais: que impeça a continuação da orfandade atual. Em vez de reconhecerem os erros e pedirem desculpas aos brasileiros, de se apresentarem unidos com uma proposta alternativa, nossos líderes estão se acusando mutuamente. Parecem imaginar que o erro foi dos eleitores em 2018. Como se o órfão fosse culpado da escolha que fez na busca por quem o adotasse.
Todos que ocupamos cargos ao longo dos 130 anos da República, temos parte de responsabilidade, por omissão, por incompetência ou por corrupção nas prioridades ou no comportamento. Sobretudo, responsabilidade pela eleição do atual governo que aprofunda a orfandade por seu comportamento que nega a ciência, desmoraliza o país no exterior, degrada o meio ambiente, descuida das prioridades do povo, defende o armamentismo e consequente violência, regride no respeito aos direitos humanos, ameaça as conquistas democráticas.
O Brasil precisa de líderes que cuidem dele com novas ideias, propostas e comportamento. Não teria sido difícil acabar com a orfandade do Brasil: bastaria adotar uma geração de suas crianças, de todas as raças, em todos os endereços e de todas as rendas. Esta geração adotada adotaria depois o Brasil com competência e ética. A orfandade do Brasil começa na orfandade como suas crianças pobres são tratadas.
Mas o momento é para levarmos à Presidência alguém comprometido com a continuação das conquistas democráticas das últimas décadas. Para isso, é preciso barrar a marcha ao desastre de mais quatro anos desta orfandade desastrosa. Para isso, os que desejam um novo rumo precisam entender que a hora é de coesão. Em tempo de tormenta, a âncora é mais importante que a bússola e a vela.
Precisamos unir os democratas, já no primeiro turno de 2022, com um candidato que transmita ao eleitor a capacidade de unir e manter as conquistas democráticas e presidir o debate dos candidatos que em 2026 apontarão suas propostas para o eleitor escolher o rumo que o Brasil deve seguir em direção ao futuro democrático, eficiente, justo, sustentável.
*Cristovam Buarque, professor Emérito da Universidade de Brasília (UnB)
Pedro Doria: O trabalho de hoje, a política de ontem
Na última sexta-feira, a Suprema Corte do Reino Unido decidiu que o Uber deve tratar seus motoristas como funcionários. Ou seja: direitos trabalhistas. A decisão abrange Inglaterra, Escócia, Gales e Irlanda do Norte. E é final, não cabe recurso. A Suprema Corte francesa já havia tomado decisão semelhante, assim como a da Espanha. Um processo do tipo está em curso no Canadá e em diversos estados americanos. Evidentemente que nova legislação pode reverter esse curso — mas esta é uma das mais relevantes discussões em curso no mundo atualmente. Uma discussão ausente no Brasil.
Este é um dos grandes custos que o bolsonarismo impõe ao Brasil. O país se perde em discussões irrelevantes a cada crise vazia — e crise nova há, muitas vezes parece, dia sim, dia não. O Brasil se perde, também, em debates que nem sequer deveriam existir — como o da defesa do meio ambiente, o do armamentismo desenfreado ou, pasme, até o da manutenção da democracia. Enquanto isso, lá fora, o século 21 corre solto impondo suas transformações.
A questão no centro da decisão da Justiça britânica não tem a ver com o Uber. Tem a ver com a reinvenção do trabalho. Não é um debate simples.
O Uber argumenta aquilo que a maioria dos aplicativos do tipo dizem. Ele oferece uma tecnologia que permite a pequenos empreendedores que encontrem com mais facilidade seus clientes. Une duas pontas. Isso é verdade. Assim como é verdade que, diferentemente de uma relação normal de trabalho, os motoristas trabalham quando querem.
Os motoristas que foram à Justiça, porém, chamam atenção para outros pontos. É o Uber que dita o preço da corrida, é ele que coleta o dinheiro, pune motoristas que recusam chamadas e impõe um sistema de notas, que pode custar a quem dirige a expulsão da plataforma. Um empreendedor, por meio de seu engenho, tem oportunidades de crescer. O motorista ganhará sempre o mesmo que os outros, e seu maior esforço tem, na vida real, uma única premiação. Poder continuar trabalhando. E não é pouco: em geral, esses apps escravizam quem precisa manter uma renda digna.
A Justiça britânica então decidiu que o Uber terá de garantir um salário mínimo por hora trabalhada — e a hora trabalhada vale quando o motorista liga o app. Dá direito também a não trabalhar quando se está doente, a férias e plano de previdência. O Uber responde que, em momentos de ociosidade, quando há mais motoristas do que passageiros, se verá obrigado a impedir muitos de acessar a plataforma. Se não, o negócio se tornará inviável.
A discussão é de uma complexidade imensa por muitos motivos. O principal é o seguinte: os carros autônomos já existem. Ainda antes de 2030, não haverá mais motoristas. O mesmo vale para os apps de entrega e tantos outros. O processo de automação de muitos desses serviços apenas começou e está para ser acelerado.
A lógica dos direitos trabalhistas que temos hoje depende de uma sociedade industrial em que grandes empresas contratam massas de pessoas para produzir. Na economia digital, grandes empresas contratam uma fração de pessoas. A força dos grandes sindicatos só vai diminuir, pois cada vez mais o trabalho será mais fragmentado e distribuído. Aquele Estado de bem-estar social não é mais sustentável. Tem de ser pensado outro.
O laissez-faire não é a solução. O que aconteceu nas décadas de 1920 e 30 no mundo, com a ascensão de governos autoritários e totalitários foi justamente fruto de uma crise de emprego que levou gente em desespero a virar as costas para a democracia liberal. Não é à toa que estamos vivendo uma versão daquilo.
O Estado tem de ser reinventado, assim como empresas e sociedade. No Brasil, claro, estamos ainda discutindo o papel social de uma petroleira estatal.
Bruno Boghossian: Pazuello culpa mutações do coronavírus para tratar pandemia como surpresa
Ministro fala em 'nova etapa' e tenta reduzir responsabilidade por tragédia continuada
Eduardo Pazuello descobriu o tamanho da "gripezinha". Depois de uma reunião nesta quinta (25), o ministro da Saúde culpou as mutações do coronavírus pela situação crítica registrada em várias cidades do país. "Estamos enfrentando uma nova etapa dessa pandemia. O vírus mutado nos dá três vezes mais contaminação", declarou.
Apesar de ocupar o cargo há nove meses, o general falou como se tivesse acabado de chegar ao gabinete. O discurso da "nova etapa" parece um esforço para pintar a tragédia continuada como uma crise imprevista. O objetivo é buscar uma rota de fuga e apagar o comportamento desastroso do governo no último ano.
Pazuello apontou as mutações como vilãs inesperadas, mas a microbiologista Natalia Pasternak explica que o surgimento delas era previsível. "Variantes aparecem em locais onde o vírus corre solto. Não fomos pegos de surpresa", diz. "Elas são preocupantes, mas isso não quer dizer que a situação estava sob controle. As variantes agravam o problema."
O ministro disse ter monitorado o surgimento dessas cepas em outros países e citou o Reino Unido, onde o governo impôs medidas de restrição assim que descobriu detalhes de uma nova mutação. Pazuello quase demonstrou espanto com a variante brasileira P1 e com o colapso de hospitais pelo país. Ele só não quis dizer que essa linhagem já é conhecida por aqui há pelo menos 40 dias.
Em busca de imunidade, o general afirmou que havia uma "situação de estabilidade" em novembro e que esperava manter a situação com a chegada da vacina. Três meses se passaram, e o governo não consegue enviar para o lugar certo as doses que tem. Para piorar, continua brigando com laboratórios que poderiam ampliar a oferta de imunizantes.
O general acordou atrasado. O Brasil tem uma média diária superior a 1.000 mortes há mais de 35 dias, mas Pazuello só quis reconhecer o problema agora. Segundo Pasternak, há tempo para contornar a crise: "O que não se pode fazer é jogar a culpa na variante e cruzar os braços".
Eliane Cantanhêde: Petistas e bolsonaristas, tudo a ver no 'nacionalismo' e na 'visão social'
Bolsonarismo e PT, tudo a ver na Lava-Jato, Moro, MP, mídia, Petrobrás, reformas e mercados
Em nome de um “nacionalismo” anacrônico e de uma “visão social” puramente populista, vale tudo, até o PT apoiar a clara intervenção que derrubou as ações da Petrobrás e a credibilidade do Brasil mundo afora. O resultado é uma curiosa situação: o presidente Jair Bolsonaro corre para jurar que é o que não é, liberal, privatizante e respeitador das estatais, enquanto petistas defendem o que Bolsonaro realmente é, corporativista, estatizante e intervencionista. Coisas do Brasil. Coisas da polarização.
O “novo” Congresso aproveita o ensejo. Primeiro, a Câmara pagou pedágio, confirmando a prisão do deputado Daniel Silveira (PSL-RJ) determinada pelo Supremo. Depois, escancarou as porteiras, não para as boiadas do ministro Ricardo Salles, mas para as suas próprias boiadas. Com o enterro da Lava Jato, sem choro da esquerda nem vela da direita, o ambiente é bem favorável. A hora é agora!
A tal PEC da imunidade parlamentar, carimbada como PEC da impunidade, surgiu do nada, sem aviso prévio e sem passar por comissões e ritos antes de desabar direto no plenário. Seu efeito mais estridente é que deputados e senadores dificilmente poderão ser presos. Num resumo caricato, se Sua Excelência for pego, fotografado e filmado com a mão na botija, roubando dinheiro público, vai ter tempo para articular e se livrar.
Um ministro do Supremo, digamos, Alexandre de Moraes, não vai poder mais mandar prender em flagrante um deputado, digamos, o bolsonarista Silveira, quando ele atacar a democracia e as instituições e, de quebra, cometer um crime comum: ameaçar dar uma surra num ministro da alta Corte. Qualquer decisão terá de esperar o plenário do STF e depois a Câmara.
A intenção, como admite o novo presidente da Câmara, Arthur Lira, é evitar que a coisa chegue até onde chegou com Daniel Silveira – que está na cadeia – e estabelecer que só o próprio Congresso possa autorizar cassação ou punição a parlamentares. Deixa para o Conselho de Ética da Câmara, aquele que devidamente cassou o mandato da deputada Flordelis, ré pelo assassinato do próprio marido. E para o Conselho do Senado, que diligentemente puniu o “senador da cueca”. O quê? Não foi bem assim?!
Na admissibilidade da PEC da impunidade, como na defesa da intervenção na Petrobrás, lá estavam juntos bolsonaristas e todos os outros “istas”: emedebistas, peessedebistas, pepistas, trabalhistas e... a presidente do PT, Gleisi Hoffmann. Todos abraçados ao Centrão para se autoblindarem e se tornarem mais cidadãos do que o “resto” dos cidadãos. No dia em que o Brasil chorava a marca de 250 mil mortos na pandemia, o Congresso fazia a festa da impunidade e o Planalto, a da aglomeração sem máscara para duas posses desimportantes.
A polarização de 2018 parece sólida como uma rocha para 2022, mas os dois extremos já não parecem tão opostos como pareciam em questões centrais: Lava Jato, Sérgio Moro, Ministério Público, mídia, independência da Petrobrás, estatização, reforma da Previdência, reforma administrativa, populismo e até os arranjos “de bastidores” no Congresso. Ou alguém esqueceu que o PT estava com o pé na campanha do candidato de Bolsonaro para a presidência da Câmara? E que apoiou o candidato dele no Senado?
A rejeição ao mercado está neste contexto. Da boca para fora, bolsonaristas e petistas atacam; entre quatro paredes, a história é outra. Tanto nos dois governos Lula quanto no governo Bolsonaro as relações com o grande capital, os maiores grupos empresariais e as eternas “elites dominantes” são bem confortáveis. Até os ataques e estranhamentos estão devidamente “precificados”, para usar um termo do próprio mercado.
Bom 2022!
Vera Magalhães: Sem luto nem luta
O Brasil atingiu a inimaginável marca dos 250 mil mortos por Covid-19 sem que seu presidente tenha tido a decência mínima de decretar luto oficial, de determinar medidas enérgicas para conter uma curva que só empina ou de se empenhar para garantir vacina e auxílio emergencial a um país entregue à pandemia sem perspectiva de saída.
Assim como outras marcas tenebrosas em um ano de circulação do novo coronavírus em terras brasileiras, essa também passou em branco pelo Palácio do Planalto e pela Esplanada dos Ministérios. Vamos enterrando pessoas aos milhares todos os dias, sem que o governo federal reconheça a gravidade da crise sem precedentes que atravessamos.
Diante de uma tragédia que nenhum de nós, crianças ou velhos, viveu antes, Jair Bolsonaro está fazendo planos de mandar buscar em Israel não vacinas, mas spray nasal experimental.
Eduardo Pazuello está enviando doses escassas de imunizantes não para o Amazonas, epicentro das mortes, da falta de oxigênio e da nova cepa do vírus, mas para o vizinho Amapá, de população e urgência infinitamente menores.
O presidente não está se ocupando de exigir providências do general que enfiou na Saúde, mas do presidente da Petrobras. Não está empenhado em trocar o responsável pelo fracassado Plano Nacional de Imunização, mas sim o encarregado da publicidade oficial.
A pressa não é para conceder auxílio emergencial a quem precisa, depois que essa ajuda foi suprimida sem nada para ser colocado no lugar em dezembro, mas para subsidiar combustível para caminhoneiros que têm o presidente da República como refém.
No Congresso, o auxílio emergencial e o acordo para a compra de vacinas de outras empresas com que Bolsonaro achou por bem não negociar podem esperar. O que é para ontem é a aprovação de uma Proposta de Emenda à Constituição ampliando ainda mais os limites da já praticamente plena imunidade parlamentar. A imunidade ao vírus que espere. As pessoas que se virem.
Nesse cenário de absoluta anomia — estatal, social, cívica —, vivemos de improvisos que têm por objetivo mitigar o colapso no enfrentamento da pandemia.
O mais recente deles veio de novo do Supremo Tribunal Federal, que virou uma Corte de emergências de toda sorte. De acordo com a decisão tomada na quarta-feira, estados e municípios poderão adquirir vacinas por conta própria.
Trata-se de algo a ser celebrado, pois parece ser uma possibilidade ao menos de que saiamos da letargia em que o Plano Nacional de Imunização se encontra, justamente porque foi sabotado pelo presidente da República, por seus acólitos e seu general.
A chancela do STF é antes de tudo um atestado de fracasso, um carimbo da inépcia do Brasil para lidar com a crise. Outros virão: a decisão abre espaço também para que, no futuro, empresas privadas possam adquirir vacinas, o que contraria a lógica do Sistema Único de Saúde.
Mas, se não for isso, quando teremos a maioria da população imunizada, de forma a que se possa pensar em começar a reconstruir a economia, a educação e a vida das pessoas, que estão em decomposição há um ano?
Vivemos sob um regime que banaliza e precifica mortes, não importa as cifras que elas atinjam. É como se o presidente visse o taxímetro da pandemia correr e continuasse rodando despreocupadamente, fazendo barbeiragens em todos os demais assuntos nos quais esbarra pelo caminho.
Somos o vice-líder mundial em mortes por Covid-19, só abaixo dos Estados Unidos. E, no entanto, temos apenas a sexta maior população do mundo. Com o segundo maior número de mortes, só vacinamos menos de 4% da população. E assistimos a essa sucessão de indicadores do nosso fracasso como quem acompanha uma entediante partida de tênis, virando o pescoço indiferentes para um lado e para o outro.
Um ano depois, a constatação é que fomos derrotados. E não há nem choro nem indignação, só letargia.