Presidente repete líderes autoritários e atenta contra direitos civis operando o Direito, aponta levantamento
Bruno Ribeiro, Daniel Bramatti e Marcelo Godoy
Era 2 de julho de 2018 quando o então candidato à Presidência pelo PSL, Jair Bolsonaro, revelou em entrevista um desejo: se eleito, pretendia ampliar de 11 para 21 o número de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Seria, segundo sua justificativa, uma forma de pôr “juízes isentos lá dentro”. Durante a campanha, o tema adormeceu. Mas, pouco depois da posse, o presidente tentou uma manobra para mexer na composição da Corte. Incluiu-se na reforma da Previdência um artigo que retirava da Constituição a idade-limite de 75 anos para os ministros do Supremo, deixando que ela fosse definida em lei complementar.
A medida foi dissimulada em meio à Proposta de Emenda à Constituição patrocinada pelo ministro da Economia, Paulo Guedes. Não haveria justificativa para estar ali, até porque o impacto de 11 aposentadorias é irrisório para o caixa da Previdência. Tratava-se, segundo os críticos, do primeiro ataque à democracia e à independência dos poderes feito pelo governo de Bolsonaro. A retirada da idade-limite da Constituição permitiria ao presidente fixar por lei nova idade-limite, menor do que a atual, aposentando uma leva de ministros da Corte.
“É o modelo posto em prática na Venezuela e na Polônia”, diz Luis Manuel Fonseca Pires, juiz e professor de Direito Administrativo da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). “Ou aposentam ministros ou aumentam o número para garantir o controle da Corte Constitucional. O novo autoritarismo age por meio do Direito para obter legitimidade.” Em 2004, Hugo Chávez elevou o número de ministros da Corte Constitucional da Venezuela de 20 para 32. Na Polônia, o partido Direito e Justiça (PiS) usou a desculpa do combate à corrupção para tentar aposentar à força 27 dos 72 juízes da Corte Suprema.
Levantamento do Estadão sobre a atuação de Bolsonaro em 20 temas mostra que, desde sua posse, o presidente e seus ministros editaram 88 decretos, medidas provisórias, portarias, pareceres ou resoluções ou patrocinaram projetos de lei e alterações legais que incluíam medidas que corroíam o Estado ou atentavam contra as liberdades civis e direitos constitucionais. Ou seja, a cada 11 dias, ao menos uma medida desse tipo foi criada pelo governo. O levantamento leva em conta a avaliação de analistas. Trata-se de um processo de “cupinização” do governo das leis, na expressão do professor emérito da USP e ex-ministro das relações Exteriores Celso Lafer. “Você vai ‘cupinizando’ as regras do Direito”, disse. “No fundo, o que o governo Bolsonaro busca é, fugindo das instituições e das regras do Direito, sempre definir a exceção para obter a servidão voluntária e ‘cupinizar’ as instituições.”
Segundo Pires, o Direito é a forma usada por populistas autoritários para criar exceções com as quais modificam estruturas do Estado, atacam a democracia e negam direitos. Suas decisões são sempre tomadas levando em conta a oposição entre amigos e inimigos.
Lafer e Pires usam a mesma pista para compreender esses governos e suas relações com o Direito: as obras do pensador francês Étienne de La Boétie e do jurista alemão Carl Schmitt. “La Boétie trata da servidão voluntária e, evidentemente, o que os bolsonaristas acabam logrando é a servidão voluntária de seus sequazes”, afirma Lafer. O ex-ministro prossegue: “Para Schmitt não interessa a normalidade; interessa a exceção. O que caracteriza o pensamento dele é poder definir a exceção, a capacidade de poder defini-la. O soberano tem o poder de declarar a exceção. No fundo, o que Bolsonaro quer é ter o poder soberano de declarar a exceção.”
Protestos contra Jair Bolsonaro
É isso que explicaria ações do governo, como a Medida Provisória 979, de 2020, que autorizava Bolsonaro a nomear reitores provisórios para a universidades federais enquanto durasse a pandemia de covid-19. A intervenção na autonomia das universidades – identificadas pelo governo como centros dominados por inimigos esquerdistas – foi barrada pelo então presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), que devolveu a MP sem analisá-la. Era a segunda vez que Bolsonaro tentava, sem sucesso, modificar o processo de escolhas dos reitores.
O mesmo modo de agir – não para a adoção de políticas, mas para atacar inimigos escolhidos pelo governo – teria marcado a ação do governo em outra área: a do Meio Ambiente. Populações indígenas e a atuação de ecologistas e de ONGs ligadas à Amazônia foram escolhidas como alvo pelo governo, a ponto de o Supremo ter obrigado Bolsonaro a estabelecer um plano de combate à covid-19 nas aldeias e ter destituído o presidente do Ibama sob a acusação de ele ser conivente com a exploração ilegal de madeira. Quase metade das normas que corroem a base legal do Estado teve como alvo enfraquecer a defesa do Meio Ambiente.https://datawrapper.dwcdn.net/dU6Ci/10/
Para a subprocuradora-geral da República Luiza Frischeisen, governos autoritários têm projeto de destruição de direitos. No Brasil, muitas das medidas contestadas nesta gestão foram adotadas como portaria ou decreto, em razão da resistência do Congresso em mudar as leis, como no caso das legislações ambiental e de armas. Ela destaca ainda o perigo de mudanças na lei eleitoral servirem para restringir a democracia e a representação popular. “O Ministério Público é resiliente e seus integrantes vão cumprir seu dever. Assim como o STF, que entendeu muito bem que deve ser uma barreira à desconstrução da Constituição.”
Lafer também destaca a resistência no Brasil a medidas do atual governo. “A tradição política do Direito é conter o arbítrio. É o que dizia Rui Barbosa na Oração aos Moços. Ele sempre procurou assegurar o governo das leis e não o dos homens. Cabe ao advogado, nesse sentido, um tipo de magistratura. É isso que muitos juristas, preocupados com a res pública, procuram fazer: exercer essa magistratura.”
Juntamente com o Judiciário, as universidades e a área ambiental, a imprensa é um dos alvos prioritários da ofensiva antidemocrática de Bolsonaro. Levantamento da organização Repórteres Sem Fronteiras (RSF), divulgado na semana passada, identificou 87 ataques do presidente à imprensa nos primeiros seis meses deste ano, o que representa um aumento de 74% em relação ao semestre anterior. Foram 49 ataques contra a imprensa em geral, 28 contra veículos específicos e dez contra jornalistas. Se considerado o “sistema Bolsonaro” – grupo que inclui a família e os ministros do presidente –, o número de ataques no semestre chega a 331. No ranking de agressores, Bolsonaro está em primeiro lugar, seguido por três filhos de seus filhos.
Também divulgado na semana passada, o Relatório Global de Expressão, da organização Artigo 19, qualificou o Brasil como uma “democracia em crise”. No relatório, que é relativo a 2020, o País registrou só 52 pontos na escala de liberdade de expressão, que vai de zero a cem, sendo zero a nota de um país sem liberdade de expressão e cem a de total liberdade. Foi a menor pontuação brasileira no indicador desde a primeira medição, em 2010.
O documento enumera 464 situações em que o presidente, ministros ou assessores próximos “atacaram ou deslegitimaram jornalistas e o seu trabalho, nível de agressão pública que não é visto desde o fim da ditadura militar”. A Artigo 19 é uma organização que promove o direito à liberdade de expressão e de acesso à informação no mundo. Seu nome tem origem no 19.º artigo da Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU.
O Estadão procurou o Palácio do Planalto e a assessoria da Casa Civil para que comentassem o papel do governo na erosão da democracia, mas não houve resposta aos questionamentos da reportagem.
Imagens de Jair Bolsonaro
Cargos públicos são utilizados para controle
Bolsonaro garante a execução de políticas controversas a partir da nomeação de aliados para funções estratégicas
Bruno Ribeiro, Daniel Bramatti e Marcelo Godoy, O Estado de S. Paulo
Em paralelo às tentativas de mudar a legislação para fortalecer seu controle sobre o Estado, Jair Bolsonaro nomeou para cargos-chave do funcionalismo aliados dispostos a executar suas políticas mais controversas. Ele responde a um inquérito por tentativa de interferência na Polícia Federal.
No Ministério da Saúde, por exemplo, sob o comando do general Eduardo Pazuello, o corpo técnico foi ocupado por nomes como a médica Mayra Pinheiro, a “capitã cloroquina”, e Hélio Angotti Neto, que preparou um “Dia D” para distribuir o remédio em meio à falta de oxigênio nos hospitais. No Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), órgão com décadas de expertise no monitoramento do desmatamento, houve proibição de realização dessa função, transferida para o Ministério da Agricultura. Na Fundação Zumbi dos Palmares, cuja função é promover a cultura negra, após a indicação do jornalista Sérgio Camargo houve anúncio de redução de metade do acervo da instituição, tido como “marxista”.
Sua proposta de reforma administrativa é alvo de crítica de opositores por, segundo eles, dar chances de perseguição e demissão de servidores de carreira não alinhados aos objetivos do governo atual.
“Se aprovada, permitirá a perseguição política, ainda mais em um governo que não gosta de servidores que possam ter independência funcional”, diz o deputado Alessandro Molon (PSB-RJ). Ele considera a reforma necessária, mas ressalta: “Duas coisas têm de ser feitas para melhorar o serviço público brasileiro: regulamentar a avaliação de desempenho (dos servidores) e criar mais carreiras transversais. A reforma do Bolsonaro não faz nenhuma das duas coisas. Ela abre brechas para a demissão de servidores por perseguição e permite a indicação política para cargos de natureza técnica”.
Com 32 meses de mandato, Bolsonaro já pôde indicar seis diretores-gerais de agências reguladoras, órgãos com função de balancear interesses de governo, consumidores e setor privado. Os dirigentes têm mandato.https://arte.estadao.com.br/uva/?id=zjwYdy&show_brand=false
Na Agência Nacional do Petróleo (ANP), com a indicação do contra-almirante Rodolfo Saboia, os militares passaram a ter controle do Ministério de Minas e Energia, da presidência e do Conselho de Administração da Petrobras e da ANP. Na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), sob gestão do contra-almirante Antonio Barra Torres, o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), fez críticas pela demora na liberação da vacina Coronavac – os técnicos do órgão também impuseram restrições à Covaxin, defendida pelo governo.
“No passado, as agências já foram alvo de interferência política, com prejuízo para toda a sociedade”, afirma o coordenador executivo do Centro de Gestão de Políticas Públicas do Insper, André Luiz Marques. Ele cita ações da ex-presidente Dilma Rousseff para controlar preços de energia. “Nas agências, você precisa de um corpo técnico forte, não pode ter loteamento de cargos. Senão, as relações ficam desiguais, e quem paga por isso geralmente é o consumidor.”
Não há a menor dúvida de que essa reforma, se aprovada, permitirá a perseguição política, ainda mais em um governo que não gosta de servidores que possam ter independência funcional”Alessandro Molon, deputado (PSB-RJ)
O caso da Polícia Federal é o que mais teve repercussão. Em abril de 2020, o ex-ministro da Justiça e da Segurança Pública Sérgio Moro acusou o presidente de interferir no órgão. A PF no Rio investigava o senador Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ) após a Operação Furna da Onça apurar corrupção na Assembleia Legislativa do Rio (Alerj) e chegar a Fabrício Queiroz, ex-assessor de Flávio (e amigo de Jair), nome central nas apurações de suspeitas de “rachadinhas” em gabinetes da família presidencial. Com Anderson Torres na Justiça, o novo diretor-geral Paulo Maiurino propôs a criação de um setor na PF, vinculado a ele, para investigar políticos que possuem foro especial.
ENTREVISTA
LUIS MANUEL FONSECA PIRES, JUIZ E PROFESSOR DE DIREITO DA PUC-SP
‘Há o surgimento de uma nova modalidade de regime autoritário’
Estudioso afirma que governo opera sob premissa de ‘amigos e inimigos’ como elemento estruturante
Daniel Bramatti, O Estado de S. Paulo
Estudioso da forma como o Direito é usado pelos governos autoritários de nosso século – à esquerda e à direita – o professor de Direito Administrativo da PUC-SP e juiz Luis Manuel Fonseca Pires defende a tese de que os atos e as políticas do governo Jair Bolsonaro não podem ser reduzidos a uma questão de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade. “Não estamos mais operando no campo do legal ou ilegal. O que se está operando é uma produção de políticas públicas, atos políticos e administrativos que têm sempre a premissa da equação amigo e inimigo como elemento estruturante de suas ações.”
Autor do livro Estados de Exceção, a usurpação da soberania popular, Pires afirma ser necessário atualizar a concepção clássica de estado de exceção, pois, na atualidade, ela é acompanhada da ideia de “volatilidade do inimigo”. Ora ele é uma instituição, ora ele é um grupo.
● Há um denominador comum por trás das medidas legais do governo Bolsonaro?
É preciso entender que o autoritarismo contemporâneo é um processo em construção. Ele não se dá em um dia, em um momento específico. É um processo que se elabora permanentemente. É preciso ter consciência de que isso não é um sinal de fragilidade da ascensão do autoritarismo. É simplesmente que essa é a estratégia do terceiro milênio, ele se elabora dessa forma gradual. É uma construção que opera por fragmentação. O autoritarismo contemporâneo seleciona âmbitos da vida civil e instituições públicas que ele ataca sistematicamente, mas de um modo circular. Ora é preciso atacar o Judiciário, ameaçar o impeachment de algum ministro, depois, deixa-se isso de lado e se vai para um âmbito civil. Por exemplo: a liberdade de imprensa. E é preciso atacar e massacrar essa liberdade. O estado de exceção tradicionalmente se estrutura pela equação amigo e inimigo. No romance (1984) ninguém sabe direito se Emanuel Goldstein existe ou não, se é uma lenda. Mas há uma cultura de ódio contra ele porque o estado totalitário precisava ter um inimigo, porque sem um inimigo ele não sobrevivia. Já o estado de exceção contemporâneo tem a estratégia de mudar os campos de ataque. Ele não pretende ser totalitário. Ele pretende ir minando vários campos. O pressuposto ainda é o mesmo: ele precisa ter o inimigo como estruturante de suas ações. Os atos e as políticas públicas do governo Bolsonaro não podem ser reduzidos a uma questão de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade. Nós não estamos mais operando no campo do legal ou ilegal, porque todos os governos podem praticar medidas legais ou ilegais que devem ser corrigidas. O que se está operando é uma produção de políticas públicas, atos políticos e administrativos que têm sempre a premissa da equação amigo e inimigo como elemento estruturante. Mas com a estratégia da circularidade. Há algo que é preciso atualizar na concepção clássica de estado de exceção, que é mais um motivo para chamarmos de ‘estados de exceção’ na atualidade, que é a ideia da volatilidade dos inimigos.
● Por que o inimigo agora é difuso, ao contrário do que ocorria nos autoritarismo do século 20?
Houve uma larga produção de pensamento crítico à esquerda e à direita após a 2.ª Guerra Mundial sobre os absurdos produzidos pelo estado de exceção clássico, que se identificou com a ideia do totalitarismo, a ideia da produção de um homem novo, do domínio de todos os campos ao mesmo tempo. A partir dos anos 1970, na América Latina, você começa a contar com o uso do Direito de uma forma mais sofisticada, mascarando a produção da exceção. Tanto porque o pensamento crítico não tolerava mais isso quanto pela legitimidade que o Direito dá às situações arbitrárias. Seria muito melhor para a construção da legitimidade o uso da ação judicial. Esse é um modo diferente do novo autoritarismo. Ele tem o cuidado de dissimular suas práticas e precisa contar muito mais com o Direito como aliado. A cúpula nazista não estava preocupada com o Direito. Hoje é o contrário. Após a 2.ª Guerra há um processo de transformação em que há necessidade de se contar com a comunidade jurídica, com os legisladores, a produção de políticas, os atos do Executivo, com o Ministério Público, o Judiciário e as posições-chave nas universidades. Todos os lugares onde de algum modo se produzem atos, decisões e o ensino jurídico. As universidades têm dois motivos para serem atacadas: primeiro pela produção jurídica que podem oferecer e, segundo, por serem um local de pensamento crítico. Regimes autoritários contemporâneos têm os três pilares do pensamento crítico como inimigos: a Educação, a Cultura e a liberdade de imprensa. E operam com circularidade nos ataques aos inimigos. Precisam ter o inimigo do mês ou da semana. Numa semana ele é Leonardo Di Caprio. Na outra, o youtuber Felipe Neto ou o pensamento do Paulo Freire. A volatilidade é a marca da sociedade contemporânea. Mas sem o inimigo não se estrutura o estado de exceção. Nem no passado, nem no presente.
● A produção legal e infralegal do governo seria fundamental então para entender como o governo Bolsonaro opera?
É essencial ter produção jurídica para dar verniz de legitimidade. Essa é a ideia. Para que as medidas autoritárias não se apresentem como tais, elas precisam contar com o Direito para tentar dar uma racionalidade à produção da vontade política arbitrária. O elemento mediador do conflito entre a política e o Direito é a Constituição. Esta estabelece uma relação de valores fundamentais. Por exemplo: a ciência. Se a Constituição é a mediadora das vontades políticas, isso significa que as decisões possíveis dos governos devem estar no âmbito da ciência. Não se pode negar a ciência. Como então produzir políticas públicas negacionistas, acabar com distanciamento e o uso de máscaras na pandemia? Como tomar medidas contra o senso comum estabelecido pela ciência? Essa vontade política é arbitrária porque rompe com o horizonte de possibilidades que a Constituição deu. Em uma pandemia, não é uma alternativa legal você negar a pandemia. Quando a vontade política pretende impor o negacionismo, ela precisa atualmente do Direito, ao contrário do que ocorria no passado ou em regimes autoritários clássicos, como a Coreia do Norte.
● Nessa perspectiva, qual a importância do controle do STF?
É um objetivo que deve estar presente para a construção de um regime autoritário. Hoje, no Brasil, os pontos mais marcantes de resistência à ascensão do autoritarismo são a liberdade de imprensa, os movimentos sociais, o Poder Judiciário. E o Direito passa a ser utilizado como recurso de minar essa resistência. Ele é usado para escolher reitores de universidades que não foram os mais votados. Há ataques constantes à imprensa quando esta tenta identificar suspeitas de corrupção e o uso da Lei de Segurança Nacional para intimidar jornalistas e opositores pacíficos em protestos. O Direito é usado para minar os inimigos – e não a força bruta.
● Como esses governos mobilizam pessoas contra os inimigos?
As vontades políticas arbitrárias são mobilizadas por afetos políticos, por sentimentos. Aquilo que no passado se manifestava por meio de ordem administrativa, de detenção ou de execução, como na Noite dos Longos Punhais (a execução de líderes da S.A., a mando de Hitler, em 1934), hoje se manifesta no Direito. Ele é o repositório desses afetos. Ele tem o papel de converter os afetos políticos – como o ódio – em discursos pretensamente racionais. Como o ódio ao processo de conhecimento se materializa para calar professores e o desenvolvimento do pensamento crítico em sala de aula? Como fazer isso no terceiro milênio? É preciso do Direito para que ele se converta em discurso de pretensa racionalidade com o nome de escola sem partido.
● Mas não se trataria apenas de mera ‘passagem de boiada’?
Todas as vontades arbitrárias, que não se encontram na Constituição, para se manifestarem são estados de exceção. Os regimes autoritários contemporâneos não fecham o Parlamento ou o Judiciário. Eles funcionam com as instituições formalmente presentes. Essa nova estratégia mantém um grau de permanência na vida civil: não é preciso eliminar todos os órgãos de imprensa ou todas as políticas públicas ambientais. Vive-se com ataques, que os vão minando gradualmente, o que dificulta a produção do pensamento crítico. Pessoas que não se deram conta da gravidade da situação têm como horizonte as referências históricas. Elas dizem que este ou aquele não é um regime autoritário porque o Congresso está funcionando. O regime autoritário do passado tinha a meta de fincar a bandeira. Havia dia, mês e ano para celebrar sua instauração. Hoje o autoritarismo é fluido com a constante atualização dos inimigos a serem combatidos. Não vamos ter uma data para celebrar o fim da democracia, pois autoritarismo contemporâneo usa o símbolo da democracia como justificativa de suas medidas de exceção. O objetivo não é fechar universidades, mas capturá-las. O objetivo não é fechar o Supremo ou o Congresso, mas colocá-los ao lado de quem opera os estados de exceção. Bolsonaro não conseguiria fazer tudo isso sozinho. Ele precisa do apoio de outras forças. A volatilidade do inimigo é também traço da volatilidade do soberano nos estados de exceção. Ele não pode se estabelecer às claras; é uma fantasmagoria. O novo autoritarismo não tem uma meta. A meta é o presente. O que está acontecendo é o surgimento de uma nova modalidade de regime autoritário.
EXPEDIENTE
Editor executivo multimídia Fabio Sales / Editora de infografia multimídia Regina Elisabeth Silva / Editores assistentes multimídia Adriano Araujo, Carlos Marin e William Mariotto / Editor de Política Eduardo Kattah / Designer multimídia Vitor Fontes / Reportagem: Bruno Ribeiro, Daniel Bramatti e Marcelo Godoy / Edição de texto: Vitor Marques, Fernanda Yoneya e Valmar Hupsel Filho
Fonte:
O Estado de S. Paulo
https://www.estadao.com.br/infograficos/politica,sob-bolsonaro-a-corrosao-do-estado-e-das-liberdades-individuais,1185836