Voltar às pedaladas fiscais não resolverá, como não resolveu em passado recente
Nos últimos meses o Índice de Preços ao Produtor (IPA) da FGV apresentou forte aceleração. De maio a agosto, rodou a cada mês, sequencialmente, a 9%, 11%, 14% e 22%, em comparação com os mesmos meses de 2019.
O IPA é fortemente afetado pela elevação do preço do minério de ferro e das commodities agrícolas. O preço no mercado internacional tem subido, com a robusta recuperação da economia chinesa e com as políticas de sustentação de renda que têm bancado o consumo de alimentos mundo afora.
O preço das mercadorias que exportamos tem se elevado no mercado internacional. De fato, nossos ganhos de termos de troca, entre março de 2019 e junho de 2020, superam os de nossos parceiros comerciais em 13%.
Em geral, há um efeito gangorra entre variações de termos de troca com o câmbio nominal: sempre que temos expressivos ganhos de termos de troca o câmbio se valoriza e vice-versa. A gangorra insula a economia brasileira dos efeitos inflacionários da elevação dos preços das commodities. Trata-se de uma das maravilhas do câmbio flutuante.
A evolução do diferencial dos termos de troca com nossos parceiros comerciais explica aproximadamente 50% dos movimentos da taxa de câmbio, para uma série trimestral da moeda.
Os 50% restantes dos movimentos do câmbio na frequência trimestral estão associados aos movimentos de curto prazo da conta financeira.
A piora da percepção de risco desde 2019, recentemente agravada pela deterioração fiscal em consequência das medidas de enfrentamento da epidemia e pelas incertezas ligadas ao orçamento de 2021, desfez o efeito gangorra. Em um período em que o câmbio, pelos movimentos dos termos de troca, deveria ter se valorizado 14%, desvalorizou-se 28%. Segundo nossa medida, o câmbio se encontra, frente ao equilíbrio de longo prazo, 26% mais fraco. Trata-se da posição mais depreciada desde o início da série em 1998.
Os ganhos dos termos de troca, isto é, a alta no mercado internacional da cotação das commodities, associada a um real mais fraco, resultou na inflação no IPA.
No relatório de inflação do Banco Central, divulgado há duas semanas, há estudo sobre o repasse do IPA no IPCA. O repasse nos alimentos tem sido pleno, mas a transmissão para outros itens, principalmente combustíveis, tem sido, provavelmente em função da redução da atividade econômica com a pandemia, reduzida.
Como afirmou o diretor do Banco Central, Fabio Kanczuk, em sua entrevista coletiva de divulgação do RI, o IPCA está “um pouco grávido do IPA”.
A dinâmica da inflação é o resultado de quatro forças: inércia, expectativas, câmbio e ociosidade. Se expectativas e câmbio apontarem para uma trajetória de elevação da inflação, a ociosidade não conseguirá segurar por muito tempo. Mesmo com salários contidos pelo desemprego, observaremos IPCA caminhando para 4% em 2021.
Quando esse momento chegar, o Banco Central se verá em difícil situação: com 100% do PIB de dívida pública de reduzido prazo médio de vencimento, talvez não seja possível segurar a inflação com subida de juros. Talvez o BC mande o seguinte recado à sociedade: “Ou vocês ajustam o fiscal e façam a gestão do conflito distributivo de outra forma ou teremos que aceitar a inflação”.
Quebrar o teto não será menos dolorido. Somente acelerará a reinflação da economia.
Temos que construir um orçamento de 2021 que restaure a solvência do Tesouro. Se o equilíbrio político demandar aumento de carga tributária, mesmo com os efeitos colaterais de redução da eficiência e do crescimento, que assim seja. Voltar às pedaladas fiscais não resolverá, como não resolveu em passado recente de triste memória.
*Samuel Pessôa é pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e sócio da consultoria Reliance. É doutor em economia pela USP.