Não se exclui a hipótese de os democratas levarem a Casa Branca, a Câmara e o Senado
Uma das características da campanha eleitoral nos Estados Unidos foi a radicalização do jogo político; outra, a estabilidade das sondagens de opinião. Uma está associada à outra. Desde o início da campanha, a vantagem de Joe Biden sobre Donald Trump oscilou entre 7% e 12%. Fatos políticos relevantes, como a expansão descontrolada da covid-19, a queda na economia, demonstrações artirracistas e mesmo um marketing por vezes extravagante de Trump não lograram alterar esses limites. Uma das razões é que o candidato republicano, ao longo de seu governo, já havia consolidado o apoio de seu eleitorado cativo num patamar entre 37% e 42%. Na campanha, não conseguiu avançar em direção ao centro da cena política.
Não obstante a estabilidade dos números, persiste a incerteza quanto ao resultado. A provável vantagem de Biden no voto direto nacional será suficiente para assegurar a maioria no colégio eleitoral? Não necessariamente, pois esse colegiado é regido por regras que tendem a favorecer um candidato republicano. Vamos supor que Biden ganhe os votos no cômputo nacional e no colégio eleitoral. Trump aceitará o resultado? Em seus comícios, o candidato republicano tem insistido na acusação de que as eleições serão fraudadas e em momento algum assumiu o compromisso de respeitar os seus resultados. Poderá questionar a votação em alguns Estados e levar o contencioso à Suprema Corte, que em 2000, em condições semelhantes, deu ganho a George W. Bush, em detrimento de Al Gore.
De outro lado, não está excluída a hipótese de os democratas, além da vitória na Casa Branca, ganharem a Câmara dos Representantes – o que é provável – e o Senado, o que é possível. Biden teria, nessa hipótese, poderes suficientes para implementar um ambicioso programa de governo. Mas aceitaria decisões da Suprema Corte, hoje ainda mais republicana do que antes, que condenem o Obamacare ou rejeitem a legislação sobre o aborto?
A radicalização política e possíveis conflitos institucionais daí decorrentes sinalizam que as eleições de 2020 são mais do que a corriqueira escolha de um presidente ou a renovação do Parlamento. Na verdade, elas implicam uma opção entre duas visões de sociedade. Depois de quase quatro anos de governo, as políticas de Trump são claras. As ideias de Biden são menos conhecidas e suas políticas poderão ser bastante diferentes. É bom ter presente que, caso vença as eleições, entre os vitoriosos estará Bernie Sanders e sua corrente de militantes por um Green New Deal, que retoma políticas de Franklin Roosevelt por maior participação do Estado no estímulo à economia e na construção de uma rede de proteção social. E acrescenta um compromisso com o meio ambiente e as mudanças climáticas.
Embora Biden, um político conservador, não tenha endossado posturas mais radicais de Sanders, já se comprometeu com uma expansão do Obamacare, com a redução das desigualdades, com o combate ao racismo – que reconhece ser sistêmico – e com a transição de uma energia fóssil para outra, baseada em fontes renováveis. No plano externo, o programa de Biden também se diferencia do de Trump.
A prioridade será ambiental e sua primeira medida, afirmou em artigo para a revista Foreign Affairs, será o retorno ao Acordo de Paris. Sua política externa espelhará as prioridades internas, como a convergência, em vez da divergência. No lugar de sanções, reforçará o multilateralismo, e promoverá a restauração de alianças tradicionais, a começar pela Europa, com qual pretende construir uma frente para combater os desvios comerciais da China.
Vale ressaltar a coincidência entre um possível governo Biden com a Europa na questão ambiental. A Comissão Europeia acaba de lançar o projeto de uma Retomada Verde, que prevê a utilização de 750 bilhões de euros do Fundo de Recuperação em projetos que estimulem a economia verde e se disseminem, como uma mancha verde, na ciência e tecnologia, na educação e cultura, na arquitetura e mesmo na estética de um novo Bauhaus.
O compromisso de Biden com a causa ambiental não significa que adote deliberadamente iniciativas contra o Brasil. As relações entre nossos países são tradicionais e sólidas. Estive com Biden algumas vezes. Ele conhece bem a América Latina e gosta do Brasil. Mas isso não impedirá que uma militância ambientalista e aguerrida venha a exercer pressão sobre a opinião pública e o Congresso por medidas concretas para diminuir o desflorestamento na Amazônia.
Vale lembrar que Europa e Estados Unidos são mercados prioritários para o exportador brasileiro. Se a esse grupo adicionarmos a China, com quem temos estimulado ruídos recorrentes e desnecessários, esses três mercados representam cerca de 65% das exportações do Brasil.
Além disso, a eventual saída de Trump da Casa Branca representará um abalo para o eixo político-ideológico que lhe dá sustentação, assim como para seus seguidores mais próximos, na Polônia, na Hungria e em alguns outros países, entre os quais o Brasil.
*Conselheiro de Felsberg e Associados, foi embaixador do Brasil em Washington