O conhecimento, especialmente a educação, é o ativo social que muda a vida das pessoas e transforma a sociedade e a economia – eleva a renda, reduz as desigualdades sociais e contribui para o aumento da produtividade, aponta Sergio C. Buarque em seu artigo
A crise econômica e social provocada pelo coronavírus, escancarando o enorme contingente da população vivendo à margem da economia formal, reacendeu o debate em torno de alguma forma de renda mínima permanente, para proteger a população vulnerável. Este é um passivo social de grandes proporções, acumulado por décadas de baixo crescimento econômico, reduzida produtividade e descaso e incompetência das políticas sociais. Diante deste passivo social, cabe ao Estado aliviar as carências, proteger a vida e impedir a degradação humana dos brasileiros miseráveis.
A distribuição de uma renda mínima é a forma mais rápida e eficaz para atender às necessidades da população vulnerável. Constitui um instrumento de assistência social que, no entanto, não promove mudanças capazes de superar a pobreza e diminuir a desigualdade. Mesmo quando exige uma contrapartida, como a frequência à escola dos filhos dos beneficiários, na medida em que as escolas públicas são, no geral, de péssima qualidade. Indiscutivelmente importante no âmbito das necessidades, a transferência de renda não constrói a liberdade.
Além disso, a renda é um fluxo e, como tal, se esgota no momento em que é utilizada, exigindo, portanto, permanente realimentação pela fonte original, vale dizer, a receita pública. O uso da renda mínima pelos beneficiários não agrega valor e terá apenas pequeno retorno para a fonte (o governo) na forma de impostos sobre o consumo de bens e serviços.
Ao contrário da distribuição de renda, os ativos econômicos e sociais contribuem para a formação da renda e a construção da liberdade do cidadão, particularmente quando se trata do ativo conhecimento. Os ativos econômicos geram renda (salários, lucros, juros e impostos) no processo produtivo, mas têm apropriação muito desigual e, na forma de máquinas e equipamentos, também se depreciam com o uso e ficam obsoletos com o tempo.
A mudança estrutural da sociedade passa pela distribuição dos ativos sociais, principalmente o ativo conhecimento, que inclui educação, qualificação profissional e ciência. O saneamento também é um ativo social importante, oferecendo bem-estar e gerando impacto positivo na saúde da população (para cada real investido em saneamento, a sociedade economiza quatro em saúde), no aumento da produtividade do trabalho e na melhora do rendimento escolar. Mas o saneamento também se desgasta com o uso, exigindo reposição das redes e dos sistemas de distribuição. A pandemia mostrou claramente a grave desigualdade social na carência de água e esgoto nos domicílios da população pobre que, perplexa, ouvia o conselho insistente de lavar as mãos.
O ativo social que muda a vida das pessoas e transforma a sociedade e a economia – eleva a renda, reduz as desigualdades sociais e contribui para o aumento da produtividade – é o conhecimento, especialmente a educação. O conhecimento se multiplica com a utilização, tem flexibilidade de uso e não se deteriora com o tempo. Ao contrário, o conhecimento cresce e se amplia tanto mais quanto seja usado, se expandindo com a troca e a interação entre as pessoas e os saberes, porque esta é a essência do processo de aprendizagem. Estudos mostram que o aumento da escolaridade dos trabalhadores promove a elevação da sua renda por conta da melhoria de sua produtividade e de sua posição no mercado de trabalho.
Se a distribuição de renda é um fluxo que lida com as necessidades, a educação é um ativo social que constrói a liberdade. A primeira aprisiona, a segunda liberta. Por isso, é o investimento na distribuição social do ativo conhecimento (educação e qualificação) que gera a mudança estrutural promovendo o desenvolvimento e a equidade social sustentável, preparando o cidadão para a vida e para o trabalho. E, portanto, para a geração de renda. O ativo conhecimento está distribuído também de forma muito desigual no Brasil, o que constitui a causa central da desigualdade de renda. O Estado deve atuar nas duas pontas. Mas não se pode esquecer que distribuição social do ativo conhecimento (melhoria do ensino público em larga escala) é condição para superar, no longo prazo, as necessidades que demandam parcela elevada (talvez crescente) da receita pública.
Não são políticas concorrentes, mas o volume dos gastos necessários para atuar nas duas frentes exige redefinição dos padrões de financiamento público, especialmente diante da grave crise fiscal do Estado brasileiro. Para se aproximar do gasto médio da OCDE por aluno e, ao mesmo tempo, conceder renda mínima de R$ 300,00 por mês para um terço da população, seria necessário algo próximo de 13% do PIB. Não cabe no Estado brasileiro. Teriam que ser inventadas fontes adicionais, incluindo a elevação da carga tributária que já anda nas alturas, e apertados outros gastos correntes. Este é o grande nó político do Brasil.
*Sérgio C Buarque é economista, com mestrado em sociologia, professor aposentado da FCAP/UPE, consultor em planejamento estratégico com base em cenários e desenvolvimento regional e local.