Sérgio Abranches: É possível uma frente democrática?

Há sinais de que vários setores do campo democrático, em um amplo espectro ideológico, têm conversado sobre a formação de uma frente plural contra o avanço autoritário de Bolsonaro.
Foto: Paloma Amorim
Foto: Paloma Amorim

Há sinais de que vários setores do campo democrático, em um amplo espectro ideológico, têm conversado sobre a formação de uma frente plural contra o avanço autoritário de Bolsonaro. São iniciativas importantes. Há muita incompreensão e ressentimento fechando possibilidades de uma frente que inclua todos os setores. Em geral, são pessoas e lideranças que se consideram democráticas, desde que não tenham que exercer um mínimo de tolerância em relação à posição de lideranças e grupos de campos ideológicos distintos. É um equívoco e uma demonstração de autoritarismo.

O equívoco está em imaginar que frentes, como a Frente Ampla de 1966, ou a frente pelas Diretas Já, no Brasil, o Pacto de Moncloa que democratizou a Espanha, ou a Concertación que restaurou a democracia chilena, se formam por cooptação. Não. Elas se formam por escolha de cada parceiro em passar por cima de diferenças e desavenças e começar a conversar com os adversários tradicionais. Se fosse por cooptação — convite ou convocação — não seriam frentes, nem plurais, nem democráticas.

O primeiro movimento é aceitar os outros como parceiros, com todas as restrições do passado. O segundo, é conversar com todos os setores democráticos sobre os objetivos específicos da frente e sobre uma agenda mínima, que todos possam apoiar. Significa reservar as ideologias e as questões específicas de cada campo, para o momento posterior, quando a frente tenha alcançado seus objetivos. Toda frente é limitada no tempo e na agenda e envolve parceiros autolimitados para se enquadrar no limite do acordo contra a ameaça comum. O terceiro passo é o diálogo interno a cada campo, para ampliar a convicção dos companheiros e obter o comprometimento geral com a iniciativa. Liderança é testada, exatamente, quando tem que sacrificar provisoriamente determinadas convicções e ressentimentos de embates passados, diante de uma ameaça existencial, e atravessar pontes entre campos hostis.

Tenho visto reações apequenadas à possibilidade de uma frente. Seja porque só admitem uma frente de esquerda, seja porque não admitem aceitar como interlocutores antigos adversários. Uma reunião de setores da esquerda não é frente, é aliança de grupos ou facções de um mesmo campo ideológico ou de campos adjacentes. Frente é com os outros campos. Ela se baseia no reconhecimento das especificidades da conjuntura e na identificação da contradição principal que está a mover o processo político. Há várias versões da contradição principal, que conduzem à possibilidade de uma frente.

Para mim, parece evidente que a espinha dorsal da conjuntura de crise atual é a oposição civilização versus barbárie, ou neofascismo versus democracia republicana. As causas das rupturas no processo político-democrático podem variar drasticamente, dependendo de cada ponto de vista. O que fazer, uma vez vencida a ameaça autoritária, também dependerá da competição abertas em disputas eleitorais justas entre as várias propostas. Logo, o passado e o futuro do futuro não podem entrar em cogitação nas negociações de uma frente, porque dividem. É bom que dividam e é importante que continuem a dividir. O que se discute na formação de uma frente é a identificação do inimigo principal e comum. O que fazer no presente e no futuro imediato, que coincidirá com o restabelecimento das plenas condições de convívio democrático e competitivo.

Há uma dose de grandeza de todas as partes na negociação de uma frente. Todas têm que superar feridas abertas nos embates que tiveram entre si no passado recente. Alguns bastante duros e que deixaram feridas profundas. Todas têm que abrir mão de suas visões e demandas, para desenhar uma agenda comum de transição entre uma conjuntura que nos ameaça e outra que reabre a possibilidade de que possamos divergir em liberdade. Uma agenda que responda aos problemas imediatos, sem cujo atendimento não seria possível transitar para uma situação de normalidade democrática, nem para o novo normal pós-pandemia. Mas, é nos momentos de autolimitação e de busca de comunalidades entre os desavindos que as lideranças mostram sua capacidade. Políticos que se afogam em mesquinharias, como Bolsonaro, nunca serão líderes. Podem, no máximo ser déspotas. No caso, sem qualquer ilustração.

Como é que se imagina ter sido possível a aliança entre Estados Unidos, União Soviética e Reino Unido contra o nazismo? Churchill e Roosevelt trocaram cartas amargas durante o período de formação da frente antinazista, revelando sérias divergências geopolíticas, fundamentais para o após-guerra. Churchill dedicava aristocrático desprezo por Roosevelt que, por sua vez, opunha-se fortemente ao império britânico. Ambos detestavam o que Stalin representava e reconheciam a ameaça representada pela União Soviética aos interesses de seus respectivos projetos nacionais de poder. Quando a URSS invadiu a Polônia, Roosevelt descreveu o governo de Stalin como a ditadura mais absoluta do que qualquer ditadura no mundo. Stalin, por sua vez, dedicava a ambos desdenhosa ironia. Ele tinha profunda desconfiança de ambos. Mas, havia Hitler, o nazismo, a ameaça de derrota do Reino Unido e a invasão da União Soviética. E houve Pearl Harbor. Uma vitória do nazismo representaria uma grande ameaça aos interesses geopolíticos da potência americana emergente. Depois da guerra, vencida a partir da aliança dos três líderes, eles passaram à mais ferrenha disputa. Com a decadência do Império Britânico, passou a dominar o antagonismo polarizado entre EUA e URSS, que alimentou a Guerra Fria e a détente nuclear, nada cordial.

Quem viveu as agruras do regime militar sabe que não é exagero dizer que um avanço autoritário no Brasil de hoje representa uma ameaça existencial para todos os que prezam a democracia. Põe em risco as condições essenciais para continuarmos competindo por projetos que buscam, por caminhos diversos, manter o Brasil no campo democrático e buscar soluções estruturais para as necessidades da maioria. A extrema direita no poder, com um projeto que se assemelha ao fascismo, racista, excludente, reacionário e hierárquico, associado aos interesses econômicos mais predatórios do país é uma ameaça existencial a todo democrata verdadeiro.

Eu, particularmente, considero que uma saída democrática do impasse em que nos encontramos e a superação rápida e efetiva da necropolítica que vem sendo aplicada com patológica frieza pelo governo pressupõe um amplo entendimento entre as forças políticas nacionais. Vivemos o pior momento da história da Terceira República, inaugurada com a Constituição de 1988. É inédita a superposição de crises pandêmica, de governança, econômica e política, gerando enorme estresse institucional. Só não houve retrocessos muito perigosos, como a sonegação de informações sobre o avanço da pandemia pelo ministério da Saúde, ou a flexibilidade precipitada e sem respaldo médico do isolamento social, porque a Justiça bloqueou essas decisões com liminares.

São muitas as decisões insensatas interrompidas por decisões judiciais ou por decretos legislativos. Isto mostra que as instituições de freios e contrapesos estão funcionando. Contudo, não é normal que funções regulares de governo, decisões de políticas e escolhas de governantes tenham que ser recorrentemente corrigidas ou obstadas por intervenções do Legislativo e, principalmente, do Judiciário. Não existe a possibilidade de um governo funcionar à base de liminares delimitando seu campo de ação. Mas, este bloqueio legislativo e judiciário se faz indispensável diante dos danos que as escolhas de Bolsonaro podem produzir, sobretudo no campo da segurança coletiva frente à pandemia.

Para que possamos superar com rapidez e eficácia a ameaça autoritária que já se desenhou, não é possível confiar em um acordo com Bolsonaro, como parece fazer o presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Tóffolli. Bolsonaro não faz acordos. Quer a aceitação de suas escolhas pelos outros Poderes. A única alternativa é a união de todos os setores democráticos da sociedade em uma frente plural para barrar o avanço autoritário.

Volto a meu ponto central. Uma frente se constrói com diálogo e pela entrada voluntária de lideranças e forças políticas na conversação. Não há espaço para cooptação ou indução de adesões. Ela requer um movimento espontâneo. Há lideranças que têm a capacidade e o descortino para atuar como viabilizadores cívicos, propiciando oportunidades para o encontro de forças atritadas em torno de uma agenda mínima comum pró-democracia. É o papel inverso ao dos viabilizadores da tirania que apoiam o avanço autoritário, mesmo não tendo confiança, nem particular apreço pelo governante no poder, imaginando que para eles sairá tudo bem. No caso de uma frente democrática, os viabilizadores têm a noção cívica de que construir pontes entre forças até agora adversárias é uma ação necessária para a preservação e o aprofundamento da democracia. É este o caminho que tornaria possível a tão necessária frente democrática.

*Sérgio Abranches é cientista político

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