Se no ajuste fiscal o risco é o gradualismo, na segurança pública a ameaça é o açodamento
Se o Brasil quiser ter chance de um lugar ao sol para si e sua gente num ambiente nacional e internacional de desafios cada vez mais complexos e governança cada vez mais difícil, terá de avançar nos próximos quatro anos no enfrentamento de três questões cruciais.
Primeira, um conjunto de reformas que ajuste não apenas as contas públicas, mas também o modo de atuação e organização do Estado, para que o setor público seja financeiramente sustentável e capaz de oferecer serviços de melhor qualidade com maior eficiência. Segunda, a redução dos níveis alarmantes de violência vividos pelo País (mais de 500 mil mortos entre 2006 e 2016, segundo o Atlas da Violência, edição 2018), período em que o número de homicídios se elevou em quase 15%, na esteira do controle crescente do crime organizado sobre territórios, atividades econômicas e populações. Terceira, o restabelecimento de um mínimo de confiança nas instituições da democracia representativa, em particular os partidos e o Legislativo. A propósito, o protagonismo político assumido pelas Forças Armadas pode ser positivo nas circunstâncias atuais, mas não o é no médio e longo prazos, nem para o País nem para elas próprias.
As questões acima estão interligadas. Se a União e os governos estaduais, estes em situação ainda mais dramática, naufragarem sob o peso de despesas com pessoal ativo e inativo e dívidas impagáveis, a batalha contra a violência e o crime organizado estará perdida e a presença do narcotráfico se alastrará, contaminando de modo fatal as próprias instituições do Estado. Nesse ambiente, é difícil imaginar qualquer recuperação da credibilidade das instituições da democracia representativa, pois será crescente o risco à integridade física de quem se dispuser a participar de peito aberto e mãos limpas da vida política. A saudável renovação dos quadros políticos do País depende, entre outros fatores, de que o poder de intimidação e corrupção do crime organizado se reduza ao longo dos próximos anos. Não podemos trocar a “velha política” por coisa pior ainda.
Se não enveredar pela guerra ideológica e pela desconstrução dos muitos avanços que fizemos nos últimos 30 anos em matéria de direitos civis, políticos e sociais, será possível ao Brasil progredir no enfrentamento dessas três questões cruciais no próximo período de quatro anos.
Isso depende do predomínio de uma direita racional no governo e de uma oposição que seja firme na defesa dos avanços dos últimos 30 anos, ao mesmo tempo que comprometida com a correção de problemas acumulados ou não resolvidos ao longo desse período. A sobreposição de baixo crescimento, crise fiscal e deterioração das condições de segurança representa uma ameaça existencial ao Estado, à sociabilidade civilizada e à democracia.
A reforma da Previdência é dramaticamente urgente. Não sabemos se será aprovada uma reforma que mude a perspectiva de evolução das contas públicas, torne crível a manutenção do teto de despesas e, assim, dê sustentação ao ajuste fiscal estrutural, que depende ainda de medidas complementares. Sabemos, porém, que os benefícios de aprovar uma boa reforma da Previdência são enormes.
Se tomar o rumo certo na bifurcação em que se encontra, o País estará em via de completar a normalização macroeconômica iniciada há mais de 20 anos com o Plano Real, da qual nos desviamos a partir de meados da década passada e que hoje temos condições de retomar graças ao esforço da equipe econômica do governo Temer. Com a inflação e o juro básico nos seus níveis mais baixos em muitas décadas, o regime de metas de inflação e câmbio flutuante plenamente recuperado, uma boa reforma da Previdência é passo decisivo para consolidar condições macroeconômicas (no âmbito doméstico, o único que está ao nosso alcance) em favor do crescimento sustentável.
Dado esse passo, maiores avanços também poderão ocorrer na agenda microeconômica. As privatizações e concessões se veriam livres das pressões para cobrir necessidades de financiamento corrente e poderiam voltar-se para os objetivos de longo prazo de aumentar a eficiência e a produtividade da economia. Além disso, reduzida a incerteza sobre a evolução da despesa pública, o caminho estaria pavimentado para a(s) reforma(s) mais ambiciosa(s) do sistema tributário.
Se no ajuste fiscal o risco é o gradualismo, na segurança pública a ameaça é o açodamento. Debelar a ameaça existencial que o crime organizado hoje coloca ao Estado Democrático tomará anos, exigirá coordenação entre Forças Armadas, Polícia Federal e polícias estaduais, entre os três Poderes, entre o Estado e a sociedade civil, entre o Brasil e outros países. Países que articularam uma estratégia de longo prazo, sem confundir combate ao crime organizado com repressão indiscriminada ao consumo de drogas, como a Colômbia, colheram resultados depois de vários anos. Países que partiram para a militarização impensada da segurança pública, como o México, produziram um banho de sangue sem recuo do crime organizado.
Avanços significativos na reforma fiscal e no combate ao crime organizado exigirão do novo governo superar dois déficits iniciais importantes: capacidade de articulação política e interlocução com a sociedade. Em ambos os casos, os métodos empregados com sucesso na campanha eleitoral de Bolsonaro não são os melhores para que seu governo obtenha êxito. Estigmatizar os partidos e os políticos, por mais enfraquecidos que estejam, não levará a bons resultados no Congresso. Persistir na guerra ideológica contra os “vermelhos” e a imprensa tornará inviável o mínimo consenso necessário para o combate eficaz ao crime organizado e à redução da violência na sociedade brasileira. Ameaçar com “facadas” sistemas há muito consolidados não contribuirá para aprimorá-los
A poucos dias de sua posse, ainda não é claro o caminho que seguirá o novo governo.
*Sérgio Fausto é superintendente executivo da Fundação FHC, colaborador do Latin American Program do Baker Institute of Public Policy da Rice University, Sergio Fausto é membro do Gacint-USP