Rubens Barbosa / O Estado de S. Paulo
No meio da crise entre a Rússia e a Ucrânia, no início de fevereiro, depois de encontro entre Vladimir Putin e Xi Jinping, os governos da Rússia e da China divulgaram um longo comunicado que constitui um fato novo na ordem internacional e no desenvolvimento sustentável global. Neste contexto, ressaltam a emergência de uma nova era, que deveria ser consolidada evitando o estímulo à divisão da comunidade internacional.
Na visão da segunda maior potência global (China) e do segundo país com maior capacidade nuclear (Rússia), a ordem internacional passa por profundas transformações e tornou-se multipolar, com a redistribuição de poder no mundo, o que justificaria uma interação e uma interdependência entre os países, e não o incitamento às contradições e ações unilaterais. Por isso, pedem o reconhecimento desta nova fase, cuja principal referência seriam as Nações Unidas e o Conselho de Segurança da ONU.
O documento afirma que os dois países decidiram formar uma inédita aliança política, militar, energética e tecnológica sem limites, sem nenhuma área proibida de cooperação. Rússia e China demandam uma nova forma de relação entre as potências mundiais, baseada em respeito mútuo, coexistência pacífica e cooperação benéfica para todos. O lado chinês apoiou as propostas apresentadas pela Rússia para criar um sistema de garantias de segurança de longo prazo na Europa, legalmente obrigatório. Integridade territorial e soberania emergem como conceitos basilares, junto com a necessidade de segurança em áreas adjacentes, o que significa a não expansão militar da Otan para os países que fazem fronteira com a Rússia e a não entrada da Ucrânia na Otan, mas também o respeito ao princípio de uma única China, em relação a Taiwan e à crítica ao acordo militar na região do Indo-pacífico.
Esta nova visão de mundo não implica a destruição e refundação da ordem global como estabelecida depois de 1945, mas tem Rússia e China mais ativas dentro do sistema vigente. Nesse sentido, Rússia e China:
*Coincidem com a defesa da paz, da cooperação, do desenvolvimento sustentável, inclusive no Ártico, do meio ambiente, dos avanços tecnológicos e com as respostas aos desafios da segurança internacional.
*Defendem a democracia e os direitos humanos como aplicados por eles e rejeitam o uso destes princípios segundo critérios ocidentais para exercer pressão em outros países.
*Notam, quanto ao desarmamento, que a denúncia pelos EUA de importantes acordos de controle de armamentos teve um forte impacto negativo no tocante à segurança e à estabilidade internacional e regional. A saída dos EUA do tratado sobre a eliminação de mísseis de médio e de pequeno alcances, enquanto Washington desenvolve pesquisa para aperfeiçoamento destes mesmos mísseis e tem intenção de enviá-los para regiões de Ásia-pacífico e Europa, é preocupante. Demonstram preocupação com o avanço de planos para desenvolver sistemas globais de defesa de mísseis e instalálos em várias regiões do mundo, junto com armas nucleares de alta precisão para evitar ataques e outros objetivos estratégicos.
*Reforçam a importância do uso pacífico do espaço exterior e demandam um papel central para o Comitê da ONU sobre Usos Pacíficos do Espaço Exterior na promoção da cooperação, manutenção e desenvolvimento de legislação internacional sobre o espaço e a regulamentação do campo das atividades espaciais, para evitar que o espaço exterior se torne um campo de confrontação armada, e reiteram sua intenção de evitar o armamentismo e uma corrida armamentista no espaço.
*Apoiam e consideram pilares da paz e da segurança a preservação da Convenção sobre as Armas Químicas e a convenção para a proibição de desenvolvimento, produção e estoque de armas bacteriológicas e tóxicas, e demandam a sua destruição.
*A Agenda 2030 das Nações Unidas para o desenvolvimento sustentável, prejudicada pela pandemia, deveria ser reativada para que a nova fase do desenvolvimento global seja definida pelo equilíbrio, pela harmonia e pela inclusão.
O documento faz expressiva referência ao Brics. Rússia e China afirmam que apoiam o aprofundamento da parceria estratégica com o Brics, com a promoção e a expansão de cooperação em três áreas: política e segurança, economia e finanças e apoio humanitário. Neste particular, pretendem encorajar a interação entre os membros do grupo nos campos de saúde pública, economia digital, ciência, inovação e tecnologia, incluindo inteligência artificial, além da crescente coordenação entre os paísesmembros do Brics nas plataformas internacionais. O grupo vai fortalecer o formato de convites para outros países participarem como convidados, como um mecanismo efetivo de diálogo com associações e organizações de integração regional de países em desenvolvimento e países com mercados emergentes.
É muito cedo para arriscar prognósticos sobre seu impacto, mas a aliança estratégica, sem limites, entre a China e a Rússia, pelo peso político e econômico destes países, poderá ser um marco na geopolítica global, por deixar explícitas a visão do fim da hegemonia dos EUA e a afirmação de um mundo multipolar alternativo. O Brasil não vai poder deixar de se posicionar em face desta nova realidade, sobretudo em razão da referência ao papel do Brics.
*Presidente do IRICE, é membro da Academia Paulista de Letras
Fonte: O Estado de S. Paulo
https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,fato-novo-no-cenario-internacional,70003986176