Repetindo promessas de campanha, medidas de política externa não surgem como surpresa
De acordo com o texto que teria sido apresentado em reunião ministerial, as propostas feitas pelo ministro Ernesto Araújo para os primeiros cem dias do governo Bolsonaro foram:
1) Visita do presidente Bolsonaro aos EUA e lançamento das bases de Acordo de Parceria Brasil-EUA ou instrumento similar, que incluirá o lançamento de um acordo comercial, bem como entendimentos em segurança, tecnologia e defesa;
2) visita do presidente Bolsonaro a Israel, com a criação de parcerias em segurança, tecnologia e defesa;
3) início do processo e revisão do Mercosul para aperfeiçoamento de instrumentos favoráveis ao setor produtivo, redução tarifária e dinamização da agenda externa;
4) retorno ao modelo de passaporte com o Brasão da República;
5) implementar a isenção unilateral de vistos para cidadãos norte-americanos e canadenses;
6) realização de auditorias nas embaixadas brasileiras que possam ter sido instrumentos de desvios durante os governos do PT.
Repetindo promessas de campanha e declarações depois das eleições, as medidas não surgem como uma surpresa. São prioridades genéricas que precisam ser trabalhadas para que se transformem em diretrizes para a ação diplomática.
A aproximação com os EUA pode ser um elemento muito positivo para o Brasil, caso siga uma agenda clara de defesa de nossos interesses. Espera-se que na viagem presidencial os temas do ingresso do Brasil na OCDE, o Acordo de Salvaguarda Tecnológica, que permitirá a utilização comercial do Centro de Lançamentos de Satélites de Alcântara, e o de bitributação sejam tratados positivamente e aprovados pelo governo de Washington. Alinhamento automático, base militar americana no Brasil, associação à Otan não são de nosso interesse.
Quanto às bases de acordo comercial bilateral, ainda não está clara qual a diretriz do governo brasileiro: flexibilizar as regras do Mercosul para permitir uma negociação bilateral? Os EUA certamente proporão que eventual negociação terá como modelo o acordo com o México e o Canadá. Estará o Brasil preparado para aceitar as condições impostas a esses países, não só quanto ao acesso ao mercado agrícola, mas também às regras (propriedade intelectual, investimento)?
Com relação à visita a Israel, o principal objetivo é ampliar a cooperação também em tecnologia, segurança e defesa. Não há uma diretriz em relação à transferência da embaixada de Tel-Aviv para Jerusalém, anunciada como definitiva pelo primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, durante a posse do presidente Bolsonaro. Caso efetivada, apesar das manifestações de cautela de altos assessores presidenciais (militares), e de preocupação da Câmara de Comércio Brasil-Países Árabes e da própria Liga Árabe, será consumada uma das uma das maiores quebras na atuação da política externa brasileira. Desde 1947, quando nas Nações Unidas foi aprovada resolução criando o Estado de Israel e o Estado de Palestina, o Brasil defende a política de dois Estados para resolver o conflito na região, que ficaria superada.
O início do processo de revisão do Mercosul não poderá mais ser adiado. Criado em março de 1991, o grupo regional nunca sofreu um exame profundo da parte de seus membros. Como se farão o enxugamento e a flexibilização do bloco? Uma das formas para proceder a esse exercício seria a convocação de conferência diplomática, prevista no Protocolo de Ouro Preto, que criou a união aduaneira. Nessa oportunidade poderia ser discutida a ideia brasileira e argentina de modificar as regras vigentes de maneira a permitir negociações bilaterais para os novos acordos e reduzir os “penduricalhos” do Mercosul.
Três itens incluídos nas prioridades dos cem primeiros dias certamente despertarão controvérsia em maior ou menos grau. A abolição de vistos para cidadãos norte-americanos e canadenses passaria a ser permanente e seria uma decisão unilateral, sem reciprocidade, o que modificará a política seguida até aqui pelo Itamaraty, mas poderá facilitar o turismo. A realização de auditorias nas embaixadas brasileiras foi antecipada pelo ministro Ernesto Araújo ao declarar que iria examinar em detalhe a política ativa e altiva do governo Lula para apurar as falcatruas do ministro Celso Amorim. Certamente estarão sob escrutínio as embaixadas em Havana, Caracas, Lima, Quito, Bogotá e, na África, em Angola, Moçambique, Nigéria e República do Congo, países aos quais foram concedidos empréstimos do BNDES por influência política. O retorno ao modelo de passaporte do Mercosul, substituindo o Cruzeiro do Sul, será parte da revisão do grupo e terá repercussão entre os países-membros.
A visita do presidente Mauricio Macri ao Brasil na semana passada mostrou convergência de visões quanto a mudanças no Mercosul e à crise na Venezuela. Ficou claro que nas negociações comerciais em curso (com União Europeia, Canadá, Cingapura, Efta) o Mercosul continuará a negociar com uma única voz. Os novos entendimentos, contudo, passariam a ser conduzidos individualmente pelos membros do grupo. Com relação à Venezuela, sob liderança brasileira está em curso uma agressiva escalada retórica, mas não há indicação de “ações concretas” de como Bolsonaro “tudo fará para ajudar o povo venezuelano a voltar a viver em liberdade”.
Por outro lado, não foram ainda anunciadas as diretrizes e prioridades em relação aos organismos multilaterais e regionais. Tampouco se conhece a orientação do governo, entre outras, acerca das negociações comerciais (se permanecem no Itamaraty), da promoção comercial e do Brics, que se reunirá em nível presidencial no Brasil em novembro.
Espera-se que o ministro aplaque as dúvidas do vice presidente Hamilton Mourão, que teria sugerido: “Terá Ernesto condições de tocar e dizer o que é a política externa?”.
*Presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (Irice)