A maior das coragens intelectuais é rever suas próprias opiniões, especialmente as mais caras à própria história
Coragem intelectual é algo muito raro. Coragem física, não; pelo contrário, é comum. Embora a literatura e o cinema consigam com facilidade despertar o interesse humano por atos de grande coragem, para o macho homo sapiens são ações quase naturais, darwinianamente selecionadas em centenas de milhares de anos como boa opção para sobreviver, conquistar poder e atrair a atenção das mulheres.
Já a coragem intelectual, a coragem de Sócrates, Giordano Bruno, Galileu Galilei (mesmo que nunca tenha sussurrado eppur si muove) e muitos outros — ou seja, a coragem de enfrentar o pensamento dominante, mesmo que ao custo da própria vida ou liberdade — tem motivações na afirmação da liberdade individual e da importância de sempre aprofundar o pensamento.
A maior das coragens intelectuais é a de rever suas próprias opiniões, especialmente aquelas mais caras à própria história, psicologia e visão de mundo. Não é algo simples. Mesmo na Ciência, com sua adesão rigorosa a métodos de investigação e de confronto com as evidências, podemos contar duas histórias opostas sobre o tema. A primeira, muito edificante, é relatada pelo biólogo Richard Dawkins. Um recém-doutor apresenta sua tese sobre o metabolismo celular em um auditório de Oxford. Ao final, em seguida às palmas, um catedrático da área, já idoso, levanta-se, sobe as escadas e cumprimenta o jovem cientista na frente de todos: “Obrigado por mostrar que eu estive errado nos últimos 25 anos”.
Mas nada que é humano é simples. O grande Max Planck, um dos pais da física quântica, observou que, muitas vezes, o avanço da Ciência não vinha do convencimento, mas da eventual morte dos cientistas estabelecidos, abrindo espaço para outra geração aberta às novas ideias.
Pessoalmente, assisti a dois momentos de grande coragem intelectual (que não beneficiaram em nada seus autores). Mikhail Gorbachev, reconhecendo o fracasso da experiência soviética, e Alan Greenspan, ex-presidente do Fed (o banco central americano), sendo questionado por um senador democrata após a crise de 2008: “Então, você reconhece que estava errado (sobre se mercados se autorregulam)?”. E Greenspan, repetindo Keynes, “Sim. Quando os fatos mostram que eu estava errado, eu costumo mudar de opinião”.
Karl Marx, no final da vida, de saco cheio com as simplificações de cartilha do seu pensamento, declarou: “Só tenho certeza de uma coisa, não sou marxista”. Muito antes, sua filha Laura lhe aplicou um questionário onde no final lhe perguntava sobre seu lema preferido. E Marx: “Duvidar sempre”.
O psicanalista Frances André Green resumiu numa frase maravilhosa: “A infelicidade da pergunta é a resposta”. Nesse Brasil politicamente tão polarizado de forma rasa e superficial, talvez esteja faltando aos extremos fisicamente tão aparentemente corajosos um mínimo de superação da covardia intelectual.
* Sérgio Besserman Vianna é presidente do Instituto Jardim Botânico do Rio de Janeiro