Rússia mobiliza 200 mil e divulga treinamento para guerra nuclear

Kremlin segue usando ameaça, que Alemanha diz ser uma chantagem a ser levada a sério
Um lançador de foguetes Grad ucraniano dispara contra posições russas em Donetsk - Anatolii Stepanov/AFP
Um lançador de foguetes Grad ucraniano dispara contra posições russas em Donetsk - Anatolii Stepanov/AFP

Igor Gielow,* Folha de São Paulo

O Ministério da Defesa da Rússia disse nesta terça (4),que já alistou 200 mil dos 300 mil reservistas que pretende usar na Guerra da Ucrânia em uma contestada mobilização e passou a divulgar ostensivamente que eles estão sendo treinados para lutar num ambiente de guerra nuclear, química ou biológica.

“O pessoal das unidades formadas [desde 21 de setembro] está sendo treinado em 80 campos e seis centros”, afirmou o ministro Serguei Choigu em um evento em Moscou. Nele, foram repassados números de destruição de equipamento ucraniano, mas não foi dita uma palavra sobre as contraofensivas de Kiev no leste e no sul do país invadido em fevereiro.

A perda das áreas ocupadas em Kharkiv (nordeste), de um bastião russo em Donetsk (leste) e o rompimento das defesas num ponto de Kherson (sul) têm preocupado a linha dura do governo Vladimir Putin, que passou a fazer críticas públicas à condução da guerra e sugerir o uso de armas nucleares táticas, de menor potência, para deter Kiev.

Militarmente, não parece fazer muito sentido, mas esta é uma carta que o Kremlin tem usado com frequência desde o começo do conflito. Ao decretar a anexação de quatro áreas ucranianas em que não tem controle total, Putin elevou a aposta, dizendo que elas seriam defendidas com “todos os meios possíveis” —e isso inclui o maior arsenal atômico do mundo.

Com efeito, desde domingo (2) o Ministério da Defesa passou a postar no seu canal no Telegram imagens e relatos de treinamento de recrutas, incluindo como lidar com terreno contaminado por armas nucleares, químicas ou biológicas. É rotina, claro, em especial em um país com as capacidades que a Rússia tem, mas a visibilidade ao tema não é casual.

A Alemanha, rival histórica da Rússia que passou a ser sua parceira energética nos anos que precederam a guerra, disse nesta terça que as ameaças nucleares de Putin podem ser para valer. “Não é a primeira vez que ele recorre a tais ameaças, que são irresponsáveis, e nós devemos levá-las a sério”, disse a ministra das Relações Exteriores Annalena Baerbock.

“Mas isso é também uma forma de nos chantagear”,acrescentou, dando nome ao que está na mesa. Baerbock sabe que a população europeia, particularmente a alemã, antevê um inverno de dificuldades sem gás russo para aquecer os lares e mover a indústria, e que o temor de um conflito nuclear ainda é presente nas gerações que viveram a Guerra Fria.

No cálculo do Kremlin, presumido obviamente, a ameaça pode desestimular o apoio europeu, já bem menos coeso e volumoso do que o americano, a Kiev.

Também nesta terça, o Pentágono fez vazar a repórteres a avaliação de que nada indica que Putin esteja prestes a mobilizar suas forças nucleares. Isso é possível devido ao monitoramento de movimentos em bases por satélites e a informação colhida por espiões.

Mas o emprego de uma arma tática traz complicadores, como por exemplo o fato de que algumas são muito pequenas, facilmente transportáveis. Enquanto isso, a especulação em torno do tema só aumenta, dando uma vitória ao Kremlin.

Na segunda (3), por exemplo, o jornal britânico The Times publicou reportagem dizendo que os russos estariam enviando material nuclear para sua fronteira ocidental. O porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov, disse nesta terça que não comentaria porque não queria “fazer parte do exercício ocidental em retórica nuclear”.

Há especulação acerca uma detonação de intimidação sobre o mar Negro, talvez até atacando a ilha da Cobra, rochedo estratégico que os russos ocuparam e perderam. O problema é que o local é muito próximo da Romênia, e parece inevitável que a radiação chegaria a um membro da Otan (aliança militar ocidental), disparando uma resposta.

Da mesma forma, o uso de uma arma tática contra forças ucranianas demanda o emprego de diversas ogivas para ter efeito, o que potencializaria o risco de contaminação da própria Rússia. Para os soldados, há o treinamento de proteção pessoal e descontaminação de blindados e caminhões depois, mas não há o que fazer com uma nuvem radioativa.

Texto publicado originalmente na Folha de São Paulo.

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