Aqui como lá são estigmatizados os gays, as feministas e os demais ‘ativismos’…
O Itamaraty prepara viagem do presidente aos três países europeus de sua predileção: Hungria, Itália e Polônia. O périplo pela troika do nacionalismo xenófobo e politicamente antiliberal no velho continente atende a agenda ideológica de Bolsonaro, a mesma de seus filhos e do ministro das Relações Exteriores, expoentes do olavo-bolsonarismo no interior do governo.
Em seu discurso de posse, Ernesto Araújo destacou os três países como exemplos de sã afirmação da nacionalidade num mundo supostamente ameaçado pelo “globalismo”. Omitiu deliberadamente o fato de que na Hungria e na Polônia a “afirmação da nacionalidade” se faz à custa da democracia liberal. Contra ambos os países a União Europeia acionou em julho passado, por deliberação da maioria do seu Parlamento, o artigo 7 do Tratado de Lisboa, que prevê punições a países-membros que violem a liberdade de expressão, o direito das minorias e a independência do Judiciário.
Na Itália, onde a direita antiliberal e xenófoba não governa sozinha, ainda não há danos visíveis à democracia. Mas a Liga Norte é a força política em ascensão. Seu líder, o vice-premiê e ministro do interior Matteo Salvini, homem forte do governo de coalizão, embora não reivindique explicitamente o legado do fascismo, com frequência invoca Mussolini em atos e palavras.
No aniversário do Duce, ano passado, Salvini escreveu um tuíte repetindo frase famosa do líder fascista, com pequena variação vocabular: “tanti (molti) nemici, tanto (molto) onore”.
Os inimigos de Salvini são os mesmos de Viktor Orbán, o premiê húngaro, e de Lech Kaczynski, líder maior do partido Lei e Justiça, na Polônia. Nesse grupo estão todos os que colocam obstáculos ao projeto que compartem com a francesa Marine Le Pen. Eles querem rebobinar a fita da História para devolver seus países a um passado idealizado, jamais existente, em que Estados-nação europeus abrigavam populações homogeneamente brancas, cristãs, heterossexuais, regidas por uma clara hierarquia de gênero, com homens dominantes à testa do Estado e das famílias e mulheres submissas limitadas ao lar.
Ao apelo nostálgico a direita xenófoba agrega um elemento do repertório democrático (o princípio da soberania popular na eleição direta do chefe do governo e da maioria parlamentar), dispensando-os, porém, de respeitar o sistema de freios e contrapesos, as liberdades fundamentais e os direitos das minorias. Eis o tal oxímoro chamado “democracia iliberal”.
A besta-fera de Orbán & Cia. são os imigrantes muçulmanos do Oriente Médio e do Norte da África. No caso da Hungria, observa-se também um traço antissemita, perceptível na demonização de George Soros. A Europa é terreno fértil para o sucesso de uma política que reduz os imigrantes e a imigração islâmicos à condição de ameaça à segurança pública e à civilização europeia: a proximidade geográfica das regiões de origem, a problemática integração de comunidades de imigrantes às sociedades locais, a ocorrência de atentados terroristas perpetrados por islamitas radicais, a ausência de uma política europeia coordenada em relação à imigração, a redução do tamanho das populações de origem europeia.
No Brasil, o olavo-bolsonarismo opera com lógica política semelhante. Identifica alvos que poriam em perigo a pátria, a família e os valores tradicionais. À falta dos imigrantes, a extrema-direita brasileira encontrou no “marxismo cultural” e nos “corruptos” categorias abrangentes e elásticas para alvejar seus inimigos, incluída a centro-direita liberal. As Forças Armadas não têm escapado a esse enquadramento paranoide da realidade. Aqui como lá, são estigmatizados preferencialmente os gays, as feministas, os movimentos LGBT e os demais “ativismos” da sociedade civil, com exceção dos que têm base cristã.
Se pudesse, o olavo-bolsonarismo não hesitaria em mobilizar dois cabos e um soldado para ferir de morte o sistema de pesos e contrapesos e sufocar as garantias das liberdades democráticas e dos direitos das minorias. A questão é saber se podem fazer o que querem. Em princípio, a resposta é não, por mais de uma razão.
Polônia e Hungria são Repúblicas unitárias, em que o poder se enfeixa no governo central. O Brasil é uma federação, em que o poder se dispersa pelos diferentes níveis de governo. Aqueles são países parlamentaristas, onde o poder se concentra na Câmara. Aqui ele se divide entre o Executivo e o Legislativo, este com Câmara e Senado. O Fidezs, partido de Viktor Orbán, detém a maioria absoluta no Parlamento húngaro, assim como o partido Lei e Justiça, na Polônia. São duas agremiações bem estruturadas, com alguma história na bagagem. O PSL é um ajuntamento de última hora que conquistou pouco mais de 10% da Câmara e menos de 5% do Senado.
A Constituição brasileira incluiu a separação dos Poderes, os direitos e as garantias fundamentais entre as cláusulas pétreas e confere poderes ao Supremo Tribunal para resguardá-las. Na sua ofensiva antiliberal o Fidezs e o Lei e Justiça não encontraram barreiras constitucionais de igual porte.
Hungria e Polônia vêm crescendo a taxas médias superiores a 3% nos últimos quatro anos, com o desemprego em níveis historicamente baixos. O Brasil ainda está às voltas com a pior crise e a mais lenta recuperação econômica de sua História e o olavo-bolsonarismo é parte do problema, não da solução.
Significa que não há razões para nos preocuparmos? Longe disso. Se a crise se agravar, com colapso das finanças públicas, desorganização dos serviços prestados por Estados e municípios, greves de servidores, policiais militares incluídos, e inquietação nos escalões de baixo das Forças Armadas, aumentará o risco de um curto-circuito institucional. O olavo-bolsonarismo joga as suas fichas nesse cenário. Cabe às forças responsáveis do País, civis e militares, evitar que ele se consuma.
* Sergio Fausto é Superintendente Executivo da Fundação FHC, colaborador do Latin American Program do Baker Institute of Public Policy da Rice University e membro do Gacint-USP