O que o presidente faz em política externa tem como propósito animar dentro do país seus eleitores fiéis e lhes dar um discurso para a próxima eleição presidencial
É um exercício interessante buscar o nome de Jair Bolsonaro no site Cablegate.org, que reúne um pacote de quase 260 mil telegramas diplomáticos do Departamento do Estado americano, vazados há uma década pelo site Wikileaks, de Julian Assange. Nesses telegramas, parte deles divulgados por um consórcio de jornais do qual fez parte EL PAÍS, há informações sobre as desconfianças e esperanças de Washington em relação à figuras de proa do então governo petista. Há também detalhes de lobbies, como o da venda (frustrada) de jatos para a Força Aérea Brasileira. O vazamento revelou, ainda, as personagens de interesse dos Estados Unidos no Brasil, e o número de vezes em que aparece o nome de Bolsonaro ilustra a importância que a diplomacia americana dava ao então deputado: zero.
Bolsonaro, na época, militava no baixo clero do Congresso, com pautas corporativas em favor de militares e policiais, ou servindo a lobbies, como o de subsídios a setores industriais que lhe inspiraram um dos raros projetos aprovados na Câmara. Transitava fora dos radares da embaixada americana, apesar de suas declarações, polêmicas e sem relevância para diplomatas estrangeiros. Já seu ministro do Gabinete de Segurança Institucional, Augusto Heleno, inspirou telegramas relatando a oposição do militar à criação da reserva indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. O telegrama da embaixada americana em Brasília considerava legítimas as razões para criação da reserva e concordava com o general em apenas um ponto: sem infraestrutura e apoio do Estado, a criação da reserva não daria condições adequadas de sobrevivência aos indígenas beneficiados.
Eleito presidente, Bolsonaro parece manter a alienação sobre política externa que marcou seu mandato parlamentar. Sua demora em reconhecer a vitória do presidente eleito nos Estados Unidos, Joe Biden, não obedece a um projeto claro para a relação diplomática entre Brasil com os EUA, e sim a interesses de política interna. Manifestações de Bolsonaro, nesse campo, são calibradas para manter sua legião de apoiadores nas redes sociais, apreciadores de teorias conspiratórias, cuja marca, neste mês foi uma intensa atividade no debate sobre as eleições americanas, sintonizadas com o material divulgado por apoiadores de Trump.
Essa é a chave para compreender os gestos do Presidente da República na diplomacia: o que faz ou deixa de fazer em política externa tem, como propósito, animar, dentro do país, seus eleitores fiéis e lhes dar discurso para o debate eleitoral que pretende travar em 2022.
Desafios do Brasil na geopolítica? Estratégia para lidar com a Influência dos grandes atores globais na América Latina? Resposta às grandes causas civilizatórias no plano internacional? Tudo isso é tratado pelo presidente como um tormento que lhe rouba o tempo, e frustra o desejo de confraternizar tomando caldo e cana na rua e comendo pastel.
O Presidente da República não se encarrega de planejar, coordenar ou conduzir a política externa; limita-se a aprovar ou barrar iniciativas isoladas de seus subordinados com base em avaliações superficiais de fundo ideológico. Como boa parte das políticas do governo Bolsonaro, a única marca que une seus gestos para a comunidade internacional é a do improviso, inspirado pelo calor do momento, ou pelos conselhos de assessores próximos, também movidos pela guerra ideológica que empolga os militantes nas redes sociais.
“Minha vida aqui é uma desgraça problema o tempo todo; não tenho paz para absolutamente nada”, desabafou Bolsonaro, para surpresa dos próprios assessores, na terça-feira, 10, no mesmo dia em que ameaçou reagir com “pólvora” às possíveis pressões do presidente eleito Joe Biden, para proteção da Amazônia. Não se sabe que tipo de paz esperava o candidato Jair Bolsonaro ao concorrer para a Presidência da República de um país com uma das piores distribuições de renda da América Latina, sérios problemas de custos para fazer negócios, engolfado em recessão, com uma dívida interna crescente e um sistema partidário fragmentado (do qual se beneficiou).
A diplomacia com sabor de cana e pastelzinho fez mais uma aparição nesta terça, 17, no discurso de abertura de Bolsonaro na Reunião dos BRICS, grupo que reúne a Rússia e os grandes emergentes China, Brasil e África do Sul. Bolsonaro abriu seu pronunciamento na defensiva, jurando esforços para conservar a Amazônia e logo mudou de tom, avisando que, em breve, anunciará nomes de países que criticam o Brasil mas importam madeira ilegal – insistindo na troca de acusações como resposta às preocupações internacionais com a falta de convicção do governo brasileiro em relação aos compromissos do país na área ambiental.
No discurso do BRICS, misturou defesa do nacionalismo anti-globalista defendido por Trump e pelo chanceler Ernesto Araújo com reivindicações tradicionais multilateralistas do Itamaraty, como a ação conjunta dos Brics e o assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas.
Na falta de um Presidente interessado em se aprofundar no assunto e capaz de dar coerência à atuação diplomática do governo, com um ministro de Relações Exteriores que defende para o Brasil a condição de “pária internacional”, hoje cabe às diversas instâncias do governo o esforço de retardar a caminhada do país rumo à irrelevância na tomada de decisões internacionais.
Discretamente, em fevereiro, por exemplo, o ministério da Agricultura conseguiu fechar um inédito acordo com a Argentina, de redução de burocracia no comércio bilateral, que poderá abrir caminho, especialmente, a vendas de frutas, troca de material genético em pecuária e abertura de mercados alternativos no país vizinho para produtos como leite destinado à alimentação animal. Questões mais importantes de interesse comum, que exigiriam instâncias superiores à área técnica, como um acordo para certificação de animais livre de febre aftosa ficaram em suspenso, porém, à espera de melhores condições diplomáticas, enquanto o presidente brasileiro, em suas poucas manifestações sobre a Argentina, hostiliza o mandatário argentino, Alberto Fernandez, cuja eleição lamentou publicamente.
A aproximação discreta com a Argentina, na área comercial, é uma rara iniciativa com resultados concretos no entorno sul-americano, onde mudanças políticas trazem ao Brasil consequências econômicas, de segurança e sociais, com repercussões nas correntes migratórias, nas oportunidades de negócio, no combate à criminalidade e na segurança de comunidades de brasileiros no exterior. As atitudes de Bolsonaro e seu chanceler, porém, apagam o esforço feito pelo Brasil no passado para se credenciar como mediador nas questões internacionais, movido por critérios técnicos e diplomáticos.
Na posse do novo presidente da Bolívia, de quem ainda importamos gás para a indústria paulista e onde estudam dezenas de milhares de brasileiros, o Brasil esteve representado burocraticamente, pelo embaixador brasileiro em La Paz; na recente convulsão política no Peru, limitou-se a uma nota breve, em que indicou satisfação com a previsão de novas eleições em 2021 e saudou o anúncio do novo governo – que cairia, sob protestos populares, quatro dias depois. Ao servir de palco para uma visita de fins eleitorais de um enviado de Trump à fronteira da Venezuela, em setembro, o Brasil aprofundou sua desmoralização como ator relevante nas negociações para resolver a crise política no país.
A situação da Venezuela, aliás, deve ser um dos assuntos de uma das primeiras iniciativas anunciadas pelo futuro governo Joe Biden, uma “cúpula pela democracia” vista com desconfiança no Palácio do Planalto, com potencial para tornar-se um constrangimento para Bolsonaro.
O governo Joseph Biden, nos Estados Unidos, em algum momento, terá de ser reconhecido em Brasília. Já é, de fato, um dos principais desafios para a política externa sem cabeça do governo bolsonarista. Foi magro, quando não claramente negativo, o saldo da subordinação da diplomacia brasileira aos interesses de Washington, em iniciativas nas Nações Unidas e em outras instâncias multilaterais, como o Banco Interamericano de Desenvolvimento, no qual Trump preteriu a candidatura brasileira a uma vice-presidência em favor de um nome indicado por Honduras.
Quando os produtores de aço no Brasil, no ano passado, discutiam a retirada das cotas que limitam as exportações àquele país, foram surpreendidos por Trump com a decisão de uma sobretaxa até mesmo em produtos siderúrgicos usados como matéria-prima nas aciarias americanas; a pedido de Bolsonaro, evitou-se a sobretaxa, apenas para o governo se ver surpreendido, em 2020, com a reivindicação – atendida – para que o Brasil deixasse de vender toda a cota prevista aos EUA, deixando lugar para produtores locais em regiões americanas de interesse eleitoral para Trump.
O raro gesto positivo em matéria de comércio bilateral foi obtido já em clima de campanha de Trump à reeleição: um acordo de facilitação de comércio, que empresários dos dois países e ambos os governos começaram a discutir em meados de 2019 e se apressaram a fechar em meados do ano. Foi saudado como “ambicioso” por empresários brasileiros, por trazer avanços concretos em matéria de transparência, autorização para uso de documentos eletrônicos, desburocratização nas fronteiras e segurança no comércio de bens perecíveis. Mas deixou de fora os principais obstáculos à venda de mercadorias brasileiras no mercado americano, as chamadas barreiras técnicas e fitossanitárias, que demandam visitas de especialistas e adaptações nem sempre possíveis nos processos de produção dos exportadores no Brasil.
Muitos dos avanços saudados pelos empresários brasileiros dizem respeito a facilidades para importar, e não exportar, produtos, com a redução do chamado custo Brasil e a aplicação, aqui, de práticas já adotadas nos EUA. É um benefício da internacionalização do qual os antigobalistas do bolsonarismo nem suspeitam: acordos internacionais servem para confrontar pressões de lobbies corporativos e adotar medidas que aproximam o país das melhores práticas de nações desenvolvidas. Os verdadeiros ganhos do acordo com os EUA dependerão, porém, de medidas ainda a serem tomadas pelos governos, de Biden (com envio de missões técnicas, por exemplo), e de Bolsonaro (com aprovação do acordo no Congresso, tarefa em que a anomia da diplomacia bolsonarista falhou miseravelmente no caso do Chile, com acordo aprovado desde 2018, mas paralisado, à espera, até hoje, do aval dos parlamentares brasileiros).
Biden, às voltas com problemas prementes, como a prioridade ao combate à pandemia, as expectativas de respostas de política interna ao racismo sistêmico nos EUA e a disputa mundial de influência com a China, que inclui restrições a equipamentos chineses na tecnologia 5G de transmissão de dados, tende a evitar confronto direto com o Brasil, mesmo em sua anunciada prioridade para o combate ao aquecimento global. Entrevistas recentes do ex-presidente Barack Obama, que teve Biden como vice-presidente e conselheiro em temas internacionais, mostram disposição dos democratas em tratar o Brasil com alguma deferência, embora o começo não tenha sido promissor, com a reação irritada de Bolsonaro à oferta de uma linha R$ 20 bilhões para ajudar na proteção da Amazônia e evitar “consequências econômicas significativas”.
Até agora, Bolsonaro cuida da relação com o novo governo nos EUA na base do improviso que marca sua anti-diplomacia. Só no segundo fim de semana de novembro, segundo a Folha de S. Paulo, Araújo pediu aos auxiliares cenários para lidar com uma eventual eleição de Biden. Segundo um experimentado funcionário do Departamento de Estado, a falta de iniciativa brasileira prejudica o Brasil, em um momento no qual Biden define seus primeiros passos no governo e anuncia iniciativas e os indicados do novo governo quase diariamente, para não deixar vácuo no noticiário que seja aproveitado por um Trump inconformado com a derrota.
Entrando ou não no radar da administração Biden em seus primeiros dias, Bolsonaro já tem marcado, para abril, um teste de seu relacionamento com a nova política dos EUA para o continente: nesse mês, na Flórida, o governo americano hospeda a Cúpula das Américas, com todos os países do continente e, possivelmente, Cuba e Venezuela. Bolsonaro e seu chanceler terão a oportunidade de testar sua tese sobre o Brasil como pária internacional. Até agora, caminham a passos largos nessa direção, e Biden é um dos poucos chefes de Estado capazes de desviá-los do caminho. Mas, para isso, terão de mudar radicalmente o hábito de responder às preocupações com o meio ambiente empurrando as culpas para os outros, ou para esdrúxulas teorias conspiratórias.
Sergio Leo é jornalista e escritor, especialista em relações internacionais