Felizmente, o Brasil é bem maior e melhor do que o presidente. Não há mal que sempre dure
Tempos de crise servem de campo de teste para as lideranças.
Em todo o mundo, os governantes estão diante de um enorme e complexo desafio. Comandam uma batalha em duas frentes, sanitária e socioeconômica, em terreno pouco conhecido. Jamais a humanidade viveu uma pandemia num mundo tão interconectado e exposto a rumores e teorias da conspiração, tampouco uma crise econômica deflagrada por uma emergência sanitária que imponha tamanha restrição à produção e ao consumo. Como se fosse pouco, o inimigo é invisível e, por ora, apenas pode ser contido, não derrotado. A guerra será longa, com muitas fases e batalhas.
O desafio consiste em tomar decisões que atendam da melhor maneira possível ao duplo objetivo, nesta ordem, de reduzir as mortes e a contração econômica produzidas pela disseminação do novo coronavírus. Trata-se não apenas de tomar decisões e reavaliá-las, à luz dos dados sobre o desenrolar nas duas frentes da batalha, mas também de obter a adesão de empresas, famílias e pessoas para que as decisões tomadas possam surtir o efeito pretendido. Para isso é fundamental que a sociedade esteja convencida da correção das ações governamentais, ainda que, em última instância, o Estado possa valer-se de medidas coercitivas para implantá-las.
Como há vários e conflituosos interesses convivendo em sociedade, a liderança política, em especial nos países democráticos, precisa produzir convergência (ela não surgirá espontaneamente, ao contrário) em torno de uma estratégia de combate que mobilize recursos para proteger os setores sociais mais vulneráveis e os elos mais débeis das cadeias de produção e distribuição de bens e serviços básicos. Deve apelar a valores que unifiquem momentaneamente a sociedade e reforcem mecanismos de cooperação e solidariedade social. Sendo o inimigo um patógeno, cabe à liderança política basear suas decisões no melhor conhecimento das ciências médicas sobre a doença e suas formas de contágio. Mas como a pandemia tem efeitos e implicações socioeconômicas amplos, é preciso mobilizar várias áreas do conhecimento. À liderança política incumbe tanto promover o esforço interdisciplinar para dar base sólida ao processo decisório quanto traduzir em linguagem acessível ao cidadão comum as razões das decisões tomadas. Para não falar no dever mínimo de não propagar fake news.
A emergência sanitária e socioeconômica exige uma combinação de qualidades que não se encontra com frequência. Requer que políticos se elevem à condição de estadistas, quase da noite para o dia. Tem melhores condições de se erguer à altura do momento quem reúne um conjunto de qualidades: capacidade de acompanhar raciocínios científicos e compreensão de problemas complexos (para os quais há sempre uma resposta simples que está errada); inteligência estratégica para determinar ações congruentes no tempo e no espaço; ampla habilidade de articulação política e interlocução social, para aumentar a eficácia das políticas públicas e corrigi-las ou ajustá-las sem alvoroço e intranquilidade quando necessário; e, por último, mas não menos importante, empatia pelas diversas formas de sofrimento físico e psíquico por que estão passando as pessoas, em especial as mais vulneráveis.
Agora e no futuro previsível, a estatura das lideranças políticas será medida pela demonstração concreta que tenham dado (ou não) dessas qualidades em decisões tomadas no calor da hora diante de dilemas críticos e inter-relacionados. Por exemplo: quando e sob que condições transitar de uma a outra abordagem da emergência sanitária (seja para radicalizar, seja para amenizar as medidas restritivas a atividades econômicas e à circulação de pessoas)? Até onde expandir o gasto e a dívida pública para suprir a renda perdida por famílias e empresas?
Além da eficácia das decisões tomadas, as lideranças políticas serão avaliadas pelos valores que despertarem na sociedade. Seria ingênuo descartar a possibilidade de o nacionalismo xenófobo ou o individualismo exacerbado saírem fortalecidos da crise atual. Mas existe uma boa chance de que ao final prevaleça a revalorização da cooperação internacional e da solidariedade social para enfrentar os grandes desafios coletivos da nossa época (a pobreza, a desigualdade social, as mudanças climáticas e as pandemias).
Não escrevi este artigo para apontar o que antes já era óbvio ululante e agora se tornou dramaticamente claro: o Brasil está muito mal servido na Presidência da República. Seria patético, não fosse trágico, que um homem tão desprovido das qualidades para liderar o Brasil, em particular neste momento, esteja hoje ocupando o máximo cargo político do País.
Felizmente o Brasil, com suas outras lideranças, suas instituições, suas organizações da sociedade, sua gente, é bem maior e melhor do que Bolsonaro. Não há mal que sempre dure. Agora se trata de conter o imenso dano que ele pode causar. Em 2022, de evitar que a história se repita como tragédia.
*Diretor-geral da Fundação FHC, é membro do Gacint-USP