Se persistirem as incertezas fiscais, a recuperação da economia, que já terá desafios como a fraqueza do mercado de trabalho e o fim do auxílio emergencial, será ainda mais difícil
As incertezas em relação às contas públicas brasileiras em 2021 aumentaram ainda mais nos últimos dias, por causa da confusão quanto ao financiamento de um programa de transferência de renda mais amplo que o Bolsa Família e das rusgas entre os ministros Paulo Guedes e Rogério Marinho. Para completar, pioraram as perspectivas de avanço da reforma tributária e da administrativa. Se os juros futuros seguirem em alta e o câmbio continuar a se desvalorizar, como reflexo do agravamento dos riscos fiscais, a recuperação da economia poderá ser ameaçada, num quadro de deterioração das condições financeiras. Os juros básicos em níveis ineditamente baixos ficarão em xeque.
A Selic a 2% ao ano é um dos maiores trunfos para o pós-pandemia. A avaliação dominante é que a taxa poderá continuar nesse nível por alguns trimestres, apesar da alta forte dos preços dos alimentos, um reflexo da disparada da inflação no atacado, devido à desvalorização do câmbio e ao aumento das commodities. O ponto é que a ociosidade na economia é monstruosa, o que tem se traduzido em preços de serviços em níveis muito baixos, inferiores a 1% no acumulado em 12 meses.
Além disso, as expectativas de inflação estão sob controle. As previsões apontam para um IPCA abaixo das metas perseguidas pelo Banco Central (BC) em 2020 e 2021 e exatamente no alvo em 2022 e 2023.
A continuidade dos juros nos atuais níveis é fundamental para impulsionar a economia, que amargou uma recessão cavalar entre o segundo trimestre de 2014 e o quarto trimestre de 2016, cresceu a uma taxa um pouco superior a 1% ao ano em 2017, 2018 e 2019 e terá o maior tombo da história em 2020, por causa do impacto da pandemia. Os efeitos das taxas baixas ficam claros no “crescimento expressivo de setores sensíveis a crédito – principalmente o imobiliário e, em segunda medida, o de vendas de automóveis”, como nota, em relatório, o Itaú Unibanco. Além disso, os juros menores contribuem para aliviar a situação fiscal, num cenário em que a dívida bruta se encaminha para 100% do PIB. Para completar, taxas baixas ajudam a situação financeira de empresas e famílias.
Colaborar para que os juros possam seguir nos níveis atuais deveria ser uma das prioridades do governo. Isso exigiria um compromisso firme com o ajuste das contas públicas, necessário num país que tem uma dívida elevada, com taxas variáveis e prazos relativamente curtos. O que se vê, porém, não é isso. Os sinais são de que, para montar o programa de transferência de renda, não há disposição de tomar decisões difíceis. A percepção é que o teto de gastos será furado em 2021 por meio de algum subterfúrgio. Na semana passada, houve o anúncio da ideia estapafúrdia de financiar o Renda Cidadã com parte dos recursos destinados ao pagamento de precatórios e ao Fundeb (o fundo para complementação da educação básica). A proposta foi bombardeada pelos especialistas em contas públicas, que classificaram a iniciativa de usar dinheiro dos precatórios como “contabilidade criativa” e “pedalada fiscal”. O ministro da Economia, Paulo Guedes, se disse por fim contrário à medida, mas esteve presente no anúncio da proposta, não se opondo naquele momento a ela. Nesse cenário, há uma piora significativa dos preços dos ativos brasileiros. Os juros futuros e o risco país aumentam, o câmbio se deprecia e a bolsa cai.
Essa combinação leva a um aperto das condições financeiras. Nas estimativas do ASA Investments, “mantidos os patamares atuais de nível de juros futuros, risco país, índice Bovespa e outros indicadores, teríamos o crescimento econômico de 2021 reduzido para 1,2%, contra nossa projeção de 2,1%, já substancialmente abaixo do consenso Focus, de 3,5%”, aponta a instituição. “Teríamos um crescimento pífio, que nos condenaria a manter uma taxa de desemprego praticamente inalterada ao longo de 2021, em torno de seu recorde histórico de 16%, número que estimamos para o final deste ano”, dizem os economistas do ASA. Se o câmbio ficar muito pressionado, os aumentos de preços, hoje concentrados principalmente nos alimentos, podem se disseminar. As expectativas de inflação começariam a piorar, levando o BC a ter que elevar a Selic prematuramente.
Fazer um programa de transferência de renda mais amplo é uma ideia que faz todo o sentido num país tão desigual quanto o Brasil. A proposta, contudo, precisa ser bem desenhada. É possível concebê-la e executá-la sem recorrer a malabarismos fiscais, como usar recursos dos precatórios. Mas isso requer decisões complexas e eventualmente impopulares, como unificar programas sociais já existentes.
Adotar medidas para tentar driblar o teto de gastos vai piorar o risco fiscal, elevando ainda mais os juros futuros e a cotação da moeda americana. O teto tem problemas, como a dificuldade para acionar os gatilhos que controlariam em especial os gastos com o funcionalismo. Além disso, as despesas não financeiras da União só poderão aumentar 2,13% em 2021, o que levará a cortes expressivos nos gastos discricionários (como custeio da máquina e investimento). Trata-se, porém, da âncora fiscal que dá alguma previsibilidade para as contas públicas do país. Uma eventual mudança do teto precisaria ser conduzida com muita habilidade, combinada a medidas que reduzam a rigidez do orçamento – como uma reforma administrativa de fato ambiciosa – e aumentem o potencial de crescimento da economia – como a reforma tributária.
A administração de Jair Bolsonaro vai na direção oposta. A disputa entre Guedes e o ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, evidencia a falta de rumo do governo de um presidente que só pensa na reeleição e não se dispõe a contrariar grupos de interesse. A percepção crescente é que não haverá iniciativas para deter a expansão das despesas obrigatórias e que a agenda de reforma vai ficar à deriva. Marinho e a ala política do governo planejam medidas que tendem a furar o teto, num quadro de isolamento cada vez maior de Guedes.
Se persistirem as incertezas fiscais, a recuperação da economia, que já terá desafios como a fraqueza do mercado de trabalho e o fim do auxílio emergencial, será ainda mais difícil. As condições financeiras apertadas vão minar a retomada e o cenário para o investimento seguirá turvo, afetando o crescimento de um país que desde 2014 exibe um desempenho econômico lamentável.