Para reeleição, presidente conecta-se aos pobres pela via do conservadorismo de base religiosa e da transferência direta de renda ampliada na esteira da pandemia
Seis meses e 100 mil mortos depois do início da pandemia, Bolsonaro segue vivo e competitivo para a disputa presidencial de 2022. Continua a manter entre 30% e 35% de apoio nas pesquisas de opinião. Mas sua base social está se deslocando: ao longo dos últimos meses, o presidente perdeu terreno nas faixas de renda e educação mais altas e ganhou espaço em setores mais pobres da população, graças ao aumento da transferência direta de renda para esses setores.
Também sua base política se alterou, com redução do peso relativo dos fiéis de primeira hora e ampliação da presença de parlamentares ligados à política tradicional. São movimentos incipientes, que mal comparando lembram os que Lula levou a cabo com maestria para sair do córner político na crise do mensalão e reeleger-se com folga dois anos depois. Eles coincidem com um recuo na escalada de confrontação contra o STF, governadores e prefeitos em que se engajou Bolsonaro a partir do início da pandemia.
Estaria em curso um processo de ajustamento do atual governo a padrões mais normais, no sentido de frequentes, na história brasileira? Não creio.
Longe de ser uma decisão estratégica, o recuo na escalada de confrontação é tático e circunstancial, provocado pelo medo decorrente de investigações que apontam para o núcleo de articulação da rede bolsonarista, no qual figuram com destaque os seus filhos. A interação entre os processos investigatórios e a dinâmica política é um jogo de vários lances, apenas iniciado. Um jogo no qual Bolsonaro jogará pesado, pois sabe o que está em jogo.
Tampouco o deslocamento da base social de apoio ao presidente é fruto de uma decisão estratégica. Foi do Congresso a proposta de triplicar o valor do programa de auxílio emergencial proposto pelo Executivo, contra a vontade do Ministério da Economia. Bolsonaro intuiu a oportunidade e agarrou-se a ela. Sem o bote salva-vidas do auxílio emergencial, sua popularidade se situaria hoje abaixo da linha d’água dos “mágicos” 30%.
Em que pese ter sido ampliada, a base parlamentar de Bolsonaro é volátil. Quando o bote salva-vidas do auxílio emergência for desinflado, pela impossibilidade fiscal de manter a transferência de renda nos níveis atuais, os cálculos políticos podem ser refeitos. Será conflituoso, dentro e fora do governo, o embate em torno do nível e da composição do gasto “sustentável” ao fim do estado de calamidade pública.
Sabe-se que mediar conflitos não é uma especialidade do presidente. Nem dentro do sistema político, nem na sociedade, muito menos quando se somarem essas duas fontes de pressão, como é previsível quando passarmos da emergência econômica e sanitária à fase crônica da crise e da pandemia, com mais pobreza e mais desemprego do que até aqui se viu e sem estado de calamidade pública para poder gastar sem limite.
Antecipando dificuldades políticas, Bolsonaro se prepara. O recado dado pelo presidente a seus ministros na famigerada reunião de 22 de abril – “o meu sistema pessoal de informação funciona, mas o oficial desinforma” – foi entendido. Decreto do fim de julho oficializou a reestruturação da Agência Brasileira de Inteligência para dotá-la das competências destinadas “ao enfrentamento de ameaças à segurança e à estabilidade do Estado e da sociedade”.
Há razões para ver nas mudanças na Abin a preparação do governo para possíveis cenários de aguçamento do conflito social e político. O dossiê preparado pela Secretaria de Operações Integradas do Ministério da Justiça sobre 579 pessoas, a maioria servidores públicos, conhecidos por suas posições contrárias ao atual governo, é um preocupante sinal antecedente.
Em paralelo, assiste-se à crescente militarização do governo. Com a nomeação do general Eduardo Pazuello para o Ministério da Saúde, a presença de militares no ministério alcançou a marca dos dois dígitos. Segundo levantamento do Tribunal de Contas, o número de integrantes das Forças Armadas com cargos no governo mais do que dobrou desde 2018.
Em que pese o comportamento exemplar dos comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, tornou-se difícil separar com clareza o governo das Forças Armadas. O presidente tudo faz para identificar a sua administração com os militares. De um lado, para se aproveitar do prestígio das Forças Armadas. De outro, para manipular o medo de uma intervenção militar na vida política.
Em meio a uma pandemia que no Brasil não parece ter fim e sem recuperação econômica importante à vista, temos um governo sem projeto, chefiado por um presidente que se divide entre dois objetivos: proteger a si e aos seus e viabilizar sua reeleição. A chamada “agenda Guedes” feneceu antes de ter florido. A sétima cavalaria dos investimentos estrangeiros não dá sinais de que virá salvar o país da recessão ou do baixo crescimento.
Para navegar contra vento e maré, agarrado ao mastro oscilante do “centrão” e ao que sobrar do bote salva-vidas do auxílio emergencial, o capitão lança ao mar as bandeiras da luta anticorrupção e da antipolítica (já bem esfarrapadas), além da “agenda Guedes”. A identificação com os militares terá custos crescentes para a instituição das Forças Armadas e rendimentos decrescentes para o presidente, pois aquelas não escaparão do desgaste de se misturar ao governo.
Contudo, Bolsonaro conta ainda com trunfos, além da vantagem de ser o incumbente. Das três bandeiras que o elegeram, a “proteção dos valores da família” por ora continua firme em suas mãos. Se o liberalismo econômico com verniz acadêmico perde valor, um livre-mercadismo mais primitivo e rudimentar se apresenta como alternativa. Bolsonaro o tem cultivado nas críticas às restrições sanitárias, o que encontra apoio em uma sociedade na qual trabalhar em casa é privilégio de uma minoria e o respeito às regras coletivas em nome do bem comum está longe de ser generalizado.
O terceiro trunfo é a pobreza, que vem aumentando e aumentará ainda mais, ampliando a potência eleitoral do que um jornalista sagaz, Bernardo Mello Franco, apelidou de “Bolsa Capitão”. Seu maior trunfo, no entanto, é ter até aqui jogado sozinho, sem adversário político à altura.
Se ainda é cedo para fazer prognósticos certeiros para 2022, já se pode ver a aposta que Bolsonaro fará em busca da reeleição: conexão direta com as massas pobres e microempreendedores invisíveis pela via do conservadorismo moral de base religiosa e da transferência direta de renda ampliada na esteira da pandemia.
Em meio a muita incerteza, uma coisa me parece certa: Bolsonaro terá dificuldades para unificar o campo conservador, pelo enfraquecimento do PT, de um lado, e pelo surgimento de alternativas no campo da centro-direita, de outro. Ao degolar Luiz Henrique Mandetta e peitar Sergio Moro, o capitão pode ter cometido seu maior erro político.
*Sergio Fausto é cientista político