Jovens representam 77% dos 33 mil negros mortos anualmente no Brasil. Cobranças de medidas efetivas para dar um basta na tragédia que é o racismo estrutural brasileiro ganham força em todo o país
A barbaridade da qual foi vítima o cidadão João Alberto Silveira Freitas, no estacionamento do supermercado Carrefour em Porto Alegre, que resultou na sua morte, foi um catalisador sem precedentes da indignação que paira no Brasil, de há muito, no tocante à violência racial e ao racismo contra a comunidade negra brasileira. Naquelas cenas brutais que o Brasil inteiro presenciou, estava simbolizado, em estado bruto, aquilo que os intelectuais chamam de Racismo Estrutural.
As denúncias sobre o recrudescimento do racismo no país vêm de longe e têm funcionado quase como um mantra no movimento negro brasileiro, embora boa parte da sociedade faça ouvidos de mercador para essa tragédia. Até mesmo importantes setores do Executivo, Legislativo e Judiciário que deveriam combater essas mazelas terminam estimulando-as por omissão. Mas os fatos estão ficando tão escandalosos que não dá mais para esconder, nem deixar de se indignar.
Até porque as causas do racismo e da discriminação no país não são episódicas, mas históricas. Ignorar os efeitos nefastos que mais de 350 anos de escravidão produziu não é uma opção política, é uma estupidez. Estupidez essa que não só possibilita a exclusão de milhões de pessoas do exercício da sua cidadania plena, bem como tem ceifado a vida de outros milhares.
Não surpreende mais ninguém que a juventude negra brasileira tem sido o alvo preferencial dos aparatos de segurança pública e privada, assim como de gangues e milícias que proliferam país afora. Os números do Atlas da Violência falam por si só: essa juventude representa 77% dos jovens assassinados no país, algo em torno de 33 mil jovens mortos anualmente. Até mesmo organismos internacionais, como Unesco, Anistia Internacional e Unicef têm-se mobilizado por meios de campanhas, alertando o governo brasileiro para a gravidade da situação.
Autoridades, instituições públicas e privadas e até mesmo a imprensa, quase sempre complacente com estes episódios, se indignaram e estão cobrando medidas efetivas para que possamos dar um basta nessa tragédia que é o racismo estrutural brasileiro. O fato soou como um alerta, ou melhor, como um recado de que o ocorrido nos Estados Unidos com o afrodescendente americano George Floyd não era exclusividade de lá, como muitos por aqui tentam insinuar, e que por isto mesmo a sociedade brasileira precisava reagir.
Mas, apesar de toda a comoção, as declarações de duas principais autoridades públicas do país foram decepcionantes. Uma afirmou que era daltônico e, portanto, não se manifestaria sobre o assunto; e a outra desconheceu a existência do racismo em nosso país, fazendo uso de uma expressão racista: “no Brasil, o que existe são pessoas de cor em situação de desigualdade”.
Lamentavelmente, essas declarações terminam por funcionar quase como um passaporte para impunidade, tanto no que diz respeito à violência praticada no país, desde sempre, como para a reparação histórica, tão importante para nosso povo. E, em grande medida, são autoexplicativas para a gravidade do problema racial no Brasil.
Afinal, um país que viveu um dos mais longos períodos escravistas da história da humanidade e que tem a maioria de sua população de origem africana vivendo em condições sub-humanas – submetidas a toda sorte de violência, nos mais baixos extratos sociais em quaisquer itens que são pesquisados, como educação, saúde, moradia, emprego e renda – não pode ter essa realidade desconhecida.
Em verdade, no Brasil, não só existe racismo, como ele é estrutural, condiciona, e normatiza praticamente todas as relações no país, sejam elas de caráter interpessoal, econômica, social, política, cultural ou religiosa. E não obteremos sucesso na promoção da igualdade racial, nem a plenitude democrática, se não reconhecermos a existência do racismo e, daí, não gerarmos políticas públicas que tanto o combatam como promovam a igualdade.
Ainda bem que parcela significativa da sociedade brasileira tem não só se manifestado de forma indignada ante o atual quadro de desigualdades no país, mas também começa a se mobilizar para sua superação. E, neste sentido, o movimento negro brasileiro precisa liderar este processo e estabelecer uma agenda política que, além da mobilização da comunidade negra, crie mecanismos de incorporação e participação dos não negros nessa luta, visto que o racismo constitui um prejuízo para toda a sociedade e não só para os negros.
Toca a zabumba que a terra é nossa!
(*) Zulu Araújo é Arquiteto, Gestor Cultural, Mestre em Cultura e Sociedade, Ex-Presidente da Fundação Palmares, Diretor Geral da Fundação Pedro Calmon/Secult/Ba. e militante do Movimento Negro Brasileiro.