Livro reflete sobre o que foi ocultado acerca do poder feminino na sociedade. Ausência dos feitos e das produções femininas, nas páginas oficiais da história, anula seu conhecimento, avalia a autora
O livro reúne fragmentos da vida e obra de trinta e três mulheres que foram silenciadas, de uma forma ou de outra, pelo sistema patriarcal. Esse silenciamento deu-se e, infelizmente, ainda se dá de modo físico, emocional e psicológico. Os paradigmas da inferioridade feminina estão alinhavados à incapacidade e à fragilidade da mulher, são modelos pré-estabelecidos que brotaram de raízes muito profundas, um sentimento de insignificância que, até hoje, permeia o universo feminino, sempre preenchido de culpa, pecado e certo aspecto profano. Há um peso extra na existência da mulher, cujos degraus “autorizados” pelo masculino para uma resumida e controlada ascensão vêm acompanhados de intolerância, recriminação, restrição e um fardo difícil de suportar. E, assim, as mulheres ficaram sem registro, sem notoriedade, sem condição de ser e de existir por elas mesmas.
A importância das sufragistas, por exemplo, deve ser divulgada, comemorada e cultuada com imensa gratidão, porque, hoje, a mulher pode votar e envolver-se politicamente, graças a elas, que lutaram e morreram por esse direito. A história das sufragistas deve ser mencionada de modo extensivo, e deve, também, fazer parte da grade escolar, seja do Ensino Médio, seja da Graduação. O que não se pode aceitar mais é essa ausência, esse vazio do feminino nas sociedades. A mulher não nasceu para ser esposa, filha cativa, mãe ou freira, necessariamente; ela veio ao mundo, assim como o homem, para ser o que desejar. A ausência dos feitos e das produções femininas, nas páginas oficiais da história, anula seu conhecimento.
E, no anonimato, viveu Maria Firmina dos Reis, professora e escritora maranhense, que se sustentou com o suor de seu trabalho e ainda fundou a primeira Escola Mista de sua cidade, além de ter sido silenciada pelo sistema, pois é uma ilustre desconhecida – teve sua etnia modificada, porque, em seu livro Úrsula, de 1859, (também fora do circuito editorial), a imagem estampada na capa é de uma mulher branca. Ela foi a primeira mulher negra a escrever um romance antiescravagista, muito antes do Movimento Abolicionista que mobilizou a sociedade brasileira, por volta de 1870, alcançando a Abolição da Escravatura somente em 1880, ou seja, 11 anos antes da luta a favor dos escravos, e 21 anos antes da Abolição – propriamente dita. Ela foi pioneira em tudo. Mas, afinal, quem conhece essa escritora prógona? Quem leu Úrsula?
Quantos gritos as mulheres deram na linha da história e, por isso, foram emudecidas? Ao mesmo tempo em que a jornalista as ressuscita, uma a uma, denuncia a misoginia contra elas, desde a extinção do sistema matriarcal. A Incrível Lenda da Inferioridade, tece as histórias dessas mulheres maravilhosas, em ordem cronológica, a começar por Aspásia de Mileto, pensadora independente que viveu na Grécia Antiga e que foi o grande amor do estadista Péricles. Passa pelo Japão medieval e divulga sobre a maior obra do ano 1000: Monogatari Genji, da romancista Sikibu Murasaki, que conta a vida de Hikaru Genji, filho do imperador. Visita Christine de Pizan, na França, escritora que viveu de seu talento, não sem dor nem luta e, devido à violência contra a mulher, idealizou um lugar de paz, admiração e respeito ao feminino, um lugar sem a misoginia da corte do Rei Carlos V, do século XV, e assim, nasce La Cité de Dames, em 1405.
O livro narra, de forma crítica, a dor feminina devido à exclusão, à violência, à inexistência, à subserviência e ao silenciamento, exemplificando essa condição com a vida de Gabrielle Colette, Camille Claudel, Clara Zetkin, Simone de Beauvoir, Karen Blixen, as irmãs Brontë, Jane Austen, Hilda Hilst, Maria Quitéria, Svetlana Aleksiévitch, Emily Dickinson, Florbela Espanca, Agnès Varda, Edith Wharton, Clarice Lispector, Virgínia Woolf, Cecília Meireles, Mary Shelley, Chimamanda Ngozi Adichie e muitas outras. A obra dialoga, ainda, com a poeta indiana Rupi Kaur; com Lilith e Eva; com a imperatriz Maria Leopoldina e Sissi, a rainha da Áustria; com a escritora Alice Walker; a pintora Artemisia Gentileschi; Lady Diana e Rosa Luxemburgo.
Trata-se de uma bela homenagem a mulheres que conseguiram soltar as amarras, que não aceitaram um destino marcado a ferro e fogo, à custa, em alguns casos, de suas próprias vidas.
Saiba mais sobre a autora
*Vânia Coelho é jornalista e escritora, lecionou em várias universidades por mais de 30 anos, nos cursos de Comunicação Social, Jornalismo e Publicidade. É autora de Ritos Encantatórios, Aspectos Teóricos da Linguística, Costureira dos Malditos, Tormenta e Os Inocêncios. A Incrível Lenda da Inferioridade foi lançada este ano, em Lisboa, pela Editora “Chiado Books”, com ilustrações e capa de Alexandre Gomes Vilas Boas.
** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de agosto (34ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
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