Ao longo da História o Brasil experimentou mais o arbítrio do que a lei. Não apenas porque vivemos a maior parte do tempo sob regimes não democráticos, mas também porque mesmo na democracia a lei foi aqui aplicada desigualmente. Seu peso recaiu, em geral, sobre quem tinha pouco ou nenhum dinheiro, prestígio social e/ou poder político. Contra esse pano de fundo, a Lava Jato representa a possibilidade de uma mudança de época. É um daqueles processos que podem separar um antes e um depois na História.
Sem ser especialista no ramo, não me convenço das críticas feitas à atuação da força-tarefa do Ministério Público (MP) e do juiz Sergio Moro. Advogados criminalistas renomados apelaram a analogias descabidas entre a prisão preventiva e a tortura, como se o País tivesse retrocedido aos anos de chumbo. Pode ter havido abusos no uso daquela, mas a maioria das delações premiadas foi negociada com delatores em liberdade. Tudo sob a tutela do STF.
Curiosamente, o PT adotou argumento semelhante, acusando a Lava Jato de proceder de forma arbitrária, porque supostamente seletiva. Na retórica de combate ao suposto golpe parlamentar contra a presidente Dilma, a Lava Jato e o impeachment foram apresentados como parte da mesma orquestração que visaria a criminalizar o PT e tirá-lo do poder. A alegação se desmoralizou à medida que a operação alcançava outros partidos e lideranças partidárias, incluídos os que passaram a ser governo após o impeachment.
Mais plausível é a crítica dos que apontam os riscos de um certo moralismo salvacionista atribuído aos protagonistas da Lava Jato. Ao exacerbar o senso comum de que “todo político é ladrão” e toda política se resume a um jogo sujo de poder, feito à revelia do cidadão e do interesse público, os promotores de Curitiba e o juiz Moro estariam minando o terreno da política democrática.
O sociólogo Luiz Werneck Viana, que escreveu textos pioneiros valorizando a renovação geracional do Judiciário e o papel do Ministério Público, disse em entrevista a este jornal (25/12/2016) que “tenentes togados” comandam “uma balbúrdia política” com objetivos corporativos. Comparou juízes e promotores de hoje aos suboficiais do Exército que ao longo dos anos de 1920 lideraram revoltas militares contra os governos da República Velha. Ressalvou que os tenentes de farda pelo menos tinham um programa de reforma econômica e social para o País, ao passo que os “togados” não têm a oferecer senão uma “reforma moral”.
A preocupação com a concentração de poder no Judiciário não é descabida, mas Werneck força a barra no argumento. Exagera ao apontar a existência de uma “inteligência organizando essa balbúrdia”. A ideia de que há uma orquestração visando a desmoralizar o sistema político e defender interesses corporativos espúrios desconsidera as rivalidades existentes entre Polícia Federal, promotores de Curitiba e Ministério Público Federal, magistrados de segunda instância e juízes de tribunais superiores, etc. Como o próprio autor reconhece, o aumento do poder do Judiciário é antes consequência do que causa da deterioração do sistema político.
Não resta dúvida de que a loquacidade e o personalismo de alguns membros do Judiciário têm adicionado ruído à balbúrdia institucional. O exemplo mais recente foi a decisão monocrática do ministro Fux declarando inconstitucional, em caráter preliminar, a forma como a Câmara deliberou sobre as dez medidas anticorrupção apresentadas pelo MP. Caso claro de indevida judicialização da política.
Coisa muito diferente é a atuação dos protagonistas da Operação Lava Jato. Em que pesem erros e exageros cometidos, alguns mais na forma que na substância, a força-tarefa sediada em Curitiba e o juiz Moro não se movem por interesses corporativos. Desenvolvem seu trabalho nos limites do devido processo legal, tensionando-os, é verdade, mas em geral sem ultrapassá-los, como atesta o fato de que foram poucas as decisões do juiz Sergio Moro reformadas por instâncias superiores do Judiciário.
Ao contrário dos tenentes nos anos 20 do século passado, eles não agem inspirados em ideologias autoritárias nem visam à derruba do governo pelas armas. Ao ler a realidade de hoje com a lente daquele período, Werneck escorrega no anacronismo e minimiza a importância da Lava Jato para o aperfeiçoamento e mesmo a manutenção da ordem democrática. Computados seus créditos e débitos, sobra, a meu ver, um significativo saldo positivo: um grupo de servidores do Estado brasileiro deslindou e desbaratou um esquema colossal de corrupção, com ramificações no exterior, envolvendo não poucas das maiores empresas do País e vários políticos de destaque, de variados partidos. Como nunca antes na História deste país.
Seria ingênuo minimizar os riscos da Lava Jato. Tanto o de jogar na vala comum do descrédito, quando não das punições indistintas, delitos de gravidade diferente e políticos que não são farinha do mesmo saco, quanto o de terminar em alguma forma de pizza, pela ação do Congresso ou inação do STF.
Concluindo, acreditar que a salvação do País depende de uma “reforma moral” conduzida por “justiceiros” é perigoso. Não se justifica, porém, minimizar o potencial da Operação Lava Jato para enraizar na sociedade a crença no princípio da igualdade perante a lei e para estabelecer um padrão mais rigoroso para a política e os negócios públicos em geral. Sem avanços nessas duas dimensões da moralidade pública, o déficit de credibilidade das instituições e da autoridade do Estado continuará perigosamente alto, assim como os desincentivos para que um número maior de pessoas comprometidas com o interesse público participe da política profissional. A Lava Jato não é condição suficiente, mas é condição necessária para mudar esse quadro, que ameaça a ordem democrática do País.
*Superintendente executivo da Fundação FHC, colaborador do Latin American Program do Baker institute of Public Policy da Rice University, é membro do Gacint-USP