Bom ou ruim, o que lá acontecer terá efeitos na América Latina, em especial no Cone Sul
Nas últimas semanas o Chile virou de pernas para o ar. O que ao início parecia se limitar a um punhado de jovens a pular catracas no metro de Santiago, em desafio pelo aumento da tarifa, transformou-se numa gigantesca onda de protesto social. Os protestos são tanto um produto do sucesso do “modelo chileno” quanto um reflexo de suas crescentes limitações.
Na herança deixada pela ditadura militar do general Pinochet, a coalizão de centro-esquerda que assumiu o poder no Chile em 1990 encontrou uma economia aberta que recém se havia estabilizado e começado a crescer; uma sociedade empobrecida por ajustes estruturais feitos a ferro e fogo e traumatizada pela violação sistemática de direitos humanos; e uma Constituição outorgada que estabelecia severos limites políticos à vontade dos governos democráticos eleitos.
Vistos contra esse pano de fundo, saltam aos olhos os avanços do Chile nas três últimas décadas de governança democrática: o crescimento econômico acelerado tornou o país o mais rico da América Latina; a pobreza despencou de 40% para 9% e a indigência, de 20% para 3%; a quase totalidade dos jovens passou a completar o ensino médio e mais da metade a concluir o ensino superior; os milhares de violações de direitos humanas foram apuradas e os culpados julgados e condenados; as amarras políticas impostas pela ditadura foram removidas. Falar em fracasso do “modelo chileno” é um equívoco, o que não significa ignorar seus problemas.
À medida que emergia uma nova classe média, criaram-se expectativas mais altas de consumo e reconhecimento social, apenas parcialmente cumpridas. As novas gerações que ingressaram no mercado de trabalho, mais escolarizadas que seus pais, fazem malabarismos para pagar educação, saúde, transporte e moradia com salários relativamente baixos. Apesar do esforço, os jovens não conseguem saltar as barreiras visíveis e invisíveis que os separam do topo da pirâmide, cada vez mais distante e inatingível. Sentem que o Estado não os ajuda a romper esses limites nem os protege do risco de voltar à pobreza da geração anterior. Já os mais velhos recentemente descobriram que o sistema de capitalização criado na ditadura lhes entrega benefícios mínimos de aposentadoria. A classe média batalhadora se percebe sem retaguarda estatal e familiar. E teme pelo futuro.
Os protestos expressam medo e raiva, dirigida contra o establishment político e econômico. Não se trata de uma elite socialmente irresponsável. Desde o primeiro governo democrático adotaram-se políticas sociais para redução da pobreza. Financiadas pelo crescimento acelerado e por um ligeiro aumento da carga tributária, surtiram efeito poderoso. Está claro que agora é preciso maior ousadia para enfrentar resistências do competente empresariado chileno a uma melhor distribuição da renda. A redução das desigualdades requer aumentar a carga tributária total e chamar os mais ricos à responsabilidade de arcar com maior fatia no financiamento público de políticas sociais. Sem matar a competitividade das empresas.
Sebastián Piñera, o atual presidente, é um homem moderado de centro-direita, que não apoiou Pinochet. Por outro lado, simbolicamente, encarna a simbiose entre o poder político e o poder econômico (por ser bilionário). Reagiu inicialmente mal aos protestos, dizendo que o país estava em guerra contra um inimigo oculto. Pediu desculpa, voltou atrás e convocou os partidos de oposição ao diálogo. Está em busca de um novo enredo para o seu governo.
O ex-presidente Ricardo Lagos defendeu o diálogo entre governo e oposição em torno de uma agenda de reformas mais ampla do que as primeiras medidas anunciadas pelo atual mandatário. Piñera e seus antecessores, Michelle Bachelet incluída, têm noção da responsabilidade histórica que carregam.
Mais do que qualquer outro país latino-americano, o Chile tem condições para dar resposta ao descontentamento social sem apelar para o populismo. Boas políticas macroeconômicas há várias décadas, e pequeno endividamento do setor público, asseguram condições fiscais para o país oferecer mais e melhores serviços públicos. Além disso, o Chile conta com uma boa burocracia estatal, pouco afetada pela corrupção.
Apesar de tudo isso, não é pequeno o desafio de restabelecer a confiança do povo nas elites e de todos no futuro do país. É enorme a descrença dos chilenos em suas instituições e lideranças políticas (talvez porque não conheçam as dos países vizinhos). Não são desprezíveis os riscos de o país se dividir em polarizações destrutivas, como Brasil e Argentina.
O futuro é incerto pela combinação de três ordens de fatores: as fórmulas políticas testadas com sucesso durante a transição e a consolidação da democracia (acordos políticos entre os grandes partidos) são vistas com desconfiança pela população; é necessária uma nova agenda de políticas públicas (mais complexa que a atual, por exigir maior coordenação entre agentes públicos e privados, melhor e maior investimento em ciência e tecnologia, novo equilíbrio entre competitividade e equidade); o mal-estar social chileno não tem motivações exclusivamente econômicas, mas também culturais (e a cultura não se amolda facilmente às decisões políticas).
O Chile está desafiado a inventar um novo projeto comum que vá além das aspirações individuais de cada um dos seus cidadãos sem retroceder às utopias coletivistas e sem perder o trem da integração competitiva à economia global. Desafio que exige à política e aos políticos ultrapassar os limites do curto prazo, da disputa partidária e dos estreitos corredores do poder.
Não é pouco o que está em jogo. O Chile enfrenta em melhores condições desafios que todos os países da região estão condenados a enfrentar. O que ali acontecer, de bom ou de ruim, terá efeitos na América Latina em geral e no Cone Sul em particular.
*Superintendente Executivo da Fundação FHC, colaborador do Latin American Program do Baker Institute of Public Policy da Rice University, é membro do GACINT-USP