Catarse coletiva de norte ao sul do País, fenômeno igual nunca se viu na imprensa brasileira
Pouco antes das eleições, o presidente eleito revelou que um dos objetivos de seu governo seria fazer o Brasil semelhante ao de 50 anos atrás. Fiz as contas, deu 1969.
Vivíamos em 1969 sob uma ditadura militar, que o ex-capitão e seu vice general negam com a mesma convicção dos que contestam o Holocausto, o aquecimento global, a esfericidade da Terra e a inexistência de Papai Noel.
Muita mais gente do que se imagina sente nostalgia por um tempo que não viveu. Tenho amigos que, a exemplo do protagonista daquela comédia de Woody Allen, lamentam não terem vivido na Paris dos anos 1920, quando os pais de alguns deles ou ainda eram bebês ou nem haviam nascido. Tal não é o caso do presidente eleito, que já era vivo em 1969. Mas tinha apenas 14 anos quando tudo aquilo aconteceu, sem ele se dar conta.
Desde dezembro do ano anterior enfrentávamos o tacão do AI-5 (epa! 50 anos redondos na próxima quinta-feira) e já testemunháramos a invasão do Teatro Ruth Escobar, na capital paulista, pelo Comando de Caça aos Comunistas, que depredou o cenário e espancou o elenco do musical Roda Viva, de Chico Buarque (pois é, já naquela época Chico incomodava os boçais).
Em vez de punir exemplarmente os celerados do CCC, o que fez a ditadura? Proibiu o espetáculo, “degradante e subversivo”, na tacanha avaliação do censor Mário F. Russomano.
Antes de saltar para 1969, outra deplorável lembrança: domingo passado também fez 50 anos que o Teatro Opinião, no Rio, sofreu um atentado à bomba, executado pelos mesmos espiroquetas do CCC. Se 1968 terminou nesse clima, como esperar um refresco no ano seguinte?
No último dia de agosto de 1969, uma junta militar provisória foi empossada no lugar do general Costa e Silva, que sucumbira a um derrame. Por que não empossaram o vice-presidente Pedro Aleixo? Justamente porque vivíamos numa ditadura e ele era um civil, um vice apenas pro forma, decorativo. Quatro dias depois, houve o sequestro do embaixador norte-americano, e uma nova Lei de Segurança Nacional foi promulgada antes de setembro chegar ao fim. Até que nos enfiaram goela abaixo outro general – o pior de todos: Emílio Garrastazu Médici.
Por tudo isso, a hipótese de voltar 50 anos atrás me soa, na mais complacente das estimativas, sinistríssima, um disparate de quem ignora história ou hibernou mentalmente naquele período. Ou sofreu uma lavagem cerebral oceânica (de Oceânia, a distopia de 1984).
Se forçado a voltar àqueles idos, talvez me sentisse meio obrigado a ajudar a recriar o irreverente semanário Pasquim – ou O Pasquim, como chegou às bancas, em 26 de junho de 1969, mantendo o artigo definido até trocar o desenho do logo no número 289 – e isso daria um trabalho dos diabos.
Primeiro, porque de seus fundadores apenas três ainda vivem, sendo que nenhum dos dois plenamente funcionais (Jaguar e Claudius) toparia encarar o desafio de ressuscitar, na atual conjuntura, o mais afamado baluarte impresso contra a ditadura militar. Segundo, porque estamos no século 21, o País mudou, o mundo mudou, nós mudamos ou fomos a isso constrangidos pelo politicamente correto; e porque talvez não faça mais sentido imprimir jornais e distribuí-los analogicamentes.
Mas se o presidente eleito insistir em voltar ao passado em vez de pensar o presente e o futuro, alguém, motivado pela Terceira Lei de Newton, poderá sentir a necessidade de lançar um sucedâneo eletrônico do Pasquim.
Não seria eu, contudo, a pessoa mais indicada para a tarefa, embora seja um dos poucos brancaleones sobreviventes. À exceção de Jaguar, Ziraldo e Claudius, os verdadeiros esteios do jornal (Millôr, Ivan Lessa, Paulo Francis, Henfil) e seu idealizador (Tarso de Castro) não habitam mais este mundo.
Dos citados, apenas três merecem ser considerados fundadores do jornal. Vez por outra, incluem Ziraldo, Henfil, Francis e até Ivan Lessa entre os criadores do Pasquim. Ledo engano. Tarso, Jaguar, Sérgio Cabral, Carlos Prósperi (designer), Claudius e Luiz Carlos Maciel – este foi o grupo que bolou e pôs nas ruas o jornaleco. Ziraldo apenas colaborou no primeiro número, com um de seus já conhecidos Zeróis. Henfil estreou no segundo número, Francis no sexto e Ivan no vigésimo sétimo.
Quando em suas páginas debutei, O Pasquim já estava no número 9. Sucesso instantâneo, começara com uma tiragem de 20.000 exemplares semanais, logo esgotados, chegaria aos 80.000 no número 16, alcançando espetaculares 200.000, dois meses depois. Catarse coletiva de norte ao sul do País, fenômeno igual nunca se viu na imprensa brasileira.
Revivê-lo, numa redação ou como leitor, seria a maior compensação que poderíamos ter à regressão prometida pelo presidente eleito. Que, receio, seria completa. Ou seja, com o mesmo repertório repressor de 50 anos atrás: censura prévia, apreensões em bancas, atentados à bomba (sorte nossa que a programada para explodir a sede do jornal, na madrugada de 12 de março de 1970, pifou) e prisões sem base legal (como a que trancafiou 70% dos seus integrantes na Vila Militar, durante dois meses).
A despeito das negações já feitas e vindouras, isso foi o que eu vi, ouvi e vivi. E ainda que desmintam também a existência do Pasquim – que, aliás, durou mais que a ditadura – não haverá como corroborar esse wishful thinking quando, daqui a poucos meses, a coleção completa do histórico hedbomadário estiver todinha digitalizada e disponível na internet, com um dispositivo de busca completo, por edição, assunto, autores e até palavras.
Moral da história: não precisamos voltar a 1969 para termos de volta o passado – no caso, o melhor do passado, e ao alcance do dedo.